Capítulo 56
1536palavras
2023-01-18 21:54
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Um final quase feliz
Enquanto esperávamos o delegado nos chamar, fiquei pensando nas coisas que Fernandinho nos contou. Painho, anos atrás havia feito um curso de vigilante. Trabalhou durante muitos anos como guardinha do posto de saúde de Noronha. Depois foi exonerado do cargo pelo novo administrador. Então passamos a viver de pesca. Não tinha o que me queixar, painho também não. Em um lugar como Noronha, as pessoas precisavam aprender a se virar com o que tinha: artesanato, pesca, turismo! Essa era a vida do povo daqui. Até que um dia painho viu o anúncio das empresas Agenor, que abria vagas, não me lembro quantas, para todos os tipos de profissão e vigilante era uma delas. Então em uma tarde quente, eu tinha acabado de chegar do colégio, e ele me pediu para que eu fosse na lan house e fizesse um currículo para ele. Eu não entendia muito dessas coisas, mas me virei. Painho estava esperançoso com a chance de um emprego novo, mas eu não me preocupei porque achei que seria impossível com tamanha concorrência, mas seu Natalino conseguiu. Eu sempre achei que foi pelo bom currículo que painho tinha, com um pouco de sorte, claro, mas ouvir Fernandinho confessar que todo o tempo teve a mão dele na nossa ida para São Paulo, me fez pensar em muita coisa. Essa decisão mudou completamente a minha vida. Eu jamais me esquecerei da alegria no rosto de painho por ter conseguido aquele emprego, foi bom para ele. Mas também não esqueço da tristeza que senti por partir. Da dor que se apossou do meu coração durante dias por estar longe dos meus amigos, de Charlote. Como foi difícil ficar longe de Charlote. Como foi difícil decidir seguir sem ela.

Agora eu olhava para ela, tão frágil emocionalmente por tudo o que aconteceu e pensei que minha partida foi o passe inicial para essa tragédia toda. Se eu não tivesse ido, Fernandinho não teria entrado na vida dela, eu teria cuidado de Jacob e hoje nós estaríamos juntos. Eu não esquecia que eu também tinha culpa, se eu não tivesse desistido tão facilmente dela talvez as coisas não acabassem assim. E a angústia explodiu no meu peito. Foi difícil chegar na parte boa, apesar de tanta dor, essa história também tinha sua parte boa.
Seu Francisco entrou feito um pantel na delegacia, acompanhado por dona Lúcia, por seu Natalino e dona Francisca.
— Se acalme, hômi – painho passava as mãos nas costas do amigo – o cabra safado já foi preso e a justiça será feita.
— Oxente! – Então ele lançou um olhar para Charlote. Não era um olhar de tristeza ou recriminação, mas um olhar de “eu sinto muito minha filha” – E esse tal de Fernandinho? Eu recebi aquele treloso dentro da minha casa e o tratei como se fosse um filho. Avalie só.
Era compreensível a revolta de seu Francisco. Então Charlote se levantou e abraçou ele enquanto sussurrava pesarosa que a culpa era dela.
— Não diga isso, Charlote – seu Francisco acochou ela em um abraço – não transfira a culpa deles para você, visse?

Eu amava aquela família.
Foi então que o delegado chamou Charlote e Betânia até a sala dele.
Resumindo a história: Charlote e Betânia reconheceram o cabra safado do assassino de Jacob. Aliás, esse foi preso na boca de fumo em que comandava, ele e mais outros maloqueiros foram presos também. Fernandinho também foi preso em cana por tráfico de drogas e corrupção. A polícia descobriu que ele estava desviando a verba pública dada pelo governo de Pernambuco para a ONG. O dinheiro foi usado no tráfico de drogas. Ele pegaria de 3 a 15 anos de prisão. Isso abalou Charlote, dê um jeito, que eu tive vontade de arrebentar a cara de Fernandinho mais uma vez.
— Fudeu a tabaca de chola – Betânia deixou o corpo desabar no banco duro de madeira. Aquilo deve ter doido – aquele fi duma égua do Fernandinho roubou a gente?

— Lamento – disse – mas vindo dele nada de bom pode se esperar.
— A pois – Betânia era a única que se pronunciava, porque Charlote parecia ter sido calada pelo próprio choro – e imaginar que eu quis que ele namorasse com a Charlote.
— Que diacho, Betânia – então, enfim ela falou – tem erros que é melhor nem lembrar, visse.
—Você tentou juntar a Charlote com o Fernandinho? - continuei com o assunto, mesmo sabendo que Charlote não queria nem ouvir sobre aquilo. Mas foi uma verdade difícil por demais de aceitar.
— Avalie só – ela riu – aquele treloso me enganou direitinho com aquele papo de amar a Charlote, visse.
Então me lembrei do tempo do colegial, do jeito como Fernandinho agia todas as vezes que Charlote estava por perto. Eu sempre percebi o brilho diferente nos olhos dele quando olhava para ela. O jeito bobo como agia. A verdade estava o tempo todo estampada na minha cara, eu que nunca quis acreditar.
— Dessa parte eu tenho que discordar de você, Betânia – continuei – o Fernandinho gostava da Charlote, mas era um amor doentio.
— Oxente! - voltou a falar a Charlote – Vocês vão continuar aqui, discutindo sobre a minha vida, na minha frente?
— Eu nem percebi que você estava aí – Betânia caiu na gaitada e eu acabei entrando na onda – tá tão calada, que acabou ficando imperceptível.
— Você nunca muda esse seu jeito, né Betânia? – Charