Capítulo 22
1633palavras
2024-11-12 05:15
Não foi surpresa ao sair encontrar ela na cozinha já com uma xícara quente nas mãos e outra me esperando na bancada.
— Seu par de botas está atrás da geladeira. — ela disse como algo corriqueiro, apenas me avisando onde poderia achá-las depois. — Posso saber o que te deu pra vir aqui no meio dessa chuva?
Era isso. Só de vê-la meu humor já tinha melhorado e a olhando assim, tão a vontade na minha frente, como se fosse um domingo comum para ela, me dava a sensação de pertencimento que estava precisando.
Como dizer que passou a semana com saudade da pessoa sem assustar? Estava claro que ela não se incomodava comigo ali ou teria dito, mas eu sabia que ela queria manter com os dois pés atrás por enquanto. Sim ela tinha dito que queria testar o que era essa coisa nova que estava sentindo, mas tudo era novo.
— Faz tempo que não nos vemos, quis passar pra te dar um oi.
Seu sorriso se alargou como se soubesse que eu estava mentindo e que nem me dei o trabalho de camuflar melhor, minha desculpa era esfarrapada demais e eu sabia disso.
— Domingo de tarde... — Maria fez uma pausa pensando enquanto levava a caneca fumegante a boca. Me encorajei e peguei a minha sentindo o aroma de chá de camomila invadir meu nariz. — Domingo é dia de almoço em família. — disse de repente como se tivesse se lembrado.
Encarei ao redor procurando pela família dela, não tinha ninguém ali, nem um mínimo sinal de que a família tivesse passado ali. Pelo menos não a minha ou o rastro estaria visível.
— Atrapalhei alguma coisa?
— Domingo é dia de almoço com sua família, Will me contou no outro dia. E sim, atrapalhou a minha sessão de terapia. — ela disse com a expressão séria, mas antes que eu pudesse me desculpar sua mão segurou a minha e me puxou para a sala. Assim que sentamos no sofá ela deu play na tv e o som explodiu pelas caixas envolvendo-nos. — Essa é minha terapia.
— Sentar no sofá com um chá e o que quer que seja que está tocando? — questionei e vi seus olhos quase saltarem das órbitas.
— Você não sabe quem é Alceu Valença? — eu neguei e por algum motivo consegui fazer com que ela se sentisse mais chocada. — De que planeta você veio? — Maria disse inconformada com a mão no peito mostrando indignação.
— Do mundo do rock bebê. Nascido e criado, duvido muito que até minha mãe conheça ele.
— Ele é da sua época velhote. — sua cara de inocente era negada pelo sorriso travesso nos lábios. — E sua mãe é uma boa pessoa, impossível ela não conhecer!
Maria cantarolou baixinho enquanto voltava a bebericar seu chá e seus pés foram atirados na minha direção descansando no meu colo enquanto ela reclinava no braço do sofá.
Eu segurei os pés pequenos já começando a massageá-los enquanto ela tamborilava as pontas dos dedos na xícara, Maria era a imagem da tranquilidade murmurando a letra da música que até parecia falar dela.
"Um girassol nos teus cabelos
Batom vermelho, girassol
Morena, flor do desejo
Há teu cheiro em meu lençol"
Até o final da música foi assim que ela ficou, os olhos fechados cantando baixinho, até que no último toque ela abriu os olhos me encarando com um misto de incerteza e constrangimento. Não sei ao certo se era por estar sendo observada ou por ver que ficava a vontade comigo ali de forma tão caseira.
Tinha algo de mais íntimo nesses pequenos momentos, mais íntimo até mesmo que sexo. Era como desnudar não o corpo, mas sim a alma.
— Então é assim que você relaxa? — perguntei tentando acabar com o constrangimento dela.
— E você? Me diz o que faz pra relaxar? — Maria jogou o corpo para frente colocando a xícara na mesinha antes de se voltar para mim esperando uma resposta.
O que eu fazia? Bar? Sexo? Família? Era tudo o que se resumia minha vida nos últimos anos.
— Ultimamente nada. Minha vida tem sido a mesma rotina maluca, trabalho, família e o clube.
Os olhos castanhos pareciam observar além do que estava ali na sua frente. Eles brilhavam como se fossem capaz de destrinchar toda minha vida em questão de segundos se ela quisesse. Ela tinha esse poder?
— E o que fazia antes? Antes de deixar a rotina te dominar?
Não precisava pensar por muito tempo para essa resposta, senti meu sorriso se alargar com a lembrança.
— Pegava a estrada de moto. O vento batendo no rosto a quilômetros por hora, durante a noite, sem trânsito, o céu limpo e os fones em toda altura.
Era uma lembrança tão forte que quase podia tocar de tão palpável e nítida em minha memória. As sensações, o cheiro, o barulho.
— Bem, não da pra pegar a estrada nessa chuva. Mas da pra colocar o som em toda altura. — antes que conseguisse responder ela pulou do sofá e correu até o banheiro. — Mas da pra colocar o som em toda altura! — acenou trazendo meu celular que eu havia esquecido na pia.
Ela vasculhou por alguns segundos até achar o que estava procurando, o toque característico de conectado soou nas caixas e eu continuei ali esperando que ela escolhesse alguma música.
Maria ergueu as sobrancelhas e sorriu, me lançou um olhar travesso e continuou procurando até que o som Welcome to the jungle se fez presente e ela se deu por satisfeita. Voltou a se sentar na mesma posição de antes, jogando os pés em minha direção e me entregando o aparelho.
Ela tinha quase acertado, não podia negar, não era algo que eu normalmente ouviria na estrada, mas estava na minha playlist. Não lembrava quando tinha sido a última vez que tinha ouvido aquela música. Maria me encarava com os olhos estreitos, como se tentasse entender a música ou até mesmo minha resposta a ela.
Mas foi só quando You Shook me all night long que ela conseguiu o que queria. Aquela música tinha feito parte da minha adolescência, eu gritava a plenos pulmões tantas vezes repetidas até minha mãe pirar. E continuou me acompanhando.
Foi nesse exato momento que coloquei tudo pra fora gritando o refrão na mesma intensidade que AC/DC. O som alto ajudava a euforia se espalhar, era como se embalasse toda empolgação fazendo correr nas minhas veias.
A gargalhada que Maria deu se juntou a minha cantoria, suas mãos me incentivando a continuar e cantar cada vez mais alto.
And you shook me all night long
Yeah, you shook me all night long
Em algum momento da cantoria quase exorcistica, com toda certeza essa palavra não existia, mas estava me ajudando a exorcizar meu estresse como ela tinha prometido fazer, Maria afastou a mesa de centro no exato momento que eu pulei do sofá fazendo meu solo de guitarra.
E então gritou junto comigo o refrão novamente, tão empolgada e envolvida na musica quanto eu. Não demorou para estarmos como dois adolescentes malucos pulando na sala dela e gritando as frases mais desentoadas possível, enquanto a chuva torrencial caia do lado de fora.
Assim que a música acabou nos jogamos no sofá rindo como dois malucos sem ar, suados e com o sorriso preso no rosto. Tinha ido ali com outro pensamento, achei que chegaria aqui trocaríamos algumas palavras e cairíamos na cama como tinha sido da última vez, mas agora eu via que era disso que eu precisava, da sua companhia.
— Tá, agora essa conheço! — ela gritou quando a primeira estrofe de Hole in my soul do Aerosmith tocou. — Você despertou a fera.
A mulher subiu na mesinha fazendo de palco, enquanto cantava com um microfone imaginário, a voz soando bem até chegar nas partes mais altas e ela gritar propositalmente para me arrancar uma gargalhada.
Maria apontou a mão que fazia de microfone imaginário em minha direção como se fosse minha vez de entrar fazendo o solo. Assim que eu comecei a cantar levou um segundo para que a maluca se jogasse no meu colo gargalhando. Vi a hora a pequena cair no chão e quebrar aqueles dentes perfeitinhos dela, mas consegui pegar seu corpo rapidamente.
— Você é maluca sabia. — falei por cima da música e ela se agarrou mais em mim enroscando suas pernas em meu tronco. — Uma maluca linda, mas maluca.
Ela soltou a língua de forma implicante ainda rindo como uma criança agitada que não conseguia ficar parada por muito tempo. A segurei com um braço e deixei que o outro afastasse os cachos do seu rosto, alisei a bochecha macia e tracei um caminho com os dedos, descendo até seu pescoço e indo em direção a sua nuca.
— Também senti falta dessa sua cara, velhote. — desdenhou segurando minha barba com força e sacudindo minha cabeça.
Tinha como sentir falta de algo que nem tivemos direito? Porque se tinha essa possibilidade eu apostava que nós dois estávamos presos nesse pequeno espaço de lunáticos que sentiam falta do que não tiveram.
Em um momento ela estava derrubando meu mundo de cabeça pra baixo, mudando minha rotina, minhas manias e no segundo estava embarcando nas minhas loucuras comigo. O que era aquela mulher?
Encarei os olhos castanhos brilhantes, o sorriso tinha ido embora e ela me encarava igualmente séria. Me perguntei se na sua cabecinha estaria passando o mesmo que na minha.
Meu vento de mudanças veio em forma de uma linda mulher negra de um metro e cinquenta, um gosto totalmente oposto ao meu e um sorriso que parecia ser capaz de iluminar o mundo. Eu estava muito ferrado!