Capítulo 59
1669palavras
2023-01-18 21:55
A pior surra que eu levei até hoje foi em um dia que painho chegou em casa e no meio de uma discussão ele espancou ela. As brigas sempre envolviam um tal de Allan. Emília sempre usava esse nome, e por algum motivo Bernardo ficou furioso. Provavelmente eu achava Emília burra, ou alguém que gostava de apanhar, porque ela sabia que era só falar aquele nome que Bernardo bateria nela. Mas ela continuava cometendo o mesmo erro de sempre e as consequências sempre respingaram em mim.
Eu estava parada no meio do corredor, onde acontecia a briga. Eu sempre presenciava tudo. Quando o painho terminou de bater nela, Emília percebeu que eu estava lá, observando tudo. Talvez para ela aquilo fosse uma afronta, uma humilhação, porque mesmo machucada, ela levantou-se arretada em direção a mim e o mesmo cinto que painho usou para bater nela, ela usou para bater em mim. A fúria dela era tão grande que eu gritava de dor. Fiquei uma semana sem conseguir deitar de costas ou sentar direito por causa dos hematomas no meu corpo. Eu não tinha ninguém para me salvar de todo aquele caos, ninguém para curar minhas feridas.
— Da próxima vez você pense bem antes de ficar de mexerico com as coisas que acontecem aqui em casa – ela tinha acabado de me espancar e não havia nenhum remorso na sua expressão – não quero ouvir você falar qualquer coisa que aconteceu aqui, entendeu Morgana?

— Mainha...
— Não me chame de Mainha – ela gritou. Estava feito um pantel – eu não sou a sua mãe.
E saiu do quarto me deixando caída no chão, com o corpo sangrando. A sensação que eu tinha é que eu poderia morrer a qualquer instante, que Emília faria qualquer coisa para conseguir isso. Ela me odiava por vários motivos que não eram eu, mas o resto do mundo. Eu queria fugir daquela casa, mas não tinha para onde ir. Às vezes eu queria morrer, mas meu instinto de sobrevivência sempre falava mais alto. Às vezes eu chorava a noite inteira até cair no sono e depois tinha pesadelos horríveis com Emília. Eu queria pedir socorro, mas para quem? Os vizinhos sabiam de tudo e ninguém era capaz de falar nada contra aquele mal. Todos eram cúmplices do inferno que se tornara a minha vida.
No dia seguinte eu mostrei para painho o que Emília havia feito, mesmo ela me ordenando a não fazer aquilo:
— Ela passou de todos os limites – ele dizia, azuretado e o bafo de pinga que saia da sua boca era horrível – eu sinto muito, Morgana. Isso não vai ficar assim.
— Não faça nada, painho – eu supliquei – deixe isso para lá. Se Emília souber que te contei, eu vou apanhar de novo.

— E ela ainda te ameaçou, foi? – se levantou avexado, prestes a cometer outra loucura – eu vou quebrar aquela mulher no coro.
— Que diacho! – eu gritei e ele voltou a atenção até mim – se o senhor não tivesse batido nela, talvez eu não tivesse apanhado.
Painho, no fundo, entendia o que estava acontecendo, sabia das suas responsabilidades, mas a história das nossas vidas já havia saído do controle, e talvez não tivesse mais como consertar.
— O senhor tem que me prometer que não vai se meter nisso – eu o abracei, chorando – por favor, painho, não piore as coisas.

