Capítulo 36
1851palavras
2023-05-04 00:02
O último dia do despertar...
Ponto de vista de Chaos:
Acordei com o som das batidas dos tambores lá fora junto de uma cantoria que raramente se ouvia, mesmo em nosso reino natal. Aquela era uma canção tão antiga quanto o próprio tempo em si. Ao virar minha cabeça para o lado, vi Xavier encostado na cabeceira da cama com os olhos bem fechados.
Fiquei de coração partido pelo meu garotinho. Embora ele também não merecesse o que aconteceu com ele, nós dois fomos vítimas da dura realidade da vida. Não importava como, mas o mundo precisava manter o seu equilíbrio e, para isso, havia consequências ao tentar manipulá-lo. Elas podiam ser um pouco severas, porém, era assim que as coisas funcionavam.
Ajeitando-me na cama, peguei meu filho nos braços e o aconcheguei contra o meu peito. Quando me virei, encontrei seu pai dormindo profundamente ao nosso lado. Tive que suspirar para dissipar a raiva que sentia.
Deixando um beijo na testa de Xavier, sussurrei em seu ouvido: "Sinto muito, meu pequeno guerreiro."
"Eu sei, mamãe", ele respondeu com a voz rouca.
Então, nós nos abraçamos com força conforme o ritmo dos tambores e o canto se alteraram lá fora. Os efeitos logo puderam ser percebidos. Podíamos ouvir o alto chilrear dos pássaros, os gritos dos coiotes, o rugido dos leões, o sibilar das cobras e o vento balançar as folhas das árvores da floresta sem precisar aguçar nossos sentidos para percebê-los como era de costume.
A natureza também podia sentir o que estava por vir. Nosso tempo havia chegado ao fim e, honestamente, não fazia ideia de como as coisas iriam acabar.
Ainda era cedo, quase de manhã, portanto, ficamos sentados, em silêncio, ouvindo a floresta ganhar vida até o sol nascer. Ao levantar com Xavier em meus braços, fui em direção ao banheiro para que pudéssemos nos arrumar para o dia.
Saímos duas horas depois em nossas vestes cerimoniais apenas para encontrar meu ex-companheiro ainda apagado. Era inacreditável que ele conseguisse dormir tão profundamente, considerando o quanto o barulho lá fora havia aumentado com todos os preparativos.
Olhei uma última vez para ele antes de sair do quarto com o meu filho. Em seguida, fui direto para a cozinha, onde encontrei minha mãe preparando o café da manhã para o restante da minha família, que se encontrava sentada ao redor da mesa de jantar, parecendo estranhamente calma. Isso não me cheirou nada bem.
"Bom dia", cumprimentei ao encontrar um lugar à mesa para mim e meu filho.
"Bom dia", eles disseram em uníssono.
Estranho.
Esperei mais alguns instantes, mas ninguém me fez nenhuma pergunta. Eles estavam todos muito misteriosos enquanto mexiam em seus celulares.
"Tá bom, desembuchem!" Eu berrei.
"Desembuchar o quê?" Lucien indagou baixinho.
"O que quer que tenha os feito acordar e descer a essa hora. Vocês não esperam que eu acredite que todos não conseguiram dormir e resolveram madrugar ao mesmo tempo, né? Então, digam logo o que está acontecendo!"
"Sério, não foi nada... Nós só viemos ver como você está", Kiara sussurrou.
"Mentira! Desembuchem logo!"
"Tá! Já que insiste, eu te conto. Acordei com os cantos e os tambores, então, não consegui mais dormir. Com isso, eu desci para pegar um pouco de água e acabei acordando todo mundo no processo", Luke respondeu com os olhos fixos em mim e eu logo reconheci o significado daquele olhar.
"O que você viu, Luke?" Eu o questionei.
"O que a faz você pensar que eu vi algo, Khione?" Ele rebateu.
