Capítulo 79
1788palavras
2023-01-26 08:00
Como posso começar a contar a minha história?
Pois bem, sou filha de um casal pernambucano que esperou por quase uma década para, enfim, morar em Fernando de Noronha. Mainha contava que o arquipélago havia se tornado uma obsessão para painho, que entrou em uma fila quilométrica de pessoas que tinham o mesmo desejo que ele.
Morar em Fernando de Noronha era exatamente assim, você simplesmente não decidia por si só comprar uma casa e se mudar no dia seguinte. O Arquipélago era um dos lugares mais disputados deste Brasil, visse. Ou você esperava alguém decidir ir embora, ou você simplesmente torcia para algum morador, simplesmente bater as botas, ir dessa para uma melhor, entende?
Pois bem, eu não sei por qual dessas duas opções painho foi presenteado, mas Mainha conta que o homem quase infartou de tanta felicidade quando ligaram para ele contando que ele e sua família eram os novos moradores do arquipélago.
Minha família é bem grande. Quando vieram para a ilha, eu ainda nem era nascida, mas Mainha já tinha quatro filhos, duas meninas e dois meninos e eu, bem, eu fui concebida nesse paraíso e nasci dois anos depois.
Eu era a mais nova da família, a mais bocuda e a mais baixa também. Vivia levando umas chapuletadas de Mainha por falar demais. Não que eu fosse uma fuxiqueira, meu problema não era falar mal da vida das pessoas, mas eu não tinha trava na língua, talvez a sinceridade fosse meu maior defeito, isso mesmo, um defeito, porque eu só a usava nos momentos mais improváveis.
Charlote dizia que aquilo ainda me colocaria em grandes enrascadas, talvez ela estivesse certa, mas eu não conseguia me controlar, às vezes aquilo era mais forte do que eu. Falando em Charlote, a gente era vizinhas, quase porta com porta. Tínhamos a mesma idade e fazíamos aniversário no mesmo mês. Eu podia até dizer que ela era a minha alma gêmea, mas éramos parecidas só não idade mesmo. Charlote era mais alta, mas bonita e muito mais inteligente do que eu. Nossa amizade começou quando eu tinha cinco anos. Eu brincava de bola na rua, quando sem querer chutei forte e a danada foi parar dentro do quarto da Charlote, mas antes de parar lá, ela fez um estrago horrível no vidro da janela, causando uma confusão do cão entre as nossas famílias. O mal-entendido terminou em boas risadas entre mim e a Charlote, que todas as vezes que nos lembramos disso caiamos na gaitada. Mainha passou a gostar de Charlote como uma filha, mas quem não gostava dele, não é mesmo? E foi ao lado dela que eu passei os melhores e piores momentos de nossas vidas, a partida do Allan, a morte de Jacob, a prisão do Fernandinho.
Lembro do Fernandinho com tristeza, porque desde o primeiro dia em que coloquei os olhos naquele treloso, eu sabia que era confusão na certa. Allan costumava dizer que a minha implicância era amor, ele jurava de pé junto que eu estava gostando do Fernandinho, avalie só a leseira desse menino em pensar uma coisa dessa, visse? Mais de loucura eu também sabia me atolar, quando decidi esquecer essa implicância para apoiar Charlote na decisão em manter ele na ONG. Essa foi uma das piores besteiras que fiz na vida. Aquela menina tinha um coração de ouro, via bondade até em quem não tinha e por isso apostou todas as suas fichas nele, e acabou perdendo tudo, tanto ela quanto eu.
Enquanto tomava um banho para tirar o sangue da Emília que ficou impregnado em mim, eu pensava seriamente em ir falar com o Fernandinho sobre toda a tragédia que ele causou na vida de todos nós. Emília corria sérios riscos de vida, a coitada só não havia morrido bem ali no meio da rua, porque o socorro viria rápido, porque se não teria sido mais uma tragedia para conta de Fernando de Noronha e do Fernandinho.
Mainha ainda estava apavorada com o que havia acontecido, se ela pudesse me amarrar no pé da cama, ela me amarraria. Ela bateu o pé dizendo que eu não sairia de casa de forma nenhuma, eu dizia que eu só ia na casa da Charlote que ficava a dois passos da nossa, imagine quando ela soubesse que eu pensava em ir à delegacia vê o mandante de tudo isso?
Depois de muito insistir, ela me deixou ir. O sol estava se pondo, não era noite ainda, mas, Noronha estava até parecendo uma cidade deserta. Não tinha uma alma viva na rua. Eu estranhei, mas era de esperar, já que o arquipélago ficando violento, resultaria em insegurança, e insegurança significava que os turistas fugiram dali. Eu não sabia se o vazio da rua era seguro ou apavorante, mas certamente eu não estava acostumada com aquilo. Apressei o passo e cheguei à casa do Allan ofegante e peguenta, viu. Numa inhaca que só.
Eu disse que iria para casa de Charlote, eu até fui, mas dona Lúcia disse que ela estava com Allan e que provavelmente não voltaria para casa tão cedo. Por isso a minha pressa, o meu medo, e a inhaca que subiu logo em seguida.
