Capítulo 86
1835palavras
2023-01-29 18:30
Eu caminhava pelas ruas do arquipélago, em direção a delegacia, com os pensamentos martelando na cabeça. Eu não tinha pressa em chegar lá, mas tinha pressa em encontrar uma justificativa para dar ao Bernardo sobre a morte da Emília. De uma coisa eu tinha plena certeza, eu levaria outro soco no meio das fuças quando contasse a ele que Emília havia levado um tiro para me salvar. Mas eu também não o culparia, qual homem aceitaria tamanha traição?
Essa deveria ser a menor das minhas preocupações. Emília estava morta e Bernardo não tinha tido o direito de nem se despedir da própria mulher. Eu tinha a missão mais difícil da minha vida nas mãos. Contar ao meu amigo que a mulher dele morreu por causa de mim.
Não havia sol em Noronha, uma nuvem negra encobria o céu. O dia parecia triste e solitário. Os últimos acontecimentos na ilha haviam deixado os turistas alertas e os moradores receosos em sair nas ruas. Era triste ver Noronha assim, tão abandonada. Era um lugar maravilhoso que estava perdendo o encanto por causa da violência.
Entrei na delegacia e pedi ao delegado permissão para conversar com Bernardo, mas com uma condição: que eu estivesse dentro da cela com ele. Eu podia levar umas chapoletada? Claro que sim, mas eu queria abraçar ele e o consolar de toda a tragédia que eu provoquei. O delegado permitiu porque sabia da minha boa índole, e o fato de sermos amigos o ajudou a tomar a decisão. Eu precisei me concentrar naquele momento antes de entrar lá. Afastar o medo para dar lugar a coragem de contar a ele tudo.
Quando Bernardo me viu, o seu semblante mudou completamente. Ele sorriu, parecia mais leve com a minha presença e aquela foi a minha primeira surpresa do dia, vê-lo feliz em me ver.
O guarda abriu a cela e fui recebido com um caloroso abraço. Fui trancado lá com ele por segurança, do Bernardo claro, porque a minha corria sérios perigos.
— Achei que ninguém viria me visitar – ele disse feliz – mas porque está aqui?
Essa era a pergunta que eu não queria responder.
— Vim ver como você está – falei, enrolando – e para te dar algumas notícias.
— Sobre Morgana? – perguntou, empolgado – como ela está?
— Não é sobre Morgana – respondi – mas em breve eu trago notícias sobre ela.
— Mas que diacho – deu uns três passos e se sentou sobre a cama – eu preciso saber como minha filha está.
Eu observei a aflição no rosto dele e meu coração partiu. Caminhei lentamente e me sentei, no colchão encardido sem forro, bem ao lado dele.
— Eu vim aqui falar sobre a Emília – minha voz saiu baixa.
Bernardo imediatamente olhou para mim, mas não havia raiva na expressão dele.
— Aquela metida a besta nem se deu o trabalho de vir me visitar – resmungou – mas esperar o que, não é? Por causa dela eu estou aqui trancado.
— Lamento em dizer – engoli a seco – mas a Emília não pode vir te visitar.
— Me surpreenderia se ela viesse – desviou o olhar para o chão – aquela dali só se importa consigo mesma.
Ouvi-lo dizer aquilo, me fez acreditar por um momento que a notícia da morte dela, não o deixaria tão abalado.
— Você não veio aqui para me falar que está tendo um caso com minha mulher, não é Allan?
Lascou, eu pensei.
— Deixe de leseira, Bernardo – fiquei nervoso – eu vou me casar com Charlote e só ela me interessa.
— Avalie só – escancarou o sorriso – até que fim confessou que gosta da melhor amiga. No final eu não estava tão errado assim.
— E não é – rimos juntos – você foi o primeiro a perceber que eu gostava dela, antes mesmo de mim.
— Tu sempre foste avoado para essas coisas – contava como se gostasse do passado – mas lhe dou os parabéns. Vai casar-se com uma das mulheres mais bonitas de Noronha. Queria estar lá para ver.
Nós nos entendemos e eu até senti saudades do meu amigo Bernardo. Do cara que ele sempre foi. Mas eu precisava voltar ao assunto principal da minha conversa, não dava mais para enrolar.
— Eu vim aqui pra te dar uma notícia sobre a Emília – comecei, meu coração parecia que ia sair pela boca – aconteceu um acidente com ela.
— Oxente, Allan – os olhos dele se esbugalharam, ele se levantou avexado e ficou bem agitado dentro daquela cela tão pequena – desembucha homem, o que diacho aconteceu com a minha mulher?
— Emília levou um tiro.
Eu poderia contar desde o começo, desde a nossa conversa no meio da rua, desde o homem estranho que apareceu do nada e atirou em mim, mas quando me dei conta as palavras criaram vida e escapuliram dos meus lábios.
— Como? – ele parecia azuretado e era até compreensível – quem daria um tiro em Emília?
— Fernandinho foi o mandante – eu precisava ir com calma para não o confundir ainda mais – na verdade o tiro era para mim, mas na hora que o homem tirou a arma da cintura, Emília se enfiou na minha frente e levou o tiro no meu lugar.
Foi como se o mundo desabasse na cabeça dele. Bernardo estava completamente paralisado no meio da cela, com os olhos abertos, inundados de lágrimas. O corpo rígido, o maxilar contraído. Eu esperei que ele falasse alguma coisa para que eu pudesse continuar.
— A Emília levou um tiro para salvar você – repetiu, lentamente as palavras, enquanto as lágrimas desciam – ela jamais faria isso por mim.
— Eu sinto muito, Bernardo – eu me levantei e me aproximei dele – eu nunca quis ser um problema para o casamento de vocês.
— Você não tem culpa se a minha mulher era uma desavergonhada.
Enxugou as lágrimas, mas parecia pensar sobre tudo aquilo. Eu ainda não havia dado a notícia pior a ele e procurava uma maneira menos impactante para fazer aquilo.
— Aquele infeliz do Fernandinho – agora eu conseguia ver muita raiva nos olhos dele – dizia que era nosso amigo e olha o estrago que ele causou.
— Ele vai pagar por tudo o que fez – disse.
— Diz para mim que a Emília está bem – foi inevitável a emoção. Meus olhos se inundaram quase que imediatamente – ela está bem, não é Allan?
— Eu sinto muito, meu amigo – foi como se o brilho que havia nos olhos dele desaparecesse – A Emília morreu.
Eu não saberia descrever a reação dele com perfeição. Mas o Bernardo demorou para entender o que eu dizia. Ele desabou de joelhos e quando a ficha caiu, enfim, ele pôs as duas mãos na cabeça e gritou. Foi um grito tão desesperador que eu me apressei em ajoelhar em frente a ele e abraçá-lo. Ele me apertava com tanta força, mas eu não sentia dor. E seu choro era como um berro de dor e desespero. O guarda logo apareceu na cela preocupado com o que estava acontecendo, mas não ousou interromper.
— Eu tentei de tudo para salvar ela – eu dizia, ainda abraçado com ele – se eu pudesse ter evitado isso, eu juro que faria.
— Emília está morta? – perguntava – quando isso aconteceu?
— Há dois dias – respondi e foi como se as lembranças daquela tragédia voltassem com tudo para me atormentar – o enterro dela foi ontem.
— Minha família foi incapaz de me dar uma notícia – ele reclamou, revoltado – minha mulher morreu e nenhum deles veio aqui para me consolar.
— Não fique assim, visse – falei, me levantando e ajudando ele a também se levantar – se algo serve de consolo, nós demos o melhor enterro que a Emília podia ter.
— Eu a amava – voltou a chorar e eu podia ouvir seu soluço – eu a amei a minha vida inteira. Como vou conviver com isso agora?
Eu não sabia o que dizer.
— Como eu vou contar isso para a Morgana? – se questionou – que o pai está preso e a mãe foi assassinada.
— Não deve se preocupar com isso agora – o remorso vinha como uma onda a todo o momento – me perdoa, Bernardo, a culpa foi toda minha.
— A culpa não foi sua, Allan – ele parecia mais calmo agora – ninguém tem culpa se a Emília amava você.
Talvez fosse a coisa mais difícil para ele confessar aquilo, mas Bernardo parecia conformado em nunca ter dito o amor da Emília.
— Eu quero que você cuide da Morgana para mim.
Olhou bem nos meus olhos como um pedido de socorro.
— Eu sei que já te pedi isso outras vezes – continuou – mas agora mais do que nunca eu preciso da sua ajuda.
— Eu vou fazer o que eu puder para ajudar ela, Bernardo.
— O que você pode não é o suficiente – insistia – eu preciso que você e a Charlote sejam os pais adotivos dela. Você pode não ter conseguido salvar a Emília, mas pode salvar a Morgana desse caos que eu a submeter.
Eu balancei a cabeça em afirmação, mas não consegui dizer mais nada sobre aquilo. Minha cabeça fervia com essa possibilidade. Era uma missão suicida, cuidar de uma adolescente problemática, mas no fundo, meu coração me pedia para fazer aquilo.
— Logo você vai sair daqui e poder cuidar da sua filha.
— Não conte muito com isso – eu não entendia – Morgana não merece ter alguém como eu por perto.
— Você não pode renunciar à sua filha – me assustei com a confissão dele.
— Acredite, meu amigo – riu, depois de tudo ele riu – vai ser melhor assim.
Óbvio que eu não concordava, mas respeitei a decisão dele. Pensei em pedir ao delegado uma permissão para que Bernardo fosse ao menos ao túmulo de Emília dar um último adeus, mas ele também não quis. Tentei convencê-lo sobre a filha, injetando um pouco de fé e esperança no coração dele, mas nada fazia efeito. Era compreensível aquele desânimo e tristeza. Ele havia acabado de perder o grande amor da vida dele. Demoraria para se recuperar daquilo.
— Sinto saudades de quando éramos crianças – me abraçou pela última vez – se eu soubesse que ser adulto era tão ruim, teria morrido cedo.
— Deixe de leseira cabra – sorri, tentando tirar o peso da despedida – você tem uma vida inteira pela frente. Ainda dá para consertar as coisas.
Bernardo não disse mais nada, me olhou pela última vez e só observou eu partir. Fui embora deixando com ele uma dor imensurável. Não havia mais fé nem esperança e eu implorava a Deus para salvar também o meu amigo e mostrar para ele que ainda não era o fim.