Capítulo 68
1373palavras
2023-01-18 21:57
E conforme o tempo foi passando, Francisca comprovou estar certa sobre a índole de Emília. Era engraçado e assustador ao mesmo tempo, esse sexto sentido que ela tinha, e quando era relacionado ao Allan suas intuições sempre estavam certas. Eu aprendi com o tempo a dar mais atenção ao que ela dizia e confiar nos seus instintos. Se Lúcia me dissesse que tinha algo de errado acontecendo, certamente teria.
Mas como nem tudo são flores, a gente começou a passar aperto com as despesas da casa. O dinheiro da herança de Lúcia já havia acabado e com a casa grande e um filho adolescente para cuidar, meu salário no restaurante já não era mais suficiente. O sonho de morar em Noronha se transformou em preocupação. Chegamos até a falar em vender a casa e ir embora para Recife.
— Que diacho! – Francisca chorava – eu não quero ir embora daqui.
— Eu sei mulher – lamentei – posso ver com o Chico se tem uma vaga lá na agência para mim. Eles pagam duas vezes mais do que no restaurante.
— Está bom – disse enxugando as lágrimas enquanto voltava para a cozinha.
Durante semanas aquele problema me atormentou. Eu precisava arrumar um jeito de resolver a situação. Chico já havia dito que a agência não contrataria mais ninguém pelos próximos seis meses e eu não poderia esperar tanto tempo. Foi quando naquele dia quente em Noronha, chegou uma correspondência vindo de São Paulo com o meu nome. Achei estranho, principalmente com a caligrafia. Parecia algo amador, uma pegadinha. Abri o envelope, desconfiado, mas ali dentro havia a grande chance da minha vida. A resposta das minhas orações.
Gritei pelo Allan, que desceu as escadas correndo para me ajudar.
— Me explique o que exatamente está escrito aí.
Allan me olhou azuretado, apanhou o panfleto das minhas mãos, leu em silêncio e depois disse:
— As empresas Agenor estão contratando pessoas que residem em Noronha – parou um pouco, respirou fundo – Vagas para vigilantes, técnicos em informática e secretários.
— Faça um currículo e envie amanhã mesmo para mim – falei apressado – tem o endereço para onde eu devo mandar meus documentos?
— Tem sim – Allan me olhava, sem entender nada – por que o senhor quer arrumar um emprego em São Paulo?
— Porque é uma grande oportunidade – resolvi não contar toda a verdade para ele – não se avexe com isso, só faça o que eu pedi.
Eu sabia que essa seria uma mudança radical na vida de todos nós, mas era preciso. Eu lembro da tristeza que se apossou do Allan quando soube que iríamos embora de Noronha. O quanto foi difícil para a Francisca aquela decisão. Decidimos então não vender a casa, porque voltaríamos para Noronha um dia.
— Temos mesmo que ir embora? – ele me questionou, sentado no paralelepípedo, debaixo da chuva – eu não quero ir embora painho, não quero deixar a Charlote, que dizer...
— Você gosta muito dela, não é? – afirmou balançando a cabeça, eu não o recriminei por estar debaixo da chuva, seu choro se misturava com as gotas que caiam do céu – voltaremos um dia, e a Charlote ainda estará lá, te esperando.
— Não vai ser a mesma coisa – falou de cabeça baixa – eu posso arrumar um emprego e ajudar o senhor a pagar as contas.
— Allan, meu filho – meu coração se acochou – a única coisa que você deve fazer é estudar. Você vai gostar de São Paulo, e quando se der conta vai ter esquecido Noronha.
— Impossível – ele disse – esse lugar é inesquecível.
Então se levantou, borocochô e voltou para dentro de casa.
Minutos depois o caminhão de mudança chegou para levar nossas mobílias para outro lugar, onde pudessem ficar guardadas. Logo entramos em um carro e partimos de Noronha. A tristeza do Allan se pendurou por muitos dias, mas conforme os afazeres e os estudos iam o consumindo, logo ele se encheu de alegria novamente. Com o tempo Noronha já não era seu assunto favorito, o nome de Charlote já não era tão falado e ele se acostumou com a nova vida.
Confesso que os anos em que morei em São Paulo foram os melhores da minha vida. Eu vi o Allan se formar em uma boa faculdade e se tornar o braço direito do meu patrão. Francisca se adaptou rapidamente à vida da cidade grande. E o Allan estava feliz como eu jamais havia visto antes.
Eu estava aposentado e com as malas prontas para voltar a Noronha, quando a notícia da morte de Jacob chegou. Tantas coisas aconteceram em Noronha com a nossa partida, que dava até medo de voltar para lá. Mas apesar da tristeza de perder alguém tão novo como Jacob, Francisca estava feliz por voltar para a casa, mas Allan parecia carregar um peso sobre as costas.
Minhas preocupações sempre estavam sobre ele, porque eu queria oferecer o melhor para aquele menino que eu chamava de filho. Já na nossa casa, com a mudança feita, eu observava o Allan arrumando as malas para voltar a São Paulo. Não havia nenhum sinal de satisfação em seu rosto, pelo contrário, a sensação que eu tinha era que ele se sentia obrigado a fazer aquilo. A tristeza era a mesma de quando ele foi embora pela primeira vez, só que dessa vez ele não implorava para ficar.
— Você não precisa voltar, Allan – eu encostei no batente da porta, com as mãos enfiadas no bolso da calça – a gente já teve essa conversa antes, mas eu queria reforçar.
— Eu sei, painho – me olhou por alguns instantes, voltando a colocar as roupas na mala – e eu te agradeço por tudo que tem feito por mim.
— Você é meu filho – disse com convicção – pode não ter o meu sangue, mas tem meu coração.
— Imediatamente ele largou o que fazia e me abraçou.
— O senhor também tem o meu – sorriu – e foi o melhor pai que alguém poderia ter. Sou um cabra de sorte, visse.
— Se cuida – se afastou, já chorando – e não me apronte nada. Senão eu vou lá e te quebro no coro.
Rimos, porque aquilo era só uma maneira de dizer, que eu me importava com ele. Allan nunca precisou levar chapuletada para ser educado. Sempre foi um menino obediente. Era um orgulho tê-lo como filho.
Então eu saí, porque sabia que nada do que eu dissesse poderia fazer ele mudar de decisão. Foi quando Charlote entrou, me comprimento com um sorriso e caminhou em direção ao quarto de Allan. Fodeu a tabaca de chola, eu pensei. Mas a conversa dos dois foi tão rápida, que minutos depois ela saiu correndo de casa, chorando. Francisca observava, com tristeza nos olhos.
— Coitada dessa menina – ela disse – foi se apaixonar logo pelo Allan, que nem sabe o que diacho quer da vida.
Eu me silenciei, porque no final Francisca sabia o que dizia.
— Alguma coisa me diz que o Allan vai desistir dessa viagem – disse.
— Deus te ouça mulher – levantei as mãos aos céus como súplica.
— Mas, alguma coisa ruim também vai acontecer – passou a mão sobre o peito e eu congelei – eu espero estar enganada sobre isso.
Mas ela nunca estava. Eu não me lembro de nenhuma vez Francisca ter errado nas suas intuições. Que coisa ruim poderia ser aquela? Fiquei por horas pensando naquilo. Rezei baixinho para que Deus protegesse meu filho de todo o mal, independente da decisão que ele tomasse dali para frente. Mas nem sempre podemos proteger nossos filhos das mazelas desse mundo. Às vezes era necessário soltar as rédeas e deixá-los tomar suas próprias decisões. Enquanto eu pensava nisso tudo, fiquei em paz por ter cumprido o meu papel. Eduquei aquele menino com todo amor que tinha no peito. Ensinei a ele o caminho que deveria andar e agora já um homem, ele não havia se desviado dele. Tomava seu próprio rumo, mesmo que eu não concordasse. Allan tinha um futuro brilhante pela frente, porque ele era brilhante e ninguém poderia apagar isso.