"Por causa do seu olhar e pelo fato de você ter acabado de me chamar de Khione. Talvez não tenha percebido, mas você só me chama assim quando está mentindo ou escondendo algo. Neste caso, diria que está fazendo as duas coisas."
"Não é verdade. Posso ter cometido um deslize, mas basta você ouvir as batidas do meu coração para saber que não estou mentindo."
"Você aprendeu a controlar seus batimentos cardíacos quando ainda era uma criança, Luke. Parece que está cometendo muitos deslizes hoje, não acha? Todo mundo já deve estar sabendo o que é, então, por que não conta logo para mim?"
"Na verdade, ainda não contei a ninguém. Eles acordaram com os meus gritos."
"Ah! Então, há algo..."
"Maldita, Chaos! Esqueça isso... Que dr*ga!"
"Não vou esquecer nada... Principalmente enquanto você tiver esse olhar no rosto."
"Mesmo que eu quisesse contar, eu não posso..."
Eu estava prestes a retrucar quando meu filho se meteu.
"Você conta ou eu conto, tio Luke?" Ele sussurrou e, pelo suspiro que escapou dos lábios do meu irmão, com certeza, eu não era a única que não esperava a intromissão de Xavier.
"Se você viu o mesmo que eu, sabe porque não posso dizer nada, garoto, ou melhor, porque nós não podemos dizer nada", Luke argumentou com um grunhido.
"Quem você pensa que é para decidir o que ele pode nos contar ou não?" Lucien reclamou.
Pelo visto, nem o irmão gêmeo de Luke sabia do que se tratava sua visão. Isso era mesmo algo inédito. Devia ser algo bem ruim.
"Mãe... Coloque um pouco de juízo na cabeça dele!" Lucien implorou.
"Deixe-me fora disso, querido. Se ele não compartilhou a visão com você, o que o faz pensar que ele vai contar para nós?" Minha mãe respondeu racionalmente.
"Isso não deveria ser mais um motivo para querermos saber o que ele está escondendo?" Kiara deu sua opinião.
Neste momento, iniciou-se uma grande discussão sobre as razões pelas quais Luke devia contar tudo enquanto ele permanecia sentado, encarando a todos, com uma expressão vazia no rosto. No entanto, seus olhos permaneceram particularmente fixos no meu filho, que o fitava com um olhar que apenas eu conseguia decifrar.
O debate foi interrompido quando Xavier, de repente, rosnou com uma intensidade que fez nossos lobos e a coisa a mais que tínhamos dentro de nós virem à tona. Foi neste estado que River nos encontrou.
Pela expressão em seu rosto, soube que o deixamos assustado. Afinal, assim que entrou no ambiente, ele deu de cara com seu filho de cinco anos rosnando descontroladamente ao mesmo tempo que o branco de seus olhos havia desaparecido e suas pupilas se tornado uma mistura de vermelho com dourado. O resto de nós se encontrava com os olhos em nossa cor vermelha característica.
Eu o observei abrir e fechar a boca algumas vezes, provavelmente tentando descobrir o que dizer antes de se virar para mim, confuso.
"Não olhe para mim! Essa é a primeira vez que o vejo assim também." Dei de ombros.
Antes que River pudesse se recompor, meu pai já estava de pé na frente de Xavier.
"Como não vi isso antes?" Ele murmurou repetidas vezes enquanto olhava para o neto com um misto de espanto, respeito, tristeza e admiração.
"Viu o quê?" Eu indaguei.
Mas fui ignorada.
Ajoelhando-se diante dele, meu pai esfregou seu ombro suavemente. Todos vimos quando seus olhos normalmente vermelhos mudaram para uma cor dourada brilhante que combinava com o tom das pupilas de Xavier.
"Diga a ele que está tudo bem... e que eu entendo", disse ele com uma voz muito calma, o que era raro de se ouvir.
"Não", Xavier rosnou.
"Está tudo bem, criança. Eu prometo a você que..."