— Isso não está certo, Morgana – ele disse. Agora nós dois chorávamos no meio da casa.
— Nada está certo, mas eu não quero apanhar de novo por uma coisa que eu não tenho culpa.
Ele olhou para mim e ficou pensando sobre tudo aquilo. Eu sabia que Bernardo queria me proteger das maldades de Emília, mas no fundo, mesmo sem confessar, sabíamos que a culpa também era dele. A violência gerava a violência e a maior vítima dela era eu.
— Eu prometo a você que ela nunca mais vai te bater – olhou bem no fundo dos meus olhos – mas eu não posso me calar.
— Talvez se o senhor parasse de bater nela as coisas melhorassem.
— Eu prometo isso a você também.
Me deu um beijo na fronte e saiu. Eu não sabia o que Bernardo faria, mas meu coração se encheu de medo com as possibilidades que surgiam na minha mente. Eu sabia que o único capaz de enfrentar o mundo por mim era ele e que painho usaria qualquer arma para parar Emília imediatamente.
Os dias foram passando e as coisas começaram a mudar lá em casa. Painho já não bebia tanto quanto antes, Emília não voltou a me bater, e acredite, Bernardo já não levantava a mão para ela. Seja lá o que ele tenha dito a ela, havia funcionado ou pelo menos, eu acreditava que sim. Mas a violência que antes era manifestada nas surras, se materializou nas palavras. Ela já não podia mais me bater, mas seus insultos se tornaram mais dolorosos do que qualquer tapa.
— Eu devia ter te abortado na primeira oportunidade que tive.
Ela começava a falar coisas assim sem motivos. Às vezes eu estava assistindo TV, às vezes eu estava estudando, mas todas as vezes eu estava calada. Eu nunca direcionava minhas palavras a Emília, porque eu sabia que com ela não haveria diálogos, apenas insultos.
— Você ainda estuda para que? Não há futuro para alguém como você. Vai morrer na sarjeta, que é onde você merece estar.
— Porque você me odeia tanto?
Eu perguntei, mas eu havia feito essa pergunta tantas vezes a ela, que já tinha perdido o sentido.
— Oxente! – as respostas sempre viam com deboche e desdém – eu não te odeio. Você é insignificante para mim.
E a resposta era sempre a mesma. Eu me calava, engolia o choro e fingia não me importar. E eu fui acumulando anos de palavras duras vindo de alguém que deveria me amar, mas que não se importava comigo.
— Porque você não morre de uma vez? Até para isso você é inútil.
Quando eu adoecia, ao invés de remédios, recebia desejos de morte. Se eu não tivesse painho ao meu lado, certamente eu teria morrido. Porque Bernardo poderia ter sido tudo, violento, frouxo, covarde, mas ele me salvou de uma tragédia maior. Quando eu mais precisei ele estava lá, mesmo que por poucas vezes, ele foi o meu herói.
Mas como a alegria de pobre dura pouco, por causa de uma agressão na escola, eu fui expulsa e nessa troca de colégio, apareceu em nossas vidas uma tal de Charlote. Se o nome do Allan deixava painho feito um pantel, a tal da Charlote fazia Emília arrancar os cabelos. Ela realmente odiava aquela mulher, odiava bem mais do que a mim.
— Não quero você falando com ela, entendeu? – ela estava arretada – Charlote é o demônio que só está aqui para infernizar as nossas vidas.
— Oxente! – painho debochou – você falando de demônio?
— Você entendeu, Morgana?
Ela ignorou completamente o que painho falava e voltou a atenção até mim.
— Charlote só quer ajudar – ele interrompeu ela.
— Ajudar quem? – pronto, o caos ia começar – não quero ela perto da Morgana, entendeu Bernardo?
— Porque não? – ele a encarou – tem medo dela fazer ruir esse seu castelo de maldades?
— Se esse castelo ruir, você cai junto.
Tinha alguma coisa nessa história toda que eu ainda não sabia, mas era estranho o jeito que os meus pais se comportavam quando o assunto era Charlote e Allan.
— Você vai ter uma conversa com o seu amigo, Fernandinho para manter aquela metida da Charlote bem longe.
— Porque eu faria isso? – Painho a questionou – você não se importa com a Morgana.
— Claro que não – lançou um olhar de desdém para mim – mas eu não quero dar a Charlote o prazer de se sentir a salvadora da pátria.
— Então vá você mesma e impeça ela – painho gritou. Ele odiava ouvir Emília confessando que não se importava comigo – eu não me importo que ela ajude Morgana, desde que ela salve minha filha de você.
— Nem mesmo sabendo que o Allan pode ajudar?
Fodeu a tabaca de chola. Ela pronunciou o nome proibido, causador de todo o caos e tragédia das nossas vidas. Painho olhou para ela com aquele mesmo olhar aterrorizante que fazia antes dar uma chapuletada nela.
— O que o Allan tem a ver com isso?
— Por enquanto nada – concluiu – mas já imaginou se ele volta, com toda a certeza vai fazer parte disso.
— Você está blefando – ele olhou para mim e sei que foi a minha presença que o impediu de bater em Emília depois de tanto tempo – seja como for, eu como pai da Morgana não me importo que a Charlote a ajude.
— Mas eu me importo – ela gritou quando percebeu que seu plano havia sido frustrado – ela só fará isso por cima do meu cadáver.
Depois desse diálogo, Emília, pela primeira vez, veio conversar comigo. Não houve ofensas, nem insultos, pelo menos não direcionados a mim. Ela falava de Charlote e do mal que aquela mulher poderia causar a mim. Ela contava sobre o seu tempo de colégio e o quanto foi cruel com a Charlote. Emília se justificava dizendo que Charlote se vingaria dela, usando-me como escudo. Na boca de Emília, Charlote era mal, invejosa e provavelmente uma assassina.
Eu achava tudo aquilo uma loucura e por algum motivo não conseguia acreditar em nada que Emília falava para mim. Como alguém poderia ser pior do que ela? Talvez Charlote tivesse se tornado alguém ruim por causa da própria Emília, o que era justificável. Mas o que era horrível nessa história, era perceber que todo mundo que passava pela vida de Emília ficava com marcas profundas ou se tornava alguém tão cruel quanto ela.