Capítulo 81
1376palavras
2023-01-27 08:15
— Eu te amo – disse a ela, e depois a beijei.
— Eu também te amo – me olhou com tanto amor que chegou a doer – Uma pena que tudo isso tenha acontecido logo hoje.
Era uma pena mesmo, eu pensei, enquanto beijava sua testa e Charlote descansava a cabeça sobre o meu peito. Eu queria não pensar naquilo, mas as imagens de Emília levando um tiro no meu lugar vinham e iam o tempo todo.
— Que diacho – me lamentei, baixinho, ainda agarrado a ela – foi só eu voltar para Noronha, para o caos vir junto comigo.
— Deixe de leseira, Allan – Charlote se afastou, olhando para mim, arretada – eu não quero mais ouvir você falando assim, visse. A culpa não é sua.
— Como não? – puxei ela de volta para os meus braços – mas você está certa, ficar me culpando não resolve as coisas.
Segurei no queixo dela e a beijei novamente. Eu podia fazer isso a noite inteirinha, visse, mas aí apareceu aquela sombra bem atrás da gente, estragando todo o nosso momento romântico.
— Oxê – a voz de Mainha ecoou pelo quarto – você ainda está aqui, Charlote?
Me afastei de Charlote e me virei para olhar ela. Estava com as mãos nas cinturas, me olhando desconfiada.
— Oxente, Mainha – disse – estávamos terminando de arrumar as coisas para a viagem de amanhã.
— A pois – ela observa a mala em cima da cama – pelo visto já terminaram, já que sobrou tempo para pensar em sem-vergonhices.
Eu olhei para Charlote, que encarnou imediatamente, mas ela achava graça das coisas que Mainha dizia, então pareceu não se importar.
— Já está bem tarde e Lúcia já deve estar preocupada – se moveu em direção a ela e segurou em sua mão, arrastando a menina para fora do quarto – além do mais Noronha está perigosa demais para uma moça que nem você ficar andando sozinha por aí.
— Está expulsando a Charlote, Mainha? – perguntei e ela me olhou de um jeito que eu não gostei. Perigo à vista.
— Ela está certa, Allan – Charlote colocou panos quentes – e amanhã temos que acordar cedo para a viagem.
— A Charlote é compreensiva – Mainha sorri, mas sei que sua vontade era me dar uma bela chapuletada no pé do ouvido – por isso que gosto tanto dela.
— Sendo assim, eu a levo em casa – disse.
— Nem pensar – Mainha estava arretada – Bentinho está lá embaixo para ir com ela.
Eu comecei a rir, porque eu vivi a minha infância e adolescência, andando por Noronha inteira ao lado de Charlote, sem que Mainha nunca se importasse com isso, mas depois de adulto, ela não queria me deixar a sós com a minha futura mulher. Mas resolvi não azuretar os ouvidos dela com essa conversa, eu conhecia dona Francisca tão bem, que o mais seguro a se fazer naqueles casos era obedecer e me calar.
Me despedir de Charlote sobre o olhar rigoroso de Mainha. Dei um beijo de boa noite nela e subi de volta ao meu quarto.
Deitei-me na minha cama, mas o sono não vinha. Eu fechava os olhos e a imagem da Emília desfalecendo nos meus braços me atormentava. Logo em seguida eu pensava em Bernardo e como eu contaria aquilo a ele, depois eu lembrava da coitada da Morgana, que estava presa sabe-se lá Deus onde. Eu precisava salvar também aquela menina. Foi como se, ao voltar para Noronha eu tivesse também que pagar um alto preço por isso. Eram problemas demais de uma vez só, visse.
Quando me dei conta, já era o dia seguinte.
O sol já refletia na janela. Levantei assustado com medo de ter perdido as horas. Seis da manhã e eu respirei aliviado. Eu e Charlote havíamos conseguido um voo para Recife às oito da manhã. Seria o primeiro a partir de Noronha naquele dia. Eu sentia um peso enorme sobre o meu coração quando lembrava da Emília. Não tínhamos nenhuma notícia dela até aquele momento. Sabíamos que hospital ela estaria internada, mas não sabíamos se ela estava viva ou não. Corri para o banheiro, tomei um banho rápido e quando desci, Charlote e Bentinho já estavam lá, me esperando.
