Capítulo 69
1175palavras
2023-01-18 21:58
Eu despertei de repente, com os olhos arregalados, um suor escorreu do meu rosto. Meu corpo tremia, meu coração batia desenfreadamente. Engoli a seco para evitar chorar, mas as imagens vinham na minha mente o tempo inteiro. Allan correndo, um tiro, ele caindo no chão.
Depois da morte de Jacob, essa era a segunda vez que eu sonhava algo parecido com aquilo, mas dessa vez era mais real. Enxugo as lágrimas, me levantei, troquei de roupa e saí dando de cara com Bentinho se ajeitando no meio da sala.
— Oxente! – falei surpresa – hoje não é o seu dia de folga?

Ele arregalou os olhos e demorou para responder
— É sim – Bentinho estava muito estranho – acho que vai cair um temporal.
Disfarça, olhando para fora entre a frecha da porta semiaberta. Dou uma conferida no céu, que está cinza, quase preto. Olhei no relógio, e não eram nem sete horas da manhã, mas ainda parecia noite. Voltei a olhar para Bentinho, que agora, virava as costas e caminhava em direção a cozinha.
— Como foi a festa ontem? – perguntei, enquanto ele se sentava avexado na cadeira e pegava um pão – se divertiu muito?
— Que diacho, Charlote – ia passando manteiga no pão sem olhar para mim – eu não fui para festa nenhuma, visse.
— Não minta para mim, Bentinho – foquei arretada – né conte logo toda a verdade.

— Que verdade? – Se fazia de desentendido.
— Mais que diacho – eu decidi insistir – vai esconder as coisas de mim, por causa do Allan?
Ele deu uma mordida no pão e olhou para mim. Ficou pensando, enquanto mastigava cada pedaço lentamente.
— Sabe o que é Charlote – fiquei esperando-o confessar tudo – eu não posso, prometi para o Allan que não contaria nada a você.

Se levantou avexado, largando o pão na mesa.
— Eu sabia que você estava me escondendo alguma coisa.
— Não estou escondendo – Ele sacudiu os farelos de pão que cairá sobre ele – se eu fosse você, corria até o Allan, e perguntava a ele o que está acontecendo, antes que seja tarde demais.
— Tarde demais? – perguntei, mas ele não me dá tempo, volta a caminhar apressado e se tranca no quarto – tarde demais para quê, Bentinho?
Eu bati algumas vezes na porta, mas ele não me respondeu. Fico arretada, depois nervosa, logo em seguida azuretada. Mas que diacho está acontecendo?
Saio apressada de casa, direto para a casa do Allan. Olhei no relógio novamente, eram sete e meia da manhã, mas não me importei. Eu sabia que Dona Francisca acordava cedo, então presumir que eu não incomodaria. A porta estava fechada, o que era bem incomum, já que a casa dela vivia sempre aberta e cheia de gente. Respirei fundo antes de bater. Escutei passos apressados vindo em minha direção, quando a porta se abriu e dou de cara com ela.
— Oxente, Charlote – estava vestida com um avental, um pano amarrado na cabeça, as mãos dela cheias de farinha – o que você está fazendo aqui uma hora dessas?
— Me desculpe Dona Francisca – soltei um sorriso sem graça – preciso falar com o Allan.
— Entre, menina – ela agarrou o meu braço e me puxou para dentro de casa sem cerimônia nenhuma – você já reparou no tempo hoje? – perguntou, fechando a porta bem atrás da gente – o céu vai desabar.
Aquela era só uma forma dela dizer que ia chover muito, entende? Mas aí eu fui transportada para o passado quando reparei no ambiente ao meu redor. Quinze anos depois eu estava pisando ali novamente. Quase nada havia mudado. O sofá ainda era o mesmo, os quadros, nas paredes, o tapete no chão. Quantas vezes eu e o Allan brincamos ali, naquele mesmo chão, correndo por aqueles corredores. Uma nostalgia me nocauteia. Sinto vontade de chorar. Até o cheiro era o mesmo.
— A senhora está fazendo bolo de macaxeira? – perguntei com a barriga gritando de fome.
— Oxê – ela abriu um sorriso enorme – menina do Faro bom, visse. Venha tomar café comigo.
Me convidou animada e eu poderia ir até a cozinha saltitando de tanta alegria.
— E o Allan? – sou puxada de volta a realidade – eu preciso falar com ele
— O Allan ainda está dormindo – ela disse, mas parecia não ter certeza – mas coma um pedaço de bolo antes, minha filha.
Eu sentei e ela se sentou bem na minha frente. Pensei em perguntar a ela sobre o que estava acontecendo, mas não seria justo. Eu queria que o Allan me contasse toda a verdade e eu não transferiria essa responsabilidade para ninguém.
— Como está seu Chico? – tomava um gole de café e me observava sempre atenta – preciso ir lá colocar a conversa em dia com a Lúcia.
Desviou o olhar e ficou olhando para o nada como se pensasse sobre tudo que precisava conversar com Mainha.
— Ele está bem – respondo – sabe como painho é. Duro na queda.
— A pois – sorriu, voltando a atenção para mim – o Allan já deve ter acordado, nem vi a hora que aquele menino chegou ontem.
Então eu lembrei do pesadelo da noite passada. Do sonho que tive com o Allan levando um tiro.
— Sonhei com o Allan – falei sem nem perceber – foi uma coisa horrível.
— Oxente, menina – largou o copo de lado e ficou ainda mais os olhos em mim – agora você me deixou avexada visse. Que sonho foi esse?
Eu sabia que Dona Francisca era bem cismada com essas coisas. Eu pensei bem se deveria falar com ela sobre aquilo. Se contasse, ela podia até adoecer de tanta preocupação, mas se eu não a contasse insistiria tanto que quem acabaria doente seria eu.
— Sonhei com o Allan levando um tiro – observei ela com atenção, e ela começou a suar. Colocou uma das mãos no coração e a outra na cabeça. Ficou azuretada e eu até pensei que mataria a mulher ali mesmo – mas foi só um sonho, não tem por que se preocupar.
Dona Francisca se levantou, ainda avexada. Estava aflita como se de fato Allan tivesse levado um tiro.
— Eu ando tendo uns pressentimentos ruins em relação ao Allan – começou a falar e eu me levantei avexada para preparar uma garapa para ela – eu sinto que alguma coisa bem ruim vai acontecer com ele.
— Não fale isso nem de brincadeira, dona Francisca – naquele momento quem ficou aflita foi eu – o que de ruim poderia acontecer com ele?
— Não sei – fechou os olhos enquanto bebia a água com açúcar que eu havia dado a ela – o avião pode cair, ou um acidente de carro.
Meu coração parou de bater por alguns longos segundos. Estava acontecendo de novo, o passado se repetia como um roteiro de mal gosto bem na minha frente.