Capítulo 92
1958palavras
2023-02-01 18:40
Era a primeira vez que eu andava de avião. Meu pavor era a boléu quando entrei naquele treco. Minha pernas mal me sustentavam, minhas mãos suavam e eu sentia que iria desfalecer a qualquer momento. Eu não sabia nem como colocar o cinto direito. Uma senhora que se sentava ao meu lado, gentilmente me ajudou. Comecei a rezar o pai nosso quando o avião começou a se mover pela pista. Fechei os olhos com tanta força quando ele foi subindo e subindo que nem percebi que eu já estava sobrevoando as nuvens. Sentado perto da janela, eu abri meus olhos lentamente e fui me esvaziando do pavor e dando lugar a admiração por aquele momento. Era a coisa mais linda que eu já havia visto em toda minha vida. A vida ficando tão pequena lá embaixo. Mas aí vieram as sacudidas, as tais tribulações, e o pavor voltava com tudo. Eu orava baixinho para que Deus me permitisse chegar vivo ao meu destino. Eu não queria morrer tão tragicamente assim.
Tentei dormir, impossível. Tentei ler alguma coisa, mas eu não gostava de ler. Relaxar, não dava. Pensei em conversar com a senhora do meu lado, mas ela dormia tão profundamente que até roncava. E eu fui prometendo o caminho inteiro que se eu saísse vivo daquela viagem, eu nunca mais pisaria os pés em um avião novamente.
Foi a hora mais longa de toda a minha vida e quando aquele avião pousou em segurança em São Paulo e foi parando lentamente eu agradeci a Deus por estar vivo. Que diacho! Cheguei até me arrepender de ter aceitado aquele emprego, mas quando pisei meus pés em São Paulo pela primeira vez, a sensação passou. Caminhava pelo desembarque mais perdido do que bala em tiroteio. Como eu saberia quem era a Roberta? Allan já havia me falado dela, de que era a morena mais linda que ele conhecera em toda a vida. Que tinha os cabelos ondulados, os olhos negros e o sorriso com covinhas. Era uma descrição ótima, se eu conhecesse ela.
Mas ela estava lá, toda vestida socialmente, com um crachá das empresas Agenor pregado no paletó que vestia. Seu nome é visível. Abriu um sorriso quando me viu. Allan havia me alertado que enviou a ela algumas fotos minhas, claro, eu era muito inocente. Com esse mundo tecnológico em que vivemos, identificar pessoas era uma das coisas mais fáceis do mundo. Um rapaz que acompanhava ela, pegou minhas malas e eu estranhei.
— Seja bem-vindo Bento – ninguém me chamava assim – fez uma boa viagem?
— Se aquele troço não sacudisse tanto, eu até poderia dizer que sim – ela achou graça do que eu dizia, mas eu logo percebi a minha falta de educação. Estendi a mão para cumprimentá-la – Pode me chamar de Bentinho.
Ela sorriu e aquele sorriso era mais bonito do que o Allan havia descrevido.
— Por um momento eu acreditei que o Allan viria com você – apertou a minha mão, passando os olhos pelos quatros cantos, como se estivesse procurando o Allan – mas ele não veio.
Fiquei sem graça e percebi que o Allan não havia contado a ela que se casou com a minha irmã. Ele tinha seus motivos para querer não contar a ela sobre aquilo, mas a Roberta até parecia a Charlote, esperando o Allan voltar a qualquer momento, e eu achava isso muito injusto.
— Eu sinto muito – e o sorriso dela foi desaparecendo – se eu fosse você destruía qualquer esperança em relação ao Allan voltar. Isso não vai acontecer.
— Eu achei que ele ficou lá para resolver algumas coisas, e que depois... – parou e pareceu pensar – mas pelo seu modo de falar, ele não vai voltar mesmo.
— Eu devia ter dado umas chapuletadas no Allan.
— É o que? – ela voltou a rir – você fala igualzinho a ele.
— Me perdoe, dona Roberta – eu nem sabia como falar com aquela mulher sem parecer invasivo – o Allan não te contou nada do que aconteceu em Noronha nos últimos dias?
— O Allan nem sequer se despediu de mim – concluiu ela – por isso achei que ele voltaria.
Fi duma égua, eu pensei. O Allan fazia com a Roberta o mesmo que havia feito com a Charlote. Ele era um cabra maneiro, mas quando o assunto era mulheres ele não sabia como resolver as coisas sem parecer um cafajeste.
— Ele avisou para o meu pai que não iria mais trabalhar com ele – continuou – a última vez que falei com o Allan foi quando ele me falou sobre você.
— Que diacho! – lamentei.
— Mas a culpa não é dele – falava tentando convencer a si mesma – eu que criei expectativas demais. Eu sempre soube que, no dia em que o Allan voltasse para Noronha, ele ficaria lá.
— Você é uma moça esperta – mas eu não sabia como contar a ela sobre o resto da história.
Então me calei e fomo caminhando para fora do aeroporto em direção a um carro estacionado.
— Mas então, Bentinho – voltou a falar, tão simpática – me conta quais são essas coisas que andaram acontecendo em Fernando de Noronha, que eu não estou sabendo?
Entramos dentro do carro e eu demorei mais do que o esperado para responder a ela. Engoli a seco, me tremendo todo. O Allan não havia apenas me arrumado um emprego, mas também uma encrenca daquelas.
— Tentaram matar o Allan – comecei pelo pior lado da história.
Observei Roberta, que ficou branca como a neve.
— Mas ele está bem? – perguntou, um pouco desesperada.
— Está sim – sorri sem graça – uma amiga nossa, a Emília salvou a vida dele, mas infelizmente ela morreu.
— Misericórdia – respirava com dificuldade, colocando a mão sobre o peito – eu lamento por tudo isso.