"Mas eu..."
"Eu sei... e estarei ao seu lado a cada passo do caminho. Estarei apenas a um sussurro de distância", ele declarou firmemente.
Pude ver os ombros tensos do meu filho relaxarem pouco a pouco. Então, meu coração se partiu quando ele começou a chorar copiosamente, estendendo as mãos para o seu avô, que o abraçou.
"O que... o que... o que há de errado com o meu filho?" River gaguejou, dando passos cuidadosos em direção a eles.
"Ele está bem... É apenas o efeito da música lá fora. Seu lobo ainda não está acostumado com isso", meu pai explicou calmamente.
Embora o que ele disse fosse verdade, podia sentir em meus ossos que isso não era tudo. A cerimônia ainda não havia começado totalmente, no entanto, coisas estranhas continuavam acontecendo uma após a outra. Era oficial, eu estava detestando este dia.
Ao respirar fundo, dei um beijo na testa do meu filho e saí de casa, pois precisava de um tempo para absorver tudo o que aconteceu. Caminhando pelo quintal, apressei-me para chegar do outro lado e poder passear pela floresta.
Ao andar pela floresta silenciosa, inalei o ar puro de lá.
Como foi que a vida ficou tão complicada?
Quando foi que eu passei de tentar sobreviver ao treinamento brutal da minha mãe para renascer das cinzas e me tornar mãe?
Minha vida não só mudou muito rápido, como também parecia estar desabando. Ao parar em frente a uma árvore caída, sentei-me sobre ela e fechei os olhos, limpando minha mente para tentar meditar. Demorei um pouco para conseguir, já que minha cabeça estava lotada de pensamentos que não paravam de se acumular.
**********
O som repentino de uma buzina me fez sair do meu transe. Finalmente havia chegado a hora e eu não podia estar mais nervosa. Corri o mais rápido que consegui para o quintal.
Ao chegar lá, vi meu pai e meu tio ocuparem seus lugares atrás de uma longa mesa. Em seguida, caminhei em direção ao assento designado a mim e me sentei nele. Agora era uma questão de tempo até o resto da família e da alcateia chegarem. A meu pedido, as crianças foram levadas para um passeio junto com Xavier. Eu não precisava que todas elas fossem corrompidas pela dura realidade da vida como meu doce filho havia sido.
Gradualmente, todos os assentos foram sendo preenchidos. Olhares suaves, cochichos e lágrimas se seguiram quando os membros da alcateia me notaram. Afinal, sua falecida luna estava sentada em um dos assentos da primeira fileira, dando um clima totalmente diferente a esta reunião. Dava para ver a surpresa, a alegria e as dúvidas em seus rostos. Entretanto, foi muito estressante ter que sorrir e garantir a eles que era eu mesma quem estava ali.
Deixá-los me tocar para confirmar o que viam foi uma tortura. Ainda assim, teve seu lado emocionante quando foi a vez das minhas meninas se debulharem em lágrimas ao me verem. Fiquei encantada que elas haviam pensado em me homenagear hoje, usando o conjunto que mandei fazer para elas. A princípio, foi difícil controlar todos os ânimos, pois as perguntas nunca acabavam. Porém, no fim, conseguimos acalmar a todos com a promessa de que tudo seria explicado mais tarde.
A verdade era que até o final desta reunião, eles entenderiam tudo.
O auge do evento foi ouvir o grito que saiu da garganta de Tricia assim que ela me viu. Esse momento fez tudo valer a pena. O medo e o pânico repentino que tomaram conta dela me causaram um arrepio delicioso. Fiquei extremamente feliz quando ela se virou para outro membro da alcateia para perguntar se era realmente eu sentada ali e não sua imaginação lhe pregando peças.
Ai, ai, só se fosse sua consciência culpada.
Logo após a sua entrada, o promotor do tribunal do nosso reino se levantou para se dirigir a alcateia.