Capítulo 80
1532palavras
2023-01-26 18:25
No dia seguinte, inventei que eu tinha uma reunião na ONG pela manhã, para não deixar a Mainha preocupada e fui na delegacia. O delegado me informou que o Fernandinho seria transferido naquela mesma tarde para o presídio federal do Pernambuco e que poderia pegar mais de trinta anos de prisão. Mas a gente conhece o sistema penal brasileiro. Não importa o crime que você tenha cometido, em poucos anos a justiça te soltava. Logo Fernandinho estaria de volta às ruas, e quem sabe, de volta para atormentar o Allan e a Charlote.
Caminhamos por um corredor até a outra ala que ficava nas celas. Eram duas apenas. Fernandinho estava de costas, olhando para uma janela pequena que dava uma vista do céu azul de Noronha. Estava com a mesma roupa do dia em que havia sido preso. O guarda que me acompanhava bateu na grade, fazendo Fernandinho se assustar. Ele se virou, lentamente, e nossos olhos logo se cruzaram. Ele estava abatido, olhos com olheiras horríveis, barba por fazer e o cabelo mais espantados do que o meu nos dias em que não os penteio. Me ofereceu um sorriso amarelo, colocou as duas mãos para trás e se aproximou. O guarda saiu e eu me vi sozinha com ele novamente.
—A tamborete de zona veio me visitar.
Falou, e o bafo dele era horrível.
— Que inhaca é essa, homem de Deus? – eu tampei o nariz fazendo uma careta de puro nojo para ele – faz quantos dias que você não toma banho?
— Oxente! – ficou arretado – você veio aqui para reclamar do meu cheiro, foi?
— Também por isso – falei, mas não ousei me aproximar mais da cela que nos separava – pelo jeito, ninguém veio te visitar.
— A pois – falou com tristeza – meus pais me renegaram logo que souberam que eu havia sido preso. Nem um advogado quiseram me arrumar para mim.
— Até parece que você merece defesa – falei, com o meu jeito sincero de ser – depois do que você fez ontem, merece mofar na cadeia.
— Então você já sabe? – pareceu curioso, como se não tivesse certeza se o plano havia sido bem-sucedido.
— Como eu não saberia? – falei – eu estava lá e vi quando aquele homem confessou que o mandante era você.
Então eu vi um brilho sórdido nos olhos dele, como se sentisse prazer no que havia planejado. Um sorriso de pura maldade brotou dos seus lábios.
— Que horas vai ser o enterro do Allan?
Perguntou, ainda sorrindo, e eu mal pude acreditar que confiei naquele cabra safado durante tantos anos. Como eu pude acreditar que ainda havia algum vestígio de bondade no Fernandinho? Eu só poderia estar louca mesmo, visse.
— Você é bem pior do que o Allan diz que você é – falei, escabreada – nem sei o que eu estou fazendo aqui.
— Como assim, o Allan te disse? – perguntou e pareceu azuretado.
— Ah, claro! – eu já tinha entendido tudo – você não sabe o que aconteceu?
— Oxente, Betânia – se aproximou da cela, segurando as grades com as duas mãos, enquanto arregalava os olhos para mim – deixe de leseira e me conte logo o que aconteceu.
— O Allan está vivinho da silva – soltei uma gaitada – o seu plano deu errado, pelo visto. Quer dizer...
— Não é possível – ficou com o olhar perdido.
—A pois – eu precisava jogar na cara dele toda a verdade – se a sua intenção era matar o Allan, você errou o alvo e acertou na coitada da Emília.
— Mas não é possível – de confuso passou para irritado – mas nem um trabalho direito esses maloqueiros de Noronha conseguem fazer.
— Você escutou o que eu disse, Fernandinho?
É claro que ele tinha escutado, mas Fernandinho parecia tão seco por dentro que não se importava em tirar a vida de ninguém.
— A Emília está em estado grave no hospital – continuei – a coitada levou o tiro no lugar do Allan.
— Como isso pode ser possível? – perguntou, sem empatia – eu dei ordens precisas e descrições detalhadas de como era o Allan. Como aquele cabra safado confunde o Allan com uma mulher.
— Ele não confundiu – confessei – ele atirou em direção ao Allan, mas a Emília tomou a frente para levar o tiro no lugar dele.
— Fia duma égua – ele gritou e eu me assustei – aquela metida a besta tinha que estragar meus planos.
