Capítulo 66
1822palavras
2023-01-18 21:57
— Desculpa pelo encontrão – falei, e os olhos dela se voltaram para os meus. Eles brilhavam e era a coisa mais linda do mundo inteiro – espero não ter te machucado.
— Está tudo bem – ela sorriu e eu me estremeci inteiro – Bentinho está terminando de se arrumar.
Eu me calei e me senti um abilolado por não conseguir dizer nada a ela.
— Para onde vocês vão?
Pronto, aquela pergunta me trouxe de volta a realidade. Eu não poderia contar para Charlote que eu ia a uma festa de despedida com meus amigos, aquilo partiria o coração dela, e eu estava cansado de fazer Charlote sofrer. Mas mentir também a magoaria.
— Vamos na casa do Mateus – engoli a seco – só uma reunião de rapazes, para colocar a conversa em dia.
— Não sabia que o Bentinho era amigo do Mateus.
Fudeu a tabaca de Chola.
— Não é mesmo – fui sincero – mas Bentinho é meu amigo, então eu o convidei.
— Entendi – ela olhava para mim, desconfiada e se eu continuasse olhando para ela, logo me entregaria.
Então ela se calou ao mesmo instante que seu Chico saiu lá de dentro, avexado.
— Venha, Allan – ele sacudia o braço me chamando – venha comer um bolo com a gente.
Eu abri um sorriso escancarado. Fui apressado, passando por Charlote que ainda me olhava desconfiada, e sentei na mesa, como o Allan menino que comia bolo e deixava marcas nas toalhas de dona Lúcia. Seu Chico desembestou a falar dos casos que aconteciam na agência de turismo onde ele trabalhava. Eu já havia escutado aquelas histórias tantas vezes, que até me esquecia que Noronha ainda era tão disputada no mundo inteiro. Foi quando Bentinho entrou na cozinha e sentou-se ao meu lado. Estava cheio e com o cabelo bem penteado.
— Oxente! – seu Chico olhou para ele, curioso – para que essa arrumação toda, cabra? Parece até que vai se casar.
— Deixe-o, hômi – falou dona Lúcia, enquanto entregava um pedaço de bolo a Bentinho.
Charlote estava em pé, bem atrás de mim, só que dessa vez, distante. Não tinha a intenção de relar a mão nos meus cabelos e nem de ficar olhando nos meus olhos, como fazia quando éramos crianças. Eu sabia que sua postura era pura insegurança. Ela estava se protegendo de mim. Se protegendo de um futuro abandono.
— Vamos logo, Allan – Bentinho nem tocou no bolo, levantou-se apressado – essa demora toda a gente nem aproveita a festa.
— Festa? – eu já ia me levantando e quando me virei, lá estava ela, de braços cruzados, olhando para mim – você disse que era só uma reunião.
Bentinho olhou para mim, azurrado. Ele estava mais perdido do que bala em tiroteio.
— Modo de falar, não é Bentinho?
Ele sacudiu a cabeça e soltou um riso amarelado.
— A gente precisa ir – agarrei no braço do Bentinho e sair compelindo para fora – Daqui a pouco trago seu filho de volta, Dona Lúcia.
Eu estava respirando com dificuldade, a adrenalina misturada com o medo quase me fez ter um infarto.
— Você não me disse nada sobre guardar segredo – Bentinho também parecia cansado – por que não quer que a Charlote saiba?
— Oxente! – começamos a caminhar em direção a casa de Mateus – como eu vou chegar lá falando em uma festa de despedidas? Não quero vê-la sofrendo antecipadamente.
— Você age como se fosse o namorado dela – ela riu – morre de medo de levar umas chapoletada da Charlote.
— Quem dera se essa fosse minha preocupação.
Então nos calamos e apressamos o passo. Não demorou muito até chegar na casa de Mateus. Você podia percorrer Noronha inteira em questão de minutos. O portão estava aberto, entramos já animados e os meninos estavam lá, sentados, com pipoca e refrigerante nas mãos, assistindo um filme qualquer.
— Já começaram a festa sem a gente – falou Bentinho.
Matheus, Fabio e Bentinho nunca foram amigos. Se conheciam, porque todos em Noronha se conheciam, mas nunca, pelo menos que eu me lembre, eu tenha visto aqueles três conversando. Foi até engraçado ver a sintonia deles. Agiam como se fossem amigos de longa data. Eu fiquei aliviado em saber, que mesmo que eu fosse embora, eu deixaria Bentinho em boas mãos.
— Vocês demoraram muito – Fábio me abraçou – Estava dando uns beijinhos na Charlote antes de vir?
Os meninos caíram na gaitada.
— Não estava – fiz cara de triste – mas não foi por falta de vontade.
— Você está mesmo com os pneus arriados por ela – falou Mateus – por que não trouxe ela com você?
— Tá maluco, Mateus? – falei – Charlote não pode saber que eu vou embora, ainda não.
— Oxente! – replicou Mateus – então você já está decidido mesmo?
— Acho que não – Bentinho se meteu – olha para ele, está com cara de quem quer ir embora?
Todos olharam para mim e caíram na gaitada. Aqueles meninos sabiam se divertir. Agíamos como se ainda fossemos crianças.
— Só existe um jeito do Allan ficar – concluiu Fábio – a gente vai ter que amarrar ele, dá um sossega leão e aprisionar ele na torre mais alta, do castelo mais distante.
