Capítulo 55
1551palavras
2023-01-18 21:54
Depois que o Allan foi embora, as coisas não saíram do jeito que eu queria. Emília encarnou de vez nela, porque a culpava pela partida do Allan. Quer dizer, ela não contou isso a ninguém, porque nessa época Emília já andava de chamego com Bernardo, mas eu não era bobo, a metida a cavalo do cão podia enganar o frouxo do Bernardo, mas a mim ela não enganava.
— Preciso da sua ajuda, Fernandinho – ela chegou toda desconfiada, olhando para os lados como se tivesse medo de ser pega – quero aprontar umas boas com Charlote.
— Não quero participar disso.

— Deixe de ser frouxo, cabra – me reprimiu – vai ser só uma brincadeira.
— Arrume outro otário para ser seu cúmplice, visse – fui firme com ela – eu to fora.
— A pois – olhou bem em meus olhos – faz tempo que ando desconfiada que você arrêia os pneus para balofa.
- Está maluca, Emília? - eu a peitei – se está me ameaçando, aconselho a parar já. Não sabe com quem está se metendo, visse.
—Avalie só – ela riu. Eu odiava aquela cara de deboche da Emília – então temos a mesma percepção. Ouse você a se meter a besta comigo.
—Era só isso o que tinha para falar?

—Sim – revirou os olhos, deu de costas e saiu andando com aquele jeito patricinha que só ela tinha – observe a sua amada Charlote sofrer.
Então ela caminhou em direção a Charlote e as coisas aconteceram tão rápido que quando percebi Charlote já estava no chão, com um corte profundo na testa. Eu queria correr até lá e ajudá-la, mas não consegui, porque quando o assunto era ela eu me acovardava todo. Eu paralisava, não conseguia raciocinar, nem agir. No dia que ela quase morreu, eu cheguei até ir ao hospital, mas não tive coragem de entrar. Com que cara eu apareceria ali: Oi, Charlote, vim te visitar. Imagine a cena? Meu Deus, eu sentia vergonha só em pensar.
Mas eu não sabia como me aproximar dela, ou falar qualquer coisa e por anos eu guardei esse sentimento só para mim. Por outro lado, eu parecia um cão de guarda, acompanhava a vida de Charlote, mesmo de longe. O processo de emagrecimento, a abertura da ONG, o quanto ela ficava mais bonita e inteligente com o passar dos anos. E o resto da história vocês já sabem, naquele dia na praia foi o dia que eu, enfim, tive coragem de falar com ela pela primeira vez. Talvez eu tivesse agido um pouco tarde, talvez se eu fosse um pouco mais corajoso eu a teria conquistado. Talvez.
Minha aproximação com a Charlote trouxe também novas amizades, como a Betânia e o Jacob. Eu tentei também ser amigo do Bentinho, mas o cabra era fechado, desconfiado e parecia não gostar muito de mim. O tamborete de zona foi a mais difícil de conquistar, mas quando dobrei a marra da Betânia ganhei também uma aliada.

