Capítulo 62
1132palavras
2023-01-18 21:56
Era uma sexta-feira quente em Fernando de Noronha, hora do intervalo. Maria estava lá, sentado com umas outras duas meninas. Estava feliz, sorridente, mostrando a ela um livro, que provavelmente havia ganhado de alguém. Eu queria acabar com a felicidade dela imediatamente. Então fui em sua direção, espumando pela boca e comecei todo o caos.
— Avalie só – eu arranquei o livro das mãos dela e uma página rasgou – como eu sou desastrada, não é.
— Você rasgou o meu livro? – ela tinha coragem, Maria não era como as outras, não parecia ter medo de mim – devolva já.
— Me obrigue – comecei a rir.
E ela tentou de todas as formas possíveis tomar aqueles livros de mim e em uma de suas tentativas eu tropecei e lasquei a testa contra a parede de uma das salas. Quando me dei conta a cabeça doía. A Maria olhou para mim tão apavorada que eu pensei enfim ter vencido. Com os olhos arregalados ela me pedia desculpas, mas eu não queria saber. Fechei o punho imediatamente e sei que o semblante no meu rosto se fechou como um dia ruim.
Então a Maria correu e o instinto me fez correr atrás dela. Talvez o resto da história você já conheça. A garota molhou as calças e foi parar no hospital. Eu sabia o que aquilo significaria para mim, mas só pelo fato de saber que eu havia conseguido colocar medo naquela metida a cavalo do cão, já valeria muito a pena.
Já na direção, dessa vez não foi Painho e Mainha que veio falar comigo, mas a tal da Charlote. Ela era uma mulher muito linda. Tinha os cabelos claros e lisos. Seus olhos eram verdes intensos e hipnotizantes. Quando eu olhava para eles, imediatamente eu sentia paz. Era até compreensível que Emília a odiasse tanto. Ela também não se parecia em nada com o que Emília tanto descrevia. Era paciente, atenciosa e amorosa. Acho que eu nunca conheci ninguém igual a Charlote. A mulher realmente estava disposta a me ajudar, mesmo que Mainha batesse de frente com ela o tempo inteiro, Charlote estava decidida a me salvar de todo aquele caos.
No começo eu fui resistente. Tentei a todo custo não dar muito espaço para ela, mas no fundo eu me sentia aliviada em saber que alguém naquela ilha estava realmente disposta a me ajudar.
— Escute, Morgana – painho sussurrava – deixe a Charlote te ajudar. Ela é uma boa pessoa.
— Mainha não gosta dela – falei, como se me importasse com a opinião da Emília, mas no fundo eu só queria me proteger. Manter a Charlote longe, me manteria a salvo dos castigos de Emília – eu não quero a ajuda dela.
— Que diacho! – ele não aceitava – Eu sei que você está com medo da sua mãe, mas eu estou aqui para te proteger.
Painho tentou argumentar de todas as formas, ninguém pode dizer que ele não tentou deixar a Charlote me ajudar, mas foi aí que o tal do Allan apareceu em cena, e a coisa mudou completamente. Painho se transformou em alguém irreconhecível, vigiava a Emília vinte e quatro horas por dia. Passou a beber em dobro, e as agressões físicas voltaram para ficar.
Eu estava vivendo um ciclo interminável de sofrimento. A sensação que eu tinha era que aquilo nunca iria terminar. Tinha como piorar? Tinha, quando Charlote envolveu o conselho tutelar a bomba atômica estourou na minha casa:
— A pois – Mainha estava virada no mói de coentro – a culpa é sua quando deu legalidade para aquela infeliz se meter na nossa família.
— Ela estava tentando ajudar – argumentou.
— Chamando o conselho tutelar? – ela gritava, como sempre. Emília não conseguia ter uma conversa saudável com ninguém – agora eles vão tomar a menina da gente.
— Não finja se importar com a Morgana.
— Podem levar amanhã mesmo, se quiserem – falou isso sem remorso, e meu coração se acochou – desde que não traga problemas para mim.
— Você merece mesmo ir presa? – acusou ela – eu mesmo deveria ter te denunciado ao conselho tutelar.
- Oxente – ela debochava dele – Você é um frouxo, Bernardo.
Mas painho não a agrediu, a ideia de me perder era aterrorizante para ele. Eu sei que ele lutou por mim até o final, com as armas que tinha, mas não foi o suficiente. Lembro que estavam somente eu e Emília em casa quando eles chegaram. Lembro do meu desespero, de implorar para que Emília fizesse qualquer coisa para me salvar de tudo aquilo. Como se ela quisesse. Aquela metida a cavalo do cão, a qual eu chamei de mãe por tanto tempo, ajeitou as minhas roupas e sem culpa me entregou aquelas pessoas estranhas. Eu esperneava e gritava no meio da rua, eu pedia por socorro, eu chamava por painho, mas já era tarde demais. Eles me levaram sem que eu pudesse ao menos me despedir.. Eu deveria ficar aliviada por eles estarem me salvando daquele inferno, mas eu tinha medo do futuro, do que me aguardava fora dali. Eu só pensava que eu encontraria pessoas piores do que Emília, e que isso poderia ser meu fim.
Durante semanas eu fiquei em um abrigo, esperando qualquer solução para o meu caso. Ninguém foi me visitar ou tentar me resgatar dali. Eu havia sido abandonada. Então eu recebi uma carta de painho:
“Olá Morgana
Sinto muito por tudo que fiz você passar. Eu não estava lá para te salvar desse momento tão difícil. Me desculpe por não ter ido te visitar, mas fui detido e não poderei ir aí te buscar. Peço que confie em mim e faça tudo o que eu te pedir daqui para frente. Vou passar a sua guarda para alguém de confiança, e daqui alguns dias ele irá te buscar. Seja umas boas meninas, obedeça às ordens dele, o trate como se ele fosse o seu pai. Eu jamais te abandonarei, minha filha. Mesmo de longe eu estarei aqui te observando e tendo notícias suas. Escreva sua própria história, Morgana, quebre o ciclo interminável e maldito que eu e sua mãe a obrigamos viver. Não seja parecida nem com a sombra da Emília. Seja alguém melhor, por você. Esqueça o passado e siga em frente, acreditando que o mundo pode ser todo seu. Acreditando que você é digna de ser amada. Porque você é. Um futuro brilhante te aguarda. A vida te dá outra chance, não a desperdice.”
Com carinho, Bernardo.
E eu chorei como nunca havia chorado antes.
Pela primeira vez eu agradeci a Deus por aquele momento. Eu estava livre, de todo ódio, de todo o medo, livre da Emília, enfim.
Eu não dispensaria essa oportunidade, por você painho.