A porta da casa do Allan sempre vivia aberta, todas as casas em Noronha eram assim, e eu até tinha medo de que os últimos acontecimentos mudaram essa realidade. Entrei sem avisar, e Bentinho também estava lá conversando com o seu Natalino. Ofereci um sorriso meia boca e perguntei onde a Charlote estava. Bentinho só apontou o dedo para cima indicando para onde eu deveria ir.
Subi as escadas correndo e encontrei Allan e Charlote com a boca na botija, quer dizer, fazendo as malas para partir.
— Que diacho é isso? – entrei na tora, que acabei dando um grande susto nos dois – Para onde vocês pensam que vão?
— Oxente, Betânia – Charlote estava arretada com o susto, e eu não me aguentei com a cara que ela fazia, cai na gaitada – não sabe bater na porta antes de entrar?
— Que porta? Se ela estava aberta?
— Que seja – Charlote sentou-se, mas o Allan tentava esconder o fato que ele também achou muita graça do susto que eu dei neles dois – o que faz aqui a uma hora dessas?
— Preciso contar uma coisa – fui falando, porque se tinha uma coisa que eu odiava era enrolação – vou na delegacia visitar o Fernandinho.
— Fodeu a tabaca de chola – Allan disse, sem acreditar – é bem capaz dele matar você também, só que agora com as próprias mãos.
— Está exagerando – tentei minimizar a situação – O Fernandinho não faria isso comigo.
— O Allan está certo – disse Charlote.
— Você esqueceu o que ele fez hoje? – Allan estava arretado – você estava lá e escutou bem o que aquele homem disse: Fernandinho mandou me matar.
— Eu escutei, Allan – falei calmamente – por isso eu quero ir lá. Perguntar por que ele fez isso.
— Não parece óbvio para você? – Allan perguntou.
— Eu preciso ouvir ele dizer – concluir – você não entenderia, Allan.
— Não entendo mesmo – ele virou as costas e continuou colocando algumas roupas dentro da mala – depois de tudo o que ele fez, você ainda confia nele.
Eu parei por um momento porque eu precisava acalmar os ânimos. Eu não tirava a razão do Allan em não querer mais ver o Fernandinho nem pintado de ouro, mas eu precisava ter essa última conversa com o Fernandinho, porque no fundo eu não acreditava que ele havia sido falso comigo por tanto tempo.
— Eu só vim aqui comunicar a vocês – voltei a falar – não pedi permissão.
Allan me lançou um olhar incrédulo, mas não disse nada.
— Você tem certeza disso, Betânia? – Charlote me perguntou.
— E você apoia essa ideia louca da Betânia? – Allan perguntou.
— Eu não apoio nada – respondeu – mas eu conheço a Betânia tão bem que eu sei que ninguém vai convencê-la do contrário. É teimosa que nem uma mula.
— Sou mesmo – afirmei – e eu tenho certeza do que estou fazendo.
— Cuidado – Charlote disse, enquanto lançava um olhar amoroso até mim – não quero que aconteça com você o mesmo que aconteceu com a Emília.
— Não vai acontecer – prometi a ela, oferecendo um sorriso – mas até agora vocês não me responderam para onde estão indo.
Charlote e Allan se entreolharam, em silêncio e só depois de alguns minutos responderam.
— Vamos visitar a Emília em Recife.
— Alguma notícia do estado dela?
— Nada – Allan respondeu – Emília não tem nenhum familiar em Noronha. Tentamos falar com a mãe dela, mas não conseguimos.
— Pudera – comentei – cavalo do cão que nem ela, ninguém consegue conviver com aquela dali.
— Não fale assim, Betânia – Charlote me recriminou – deixe para fazer seus comentários quando ela sair do hospital.
— Você tem muita fé mesmo, Charlote – eu rir – eu duvido que ela se safe dessa, visse.
— A pois – falou Allan, agora com ar de preocupação – Como eu vou dar uma notícias dessas ao Bernardo.
— Eu tinha até me esquecido do Bernardo – comentei – apesar de ser o cão chupando manga, ele era o único que gostava dela de verdade, visse.
— Verdade – então Charlote lançou um olhar curioso até o Allan como se quisesse ler os pensamentos dele – o Allan também gostava dela.
— Gostava – confessou – eu sempre gostei de todo mundo no arquipélago. Eu não tenho inimigos, tenho um fã clube revoltado.
— Avalie só como esse cabra é metido – eu rir, todos rimos – é impossível não gostar do boy mais popular de Noronha.
— Até você concorda – então Allan se aproximou de mim – eu gosto até mesmo de você, mesmo que continue com essa ideia louca de ir visitar o Fernandinho.
— Não comece Allan – revirei os olhos decidida a mudar de assunto – eu preciso ir agora, mas não deixe de dar notícias sobre a Emília.
— E você não deixe de tomar cuidado com aquele treloso do Fernandinho.
Disse o Allan, preocupado comigo. Eu ofereci o sorriso mais sincero que eu tinha, e ele me abraçou.
— Que bom que você voltou, Allan.
Dei um jeito de amarrar meu jegue, antes que eles dois decidissem me amarrar no pé da cama para que eu desistisse da ideia de ir ver o Fernandinho. Corri de volta para casa, porque já havia escurecido, e o cabra safado que havia atirado em Emília estava solto por aí.