— Que diacho – Bentinho não se aguentava de tanto rir – e chamar a princesa Charlote para libertá-lo com um beijo de amor.
— Não tem nenhuma graça – eu falei, mas eles não paravam de rir – minha vida está longe de ser um conto de fadas.
— Relaxa, meu amigo – Falou Mateus – deixa essas preocupações para amanhã, e vamos aproveitar esse momento.
Ele tinha razão. Talvez aquele fosse nosso último momento juntos. Talvez eu fosse embora e nunca mais voltasse. Então empurrei todo o sentimentalismo para longe e voltei toda a minha atenção aos meus amigos. Assistimos um filme de terror, ou tentamos, porque Mateus quase se borrou todinho, visse. Depois jogamos truco, depois passamos para o dominó. Comíamos e bebíamos e eternizamos aquele momento que seria só nosso. O tempo era um bom medidor para mostrar os amigos verdadeiros. Nem o tempo, nem a distância conseguiram acabar com a nossa amizade. Aquilo sim era verdadeiro e seria para sempre.
— Verdade que você quer adotar a filha do Bernardo? – Bentinho perguntou e Fábio e Mateus ficaram espantados com a notícia.
— É verdade sim – respondi.
— Que maluquice, cabra – falou Fábio – pretende levar ela para São Paulo com você?
— Não tem nada decidido ainda – concluir – O Bernardo disse que vai passar a guarda dela para mim, se eu quiser, mas não sei se consigo fazer isso sozinho.
— Você é corajoso – concluiu Mateus – eu jamais teria coragem de criar um filhote de cruz credo.
Os meninos riram. Nem eu escapei.
— Não fale assim da Morgana – a defendi – ela é filha da Emília, mas não precisa ser parecida com ela.
— Isso eu concordo com você – falou Bentinho – mas pelo que a Charlote andou me contando, ela é pior do que a Emília.
— Não é bem assim – a quem eu queria enganar – talvez ainda haja salvação para ela.
— É, meu amigo – voltou a falar Fábio – você precisa se decidir logo sobre os rumos da sua vida, porque me parece que você já entrou em uma enrascada.
Mas a conversa sobre Morgana não se prolongou, logo os rapazes mudaram o rumo da prosa. Eu olhei no relógio e já eram onze horas. Meu celular tocou. Era o número da Roberta. Eu não queria atender, não para explicar coisas que eu não tinha respostas. Ela perguntou se eu estava voltando e eu não sabia a resposta. Fabio tinha toda a razão quando dizia que eu precisava decidir sobre a minha vida o mais rápido possível. Eu pensava nisso o tempo inteiro. Logo em seguida, fiquei com a consciência pesada por não ter atendido a Roberta. Durante aqueles vinte dias em Noronha, ela me ligou apenas duas vezes, e eu nenhuma única vez retornei à ligação. Eu não queria criar expectativas em nenhum dos dois lados. Não que meu coração estivesse dividido, ele pertencia somente a Charlote, mas eu não queria fazer a Roberta derramar lágrimas por causa da minha indecisão.
Então encerramos a festa. Eu abracei cada um deles, como não havia feito da primeira vez.
— Vou ficar aqui torcendo para que você mude de ideia na última hora – falou Fábio.
— Seja lá qual for a sua decisão – continuou Mateus – estaremos sempre aqui para o que der e vier.
— Obrigado – meus olhos já estavam marejados – Se eu ficar vocês serão os primeiros a saber.
E fui embora, em silêncio ao lado de Bentinho, que assobiava uma canção na noite fria de Noronha. Enquanto eu carregava o mundo nas costas, ele parecia ter ganhado o mundo naquela noite. Se divertiu como se não houvesse amanhã.
Chegamos no portão da casa, e a luz do quarto de Charlote já estava apagada. A porta da entrada já não estava mais aberta e o silêncio era o rei daquele lugar.
— Preciso de um último favor seu – falei, enquanto Bentinho lançava o olhar até mim – me dá uma carona até o aeroporto amanhã?
— Claro – falou, e então eu o abracei. Aquilo não era uma despedida – alguma coisa me diz que você vai acabar por desistir dessa ideia.
— Veremos – sorri e comecei a me afastar – não comente nada com a Charlote sobre isso, nem sob ameaça de morte.
Bentinho achou graça, porque sabíamos que Charlote era amorosa demais para ameaçar qualquer um. E eu caminhei de volta para casa, com o coração na mão. Entrei em casa sorrateiramente para não acordar os meus pais. Minha cama estava forrada e o quarto tinha um cheiro bom. Cheiro de infância. Dona Francisca havia se preocupado com cada detalhe. Arrumar o meu quarto como um pedido para eu ficar.
Me joguei na cama e deixei as lágrimas caírem. Eu queria que brotasse em mim aquele mesmo sentimento de quinze anos atrás, quando eu relutava em não partir de Noronha. Queria aquela vontade de fugir, me esconder do mundo para nunca ter que ir embora de Noronha mais uma vez. Mas esses sentimentos foram sufocados pelas obrigações do Allan adulto. Eu preferia ser honesto e fiel com seu Agenor, do que com Charlote, como se o amor que eu sentia por ela não fosse o suficiente. Eu me sentia um cabra frouxo e medroso. Porque no fundo era só isso que eu sentia, medo. Pensei tanto sobre tudo isso que cai no sono, entre a dor e as lágrimas de uma vida que eu não sabia que rumo tomar.