— Vai me ajudar a conquistar a Charlote? - eu tinha acabado de contar a ela sobre os meus sentimentos – posso contar com você?
— Oxê! – ela fazia aquele bico ridículo que dava a impressão de ser durona – você não merece alguém como a Charlote, ela é areia demais para o seu caminhãozinho, visse.
— Concordo – disse – vai ou não me ajudar?
— Só porque você foi sincero – concordou – mas vamos com calma. Eu conheço a Charlote e se ela souber agora, não vai funcionar.
— Oxente – discordei – já esperei tempo demais.
— Espere mais um pouco então – bateu o pé – você precisa conquistar ela e ela precisa confiar em você. Não é porque ela te aceitou na ONG, que ela confia em você.
Fiquei pensando naquilo. Betânia tinha as suas razões, já que ela conhecia Charlote melhor do que eu.
—E também tem o Allan – ela falou aquilo sem olhar para mim – Charlote ainda gosta dele.
—Que diacho! - resmunguei e ódio que se apossou de mim ao ouvir o nome dele quase me fez surtar – ela ainda está encarnada nisso?
—A pois – disse – por isso que você precisa ter calma. Se colocar a carroça na frente dos bois, pode arruinar tudo.
Encerramos o assunto e eu fiquei pensando o quanto Charlote ficaria arretada quando soubesse que Betânia havia me contado o seu segredo. Eu lembro do ódio que eu senti quando descobri que ela era apaixonada pelo Allan. Eu desconfiava, mas nunca quis acreditar e nem mesmo depois de todos aqueles anos, ela não conseguia esquecer ele. Às vezes achava que amar ela era um caso perdido, que nada poderia reverter essa situação, mas aí me lembrava que o Allan talvez nunca mais voltasse, e que eu tinha o caminho todo livre para mim, e que não podia de forma alguma desperdiçar aquela grande oportunidade.
Tinha também o Jacob, e de todos nessa história, foi com ele que eu tive o relacionamento mais desastroso. Eu me envolvi no tráfico de Noronha muito cedo. Eu lembro dos maloqueiros que ficavam na porta da escola procurando garotos como eu para uma grande oportunidade de empregos. Vender drogas em Noronha era um bom negócio, e eu topei logo de primeira. Mas aí no meu caminho tinha um Jacob.
Jacob era um cara obstinado. Ele sonhava com o dia de ir embora de Noronha, lembro das vezes que ele se queixou de não ter a mesma sorte que o Allan tivera. Mas fui eu que ofereci a ele a melhor oportunidade da vida. Ele tinha tudo para dar certo no tráfico, porque era um cara bom de lábia, rápido nas vendas e conseguia faturar mais do que qualquer outro vendedor. Confesso que fiquei com inveja dele, e como eu sou um cara que não aceita ninguém no meu caminho, dei um jeito de melar a fama do Jacob, e afundar ele no mais escuro abismo.
— Experimenta – aproximei o bagulho até ele, depois de dar a minha tragada – isso daqui é muito maneiro.
— Não sei se é uma boa ideia.
— Deixa de ser frouxo – continuei com a droga estendida até ele – todo vendedor precisa ser um usuário para fazer o tráfico aumentar.
Eu não tinha ideia do que estava falando, mas eu tinha certeza que eu precisava fazer o Jacob se viciar para poder, assim, arruinar com as vendas dele. Eu consumia apenas maconha, talvez por isso não tenha deixado o vício me afundar, mas com o Jacob foi diferente. Não foi tão difícil. Ele começou com a maconha, passou para a cocaína e depois já estava no crack. Muitas vezes incentivei ele a usar as drogas que venderia com a desculpa de que depois ele pagaria. Mas aquilo foi virando uma bola de neve, Jacob já estava tão viciado que nem percebia no buraco que havia se enfiado. Minha intenção nunca foi ver Jacob morto, mas eu contribuí muito para aquilo. Ninguém nunca soube, mas fui eu que caguetei ele para o JP, indicando sua localização no dia da sua morte. Eu estava lá quando ele apertou o gatilho. Eu posso não ter matado o Jacob, mas o levei até a morte.
Meu único remorso nessa história toda foi ver o sofrimento da Charlote. Eu ainda lembro dela correndo, com a expressão mais desesperada que eu já vi no rosto de alguém, quando viu o irmão sendo assassinado. Doeu ver o sofrimento dela, mas eu jamais teria coragem de assumir tudo o que havia feito. Ela jamais me perdoaria por ter ajudado a matar o seu irmão.
Eu guardei muitos segredos durante todos aqueles anos. Segredos que eu sustentei por amor a Charlote, esse mesmo amor que me fez cometer loucuras. No final das contas eu terminei só e enjaulado feito um bicho, e pior, sem o amor dela. Talvez o meu maior erro foi ter ajudado na morte de Jacob, se aquele treloso não tivesse morrido, o Allan não teria voltado e eu teria Charlote só para mim.
Lembro do dia em que a casa caiu. Eu conversava com JP sobre uma grana que eu pagaria a ele caso matasse o Allan. Eu estava disposto a matar o Allan. Eu iria até as últimas consequências para conseguir o que eu queria, mas fui pego antes de concluir o meu plano e confessar tudo. Quando a gente é novo e imaturo, não temos a percepção de medir as consequências dos nossos atos. Eu só enxergava a Charlote e me ceguei para todo o resto.
Agora, dentro de uma cela, esperando os policias virem me buscar para ser transferido para o presídio de fortaleza, eu assisto minha imagem na TV da pequena delegacia, eu fiquei famoso por ser cúmplice no assassinato de um maloqueiro safado que nem o Jacob. Que ironia da vida! O primeiro homicídio depois de não sei quantos anos, eu ajudei a cometer. Foi inevitável o riso e nem sei explicar o porquê desse sentimento. Esse não era o fim que eu queria para mim, mas eu trilhei esse caminho desde o colegial. Eu carregaria esse amor pela Charlote pelo resto da minha vida, mesmo sabendo que ela jamais poderia ser minha um dia, eu a amaria eternamente.