Capítulo 58
780palavras
2023-01-18 21:55
Eu não tenho muitas lembranças da minha infância, pelo menos antes dos meus 5 anos, mas quando passei a ter, elas foram se acumulando como algo ruim, fantasmas que me apavoravam dia e noite.
Eu não tenho lembranças da Emília me pegando no colo com amor, ou dizendo o quanto me amava. Não lembro dela me colocando para dormir ou me dando um beijo que toda mãe daria em um filho. Com o tempo, conforme eu ia crescendo, fui percebendo que minha mãe me odiava e que se ela pudesse me ver morta, certamente o faria.
Bernardo era diferente. Ele tentava ser um bom pai, se esforçava mesmo, mas a bebida não deixava. Eu pouco o culpo por toda essa tragédia que se tornou minha vida, painho também foi vítima do inferno que era viver com Emília.
— Porque ela age assim? – ele estava sentado do meu lado, assistindo desenho comigo. Eram raros os momentos sóbrios que painho passava comigo. – Porque a Emília me odeia tanto?
Acho que a pergunta o pegou de surpresa. Bernardo me olhou azuretado, e pensou muito no que ia me dizer. Eu só tinha onze anos de idade, mas percebia coisas que crianças na minha idade jamais deveriam saber.
— A Emília age assim como todo mundo – ele respondeu, meio abilolado – ela odeia todo mundo.
Essa não foi a melhor resposta, até Painho percebeu isso.
— Quer dizer... – pensou mais um pouco – A Emília não te odeia, ela só não aprendeu a amar as pessoas.
— Eu não entendo.
Fiquei borocochô, porque eu realmente sentia falta de um amor que nunca tive.
— Tem coisas que é melhor não entender, Morgana – ele relou a mão nos meus cabelos – a sua mãe também teve uma infância difícil. Talvez essa é a forma que ela encontrou de se vingar das injustiças da vida.
— Continua sendo injusto
— Concordo.
Então ele se calou por um momento e eu fiquei pensando no que ele acabara de dizer. Qual era a lógica de alguém que não teve uma infância feliz, descontar isso em outras pessoas? Mas quando as coisas se tratavam de Emília, tudo era possível.
— O que de tão grave aconteceu com ela, na infância? – perguntei, rompendo o silêncio – eu quero realmente entender qual a parte da culpa eu carrego para merecer tudo isso.
Painho olhou para mim com cara de pura piedade.
— A culpa não é sua Morgana – eu sabia que ele era o único que se esforçava para mostrar para mim, que apesar de tudo, eu era amada – A mãe da Emília, agia com ela exatamente como ela age com você. É um ciclo ruim e vicioso.
Parou um pouco e seus olhos encheram-se de lágrimas.
— O problema da Emília não é você – engoliu a seco – o problema dela sou eu.
— Mas painho...
— Esse assunto não é algo que você entenderia – me interrompeu – quando você crescer vai entender. Não tem porque ficar pensando nisso, Morgana. Ela pode até ser uma infeliz oca por dentro, mas eu me importo com você. Eu amo você e isso basta.
Talvez bastasse para ele, mas nunca foi o suficiente para mim. Depois dessa conversa, eu nunca mais ouvi um painho dizer que me amava. Cada vez que o tempo passava, ele se afundava na bebida e no caos. Desde muito cedo eu tive que entender que não havia ninguém para cuidar de mim e que eu precisava aprender a me virar sozinha.
Emília era o tipo de mulher que não se importava com as responsabilidades que lhe cabiam. Não era uma boa mãe, nem uma boa dona de casa, nem uma boa mulher. Durante muito tempo eu me questionei porque ela havia casado e tido eu tão nova. Com o passar dos anos, alguns parentes mexeriqueiros acabavam me contando o que achavam que sabiam, e sabendo da história eu chegava a conclusão que tudo isso não tinha como dar certo. Painho era violento com ela. Eu não me lembro de nenhuma vez que ele tenha chegado em casa e uma briga não acontecesse entre eles dois. A gritaria era a boléu, ofensas, xingamentos e violência. Bernardo batia nela todas as vezes que achava que Emília merecia e ela sofria calada. Às vezes eu até sentia pena dela, mas só às vezes, já que Emília sempre me usou como bode expiatório. Lá em casa funcionava assim. Bernardo batia nela, ela batia em mim e eu batia nos meus colegas de sala de aula. Talvez o painho tivesse razão quando dizia que aquilo parecia um ciclo interminável de ódio e caos.