Eu comecei a ficar assustada com o temperamento dele.
— Você não se importa com ninguém, além de você mesmo – continuei, mas minha voz saia como um sussurro – será que alguma vez na sua vida se importou de verdade comigo?
Então Fernandinho me olhou, e foi como se ele se transformasse em outra pessoa. Enxugou as lágrimas e se aproximou mais uma vez das grades da cela.
— Eu sei que você acha que eu sou um monstro – falou – mas eu sempre me importei com você e com a Charlote.
Eu não acreditava. Era quase impossível para mim ouvi-lo dizer essas coisas depois de todo o mal que fez, e encontrar sinceridade.
— Você nunca gostou da Charlote, imagine então de mim – falei – quem gosta, não faz o que você fez.
— O que eu fiz? – perguntou, fazendo de desentendido – eu sempre ajudei a Charlote, sempre a apoiei. Você não tem o direito de dizer o que eu sinto ou não.
— Avalie só a leseira desse cabra – eu fiquei arretada – você foi cúmplice no assassinato do irmão dela, roubou dinheiro do projeto dela, afastou o Allan dela e agora tentou matar ele, e vem me dizer o que fez?
— Isso é amor – eu quis socar a cara dele – mas, como você entenderia? É cabaça de tudo, quem vai querer uma bocuda que nem tu?
— A pois – bati palma para o teatro dele – agora sim você está se mostrando quem realmente é.
Ele riu, zombou mesmo de mim.
— Como eu pude perder meu tempo vindo até aqui? – me questionei – eu achei que podia te ajudar, mas agora eu compreendo perfeitamente por que você está largado, visse.
— Não lembro de ter te pedido ajuda – falou.
— Não mesmo – continuei – mas eu precisava vir para ter certeza de que não havia mais salvação para você, antes de fazer o que precisa ser feito.
— Do que você está falando? – perguntou
— A polícia interrogou o Allan ontem para saber quem havia atirado nele – continuei – mas o coitado estava tão azuretado, que não conseguiu dizer. Mas eu vou fazer isso agora mesmo.
— Deixe de leseira, Betânia – ele não acreditava, até riu da minha cara. – Ninguém precisa saber que fui eu quem mandou matar o Allan.
— Oxente! – eu rir da inocência dele – tem mais uma dez testemunhas que ouviu quando aquele homem falou que havia sido você o mandante.
— Lasqueira, visse – ele ficou nervoso – eu paguei uma grana preta para aquele cabueta me entregar.
— Vou depor contra você – fui firme – vou contar tudo o que eu vi e ouvir, e agora você vai ser acusado também de homicídio ou a tentativa dele.
Fernandinho arregalou os olhos para mim.
— Eu quero que você morra nessa cadeia – meus olhos se encheram de lágrimas – por ter destruído a vida dos meus amigos.
Eu virei as costas e sai caminhando. Fernandinho gritava pelo meu nome logo atrás de mim. Enquanto eu me dirigia até o delegado, me questionei em que momento eu havia me afundado nessa loucura, para acreditar que havia salvação para o Fernandinho. Durante anos eu o chamei de meu amigo, eu aprendi a gostar e a confiar nele, e avalie só no que deu. Como eu não percebi quem realmente ele era? Como eu, logo eu, me deixei enganar? Agora, já sentada em frente ao delegado de Noronha eu começo a contar cada episódio do dia anterior. Descrevo em detalhes o atirador que quase matou a Emília e afirmo sem medo de que o mandante era o Fernandinho. Saio dali com a alma lavada e o coração leve, mesmo sabendo que a justiça do meu país é falha, eu sei que Fernandinho vai pagar, de um jeito ou de outro por toda a maldade que fez na vida da Charlote e do Allan. A justiça brasileira pode até falhar em punir ele como ele merece, mas a lei da semeadura, essa jamais falha. Pode até parecer que os maus sempre se dão bem, mas acredite, todo mundo colhe o que planta e Deus é justiça.
Fui chorando o caminho inteiro até em casa, pela mentira que contei para Mainha só para ir lá ver aquele treloso, por Charlote, por Allan e por Emília. Mesmo ela sendo quem era, não merecia esse fim. Entrei no meu quarto e orei baixinho para que Deus a livrasse da morte. Para que Deus ajudasse os meus amigos.