— Foi uma correria só – continuei tentando justificar os erros do Allan – talvez por isso ele não tenha contado a você.
— Compreendo perfeitamente – suspirou – quando chegar em casa eu mesma vou ligar para ele para saber como ele está.
— Se eu fosse você não faria isso.
Imediatamente eu imaginei a expressão de Charlote ao saber que o Allan andou falando com a ex-namorada.
— Por que não? – questionou – aconteceu mais alguma coisa que eu deva saber?
— O Allan se casou – falei rápido, sem pensar muito, porque se eu parasse, desistiria – se casou com a Charlote.
Houve um silêncio quase interminável entre a gente. Enquanto o carro se movia, a expressão no rosto de Roberta foi se transformando em algo triste e sombrio. Os olhos dela brilhavam de lágrimas. Estava inundada delas. Ela parecia perdida nos próprios pensamentos, viajando até o momento em que perdeu o homem que amava. É claro que eu conhecia a história dos dois, o Allan havia me contado tudo, nos mais mínimos detalhes. As horas em que passávamos estudando, eu também escutava suas aventuras sobre São Paulo e seu quase namoro com a Roberta. O Allan, mesmo que às vezes cometesse erros imperdoáveis com as mulheres, ele respeitava e admirava a mulher que Roberta era. Talvez para ele não fosse necessário se explicar, já que não tinham nada sério um com o outro, mas talvez também fosse por pura covardia. Como ele diria a ela que estava ficando em Fernando de Noronha porque queria se casar com outra mulher?
— Faz quanto tempo? – voltou a falar – quando eles se casaram?
— Há dois dias – respondi.
Outro silêncio.
— Se quiser xingar a minha irmã – eu comentei – fique à vontade. Eu vou compreender perfeitamente.
— Por que eu colocaria a culpa na sua irmã? – perguntou – ela é a menos culpada disso tudo. Nem mesmo o Allan tem culpa se a expectativa era toda minha.
— Está sendo bondosa demais, Roberta – continuei – era o mínimo que o Allan poderia ter feito, contado a verdade.
— Ele não me devia isso – engoliu a seco – não éramos nada além do que patroa e funcionário.
Ela era admirável. Pela força e domínio próprio. Sabia controlar bem as próprias emoções e não saia por aí distribuindo responsabilidades que não cabia a ninguém além dela mesmo. Preferi não falar mais sobre aquilo.
— Quando eu começo a trabalhar? – perguntei e até consegui arrancar um sorriso dela.
— Na próxima semana – respondeu – vou te levar para o apartamento que o Allan morou durante esses anos. Será o seu novo lar. Descanse.
— Estou ansioso – eu pareci um abilolado falando aquelas coisas – esperei tanto por essa viagem, por esse momento.
— Você é bem determinado – agora ela parecia não querer mais chorar – eu sinto que vamos nos dar muito bem.
E de fato, ela acertou. Depois daquele dia, Roberta nunca mais tocou no nome do Allan, ou perguntou qualquer coisa relacionada a ele. Decidiu seguir em frente como se ele jamais tivesse existido. Evitava também ir ao apartamento em que eu morava. Nossos encontros eram sempre na empresa do seu Agenor. Falando nele, na semana seguinte, Roberta me levou onde eu iria trabalhar. O prédio era a coisa mais grande e espetacular que eu havia visto. Eu qu, estava tão acostumado com os paredões de pedra em Fernando de Noronha, agora teria que lidar com paredões cheios de janelas e portas. Eu podia até me perder ali dentro. E depois de me mostrar tudo o que eu precisava conhecer dentro da empresa, Roberta, me disse:
— Vamos conhecer o meu pai.
Fodeu a tabaca de Chola. Eu voltei a tremer feito uma vara verde. Me questionava o tempo inteiro se eu realmente estava preparado para aquele momento. Trabalhar em uma empresa como aquela. Ter uma responsabilidade tão grande, mas aí me lembrava das últimas palavras do Allan, antes da minha partida e eu ganhava um novo ânimo. Eu conseguiria. Eu sabia que sim.
— Seja bem-vindo, Bento.
Não teve nada daquelas coisas de aperto de mão entre patrão e funcionário ou formalidades. Ele me abraçou todo sorridente como se me conhecesse há muito tempo. Era a simpatia em pessoa. Seu Agenor era robusto, com uma barriga bem avantajada. Tinha um bigode engraçado e era calvo.
— Obrigada, seu Agenor – agradeci.
Fiquei aliviado. Feliz com a recepção e de fato, aquela família era tudo que o Allan havia descrito. Me trataram como se eu fosse da família deles que eu até esqueci da saudades de casa. Sempre que eu podia, ligava para Mainha, para Charlote e passava horas contando para ela tudo o que eu fazia ali. De vez em quando ela perguntava como era a Roberta, mas eu tratava logo de mudar de assunto para não encher a cabeça da minha irmã com coisas desnecessárias. Quando eu conversei com o Allan o assunto foi diferente, eu pedi para que ele falasse com a Roberta pela última vez, porque ele devia isso a ela. Era uma moça especial demais, a qual ele havia magoado. Allan me disse que pensaria.
Eu fui feliz em São Paulo, realizado, com um emprego bom e feliz. Pude ajudar a minha família e realizar os sonhos que tinha. Voltei a pisar os pés em um avião, por outras várias vezes. Tem promessas que são impossíveis de cumprir, mas de todas elas, ter vindo a São Paulo foi a melhor. Às vezes precisamos desamarrar o que nos prende. A mudança é necessária para o crescimento, não apenas a mudança de cidade, casa ou ambiente, mas a mudança da mente. Essa nos faz ir mais longe.
E eu fui bem mais longe do que imaginei.