Capítulo 82
1406palavras
2023-01-27 18:30
Então o enfermeiro apontou o local onde ela estaria. Eu precisei parar e respirar várias vezes, profundamente, para tentar acalmar meu coração que socava sem dó o meu peito. Minhas mãos tremiam e suavam e eu implorava a Deus para que ele desse a Emília só mais uma chance. Um passo de cada vez, e quando percebi já estava lá dentro, com ela. Emília não tinha um tubo de ventilação como os pacientes da UTI costumavam ter. Havia uma agulha enfiada no seu braço e uma sonda de alimentação no seu nariz. O aparelho apitou e indicou os batimentos cardíacos dela e imediatamente eu me recordei da Betânia, colocando a cabeça sobre o peito dela para saber se ainda havia vida. Todos nós ajudamos a salvar a Emília de morrer ali mesmo, ainda que ela jamais saiba ou seja incapaz de nos agradecer por isso, fizemos o que faríamos a qualquer outro.
Ela estava acordada, apesar do estado dela ser grave, os médicos a mantiveram assim desde a manhã daquele dia. Um sentimento ruim me dizia que talvez, eles haviam feito isso para que ela se despedisse e partisse em paz.
— Allan – ela mal conseguia abrir os olhos, parecia cansada e tinha dificuldades para respirar.
— Oi, Emília – me aproximei, segurando firme em uma das suas mãos.
— Que bom que você está aqui – ela sussurrava, enquanto as lágrimas desciam – achei que morreria sem nunca mais te ver.
— Não fale besteiras – eu segurei o choro, estava quase impossível – mas que diacho você tinha que se meter entre eu e aquela bala, visse.
— Não fique avexado – ela sorriu – eu faria de novo se pudesse.
Mas aí ela teve que parar para recuperar o fôlego. Estava fraca, quase desfalecendo.
— Acho melhor você descansar – me apressei, eu não podia deixá-la se esforçar muito – amanhã volto para te ver.
— Não há mais tempo, Allan – apertou minha mão, mas não havia força – escute o que eu tenho para te dizer, antes que seja tarde.
— Não fale assim – eu tremia – você vai ficar bem.
— Eu não vou ficar bem – engolia a seco e mal conseguia abrir os olhos – quero pedir que você...
— Que diacho Emília – eu queria fazer ela calar a boca – fique quieta, por favor. Isso vai fazer mal para você.
— Cuide da Morgana para mim – pediu e outra lágrima desceu – não deixe ela ter a vida miserável que eu tive. Permita que ela seja feliz.
Agora era eu que deixava as lágrimas descerem. Talvez a aproximação da morte ou a sensação dela, fizesse Emília ver a vida ou que restava dela de outro jeito.
— Eu te amei desde o primeiro dia em que te vi – ela continuava falando e eu não tinha mais forças para impedir – você me ofereceu ânimo e vontade de viver e eu fui a menina mais feliz enquanto tive você ao meu lado.
— Emília... – eu não conseguia dizer nada.
— Me desculpe pelo mal que fiz – continuava.
— É claro que eu te perdoei – falei – você salvou a minha vida.
-— Salvaria outras mil, se pudesse – concluiu.
Mas a respiração dela foi ficando fraca. Ela pareceu mais cansada do que no começo.
— Eu te amo, Allan Gesser – sussurrou pela última vez.
Então ela fechou os olhos e não abriu mais. O aparelho que antes marcava seus batimentos cardíacos, agora fazia um barulho interminável. Sua cabeça tombou para o lado, e a mão que insistia em apertar a minha, perdeu suas forças. Eu gritei, enquanto sacudia ela e implorava para ela não ir. Observei médicos e enfermeiros invadirem a sala e me tirarem dali arrastado. Era um pesadelo a qual eu queria despertar, mas já não era mais possível. Eles tentaram reanimá-la, como fizeram lá em Noronha, mas dessa vez não houve sucesso. Emília foi às 11:45 de uma quarta feira de dezembro.
Eu me sentei no chão do corredor sem acreditar que aquilo havia acontecido. Não percebi Charlote se aproximando, porque o mundo pareceu perder o som para mim. Eu chorava e sentia como se nada fosse capaz de me consolar.
— Eu sinto muito, Allan – Charlote dizia.
Talvez ela tivesse dito outras coisas, mas eu não conseguia me lembrar. Me ofereceu um copo de água e eu precisei de quase uma hora para me acalmar.
Eu não conseguia raciocinar direito. Eu não sabia o que fazer, como fazer. Era como se todo o conhecimento tivesse evaporado. Não havia capacidade de resolver nada naquele momento. Eu estava perdido.
Já sentados na recepção, eu observei Charlote se levantar e ir conversar com o médico que atendera Emília. Ela ficou lá por vários minutos.
— Eu não sei como resolver essas coisas, Allan – ela parecia desesperada – quando Jacob morreu, foi o painho que resolveu tudo.
— Então traga seu Chico até aqui – eu dizia, mas minha mente estava longe.
— Estamos a quilômetros de casa – Charlote parecia perdida e sozinha – mas eu darei um jeito.
Então ela saiu me arrastando para fora do hospital. Pegamos um Uber e fomos para uma pousada perto da praia. Charlote me deixou lá e foi resolver as coisas sobre a morte de Emília. Eu me senti um inútil por não a ajudar, mas eu estava completamente paralisado. Era como um trauma que me prendia, não me deixando reagir. Tomei um banho frio e esperei ela voltar.
Charlote já não era mais uma criança, ela sabia como se virar, mas ainda assim eu me sentia culpado por não estar lá para ajudá-la. Horas depois ela voltou, já ao lado do seu Chico e do meu pai.
— Como você está meu filho? – painho perguntou, enquanto me olhava cheio de piedade.
— Queria que fosse mentira – eu dizia – se eu tivesse voltado para São Paulo, Emília ainda estaria viva.
— Já conversamos sobre isso, Allan – Charlote foi firme – não me faça repetir tudo de novo.
— Trouxemos os documentos da Emília – seu Chico disse, mostrando os papéis para mim – a mãe do Bernardo conseguiu abrir a casa e deixou a gente entrar.
— Eles já sabem? – perguntei
— Só que ela levou um tiro – respondeu.
— E por que ninguém veio aqui ver ela? – eu fiquei arretado com a insensibilidade daquelas pessoas – por que diacho ninguém se importa com ela?
— Não adianta ficar assim, meu filho? – painho tentou me acalmar – vamos resolver tudo, não se avexe.
— E a mãe dessa menina? – seu Chico perguntou – onde diacho essa mulher se enfiou que ninguém tem notícias dela?
— Vamos perder nosso tempo com isso – eu falei – a família da Emília agora, somos nós.
— E vamos dar um enterro decente para ela – Charlote concluiu.
— Tenho tanto orgulho de você, minha menina – seu Chico falou, com os olhos marejados – depois de tudo que essa mulher fez você passar, quase tirou sua vida por duas vezes, você está aí, ajudando e se solidarizando com ela, como se nada tivesse acontecido.
— Eu já havia perdoado a Emília há muito tempo, painho – ela disse – e depois do que ela fez pelo Allan, isso é o mínimo que eu posso fazer por ela.
— O mundo precisa de mais pessoas como você Charlote – painho disse – porque só assim teremos mais esperança na humanidade.
E eu os observava com alegria, pela família maravilhosa que eu tinha, por eu saber ter escolhido com quem andar.
— Obrigada meu amor – eu a abracei – sem você eu não conseguiria.
— Conseguiria sim – ela disse – é mais corajoso do que eu, só está perdido agora.
Então saímos da pousada direto para o necrotério do hospital. Era estranho explicar para as pessoas que Emília não tinha mais uma família. O pai havia falecido, a mãe estava desaparecida. O marido preso e a filha em um orfanato. Era uma história triste com um final trágico. Emília tão bela e cheia de si, tinha uma vida brilhante pela frente, cheia de sonhos e projetos, morreu nova, sem ter vivido tudo o que merecia. Mas a vida era feita de escolhas, e Emília havia feito as suas. Eu lamentava que acabasse assim.