Tomavam café e comiam o tão famoso bolo de macaxeira que só Mainha sabia fazer, quer dizer, famoso porque por muito tempo ela vendeu esse bolo no restaurante onde painho trabalhava e todo mundo elogiava a boa mão e o talento que dona Francisca tinha para a culinária. Mas ela se desinteressou pelo assunto e passou a fazer o bolo só para nós mesmos. Era uma pena, visse, porque Mainha podia ganhar um bom dinheiro com aquele negócio.
Mas mudando de assunto, eu cumprimentei Bentinho e Charlote e me sentei ao lado dela, em silêncio. Eu estava avexado e não conseguia comer nada até ver Emília bem e viva.
— Coma alguma coisa, Allan – Mainha insistia – saco vazio não pára em pé. E a viagem é longa até Recife.
— Dona Francisca está certa – Charlote ia na mesma onda que ela – você precisa estar forte para ajudar a Emília.
— Que diacho! – fiquei arretado – eu levo um pedaço desse bolo e como no caminho.
Mainha concordou e foi só assim que conseguiu fazer elas duas calarem a boca por alguns minutos. Mas eu não comi nada de bolo nenhum. Apressei Bentinho e logo estávamos no aeroporto. Menos de uma hora estávamos em Recife. Trinta minutos depois chegamos no hospital onde Emília estava internada. Fazia um calor dos infernos em Recife e eu até tinha me esquecido como aquela cidade era movimentada e calorosa. Charlote parecia animada com a viagem. Seus olhos brilhavam observando cada detalhe. Fazia muito tempo que ela não saia de Noronha para dar uma volta como aquela, ver pessoas novas, olhar o mar, se divertir. Não estávamos ali para nos divertir, mas Charlote não tinha motivos para sentir-se culpada ou ressentida por absolutamente nada que havia acontecido com Emília. Não é que ela não se importava, ela tinha um coração de ouro, era boa e não guardava rancor de Emília, mas Charlote estava a tanto tempo presa em Fernando de Noronha, cuidando dos outros que havia esquecido como era bom tirar uns dias para relaxar.
Foi uma confusão só eu conseguir convencer a atendente de que eu precisava ver a Emília. A mulher insistiu que apenas parentes próximos podiam visitá-lo. Eu expliquei a ela que Emília não tinha nenhum parente próximo, mas foi só depois de muita insistência, que eu consegui, enfim, falar com o médico que atendera ela ainda em Noronha, e ele me liberar para visitá-la.
— O estado da Emília é gravíssimo – ele me alertava, antes de eu entrar na sala vermelha – uma UTI que permitia visitas – para ver ela – estamos fazendo o possível.
Eu tinha vontade de chorar, de gritar por socorro. Apesar de tudo que Emília havia feito em sua vida e na vida da própria filha, eu jamais desejaria a morte dela.
— Você precisa ser forte, Allan – Charlote me disse, seus olhos cheios de lágrimas, eu não sabia se ela chorava por mim ou por Emília – independente do que aconteça, não pense que a culpa é sua.
— Depois de tudo que a Emília fez você passar – eu toquei no rosto dela – você está aqui, torcendo para que ela fique bem.
— Eu não sinto raiva da Emília – ela sorria para mim, enquanto uma lágrima descia – além do mais ela salvou a sua vida e desse modo, serei eternamente grata a ela por isso.
A abracei e me despedi. Só eu havia sido autorizado a entrar lá para vê-la. Enquanto caminhava em direção ao local onde Emília estava, sob o som dos aparelhos dos vários outros pacientes, eu refletia como a vida da gente é frágil. Hoje estamos aqui, bem, sorrindo, cantando e dançando alegremente, amanhã já não estamos mais. A vida se vai como um sopro, não importa a sua idade, a sua cor ou o seu sexo, para a morte não havia distinção de pessoas. Ela levava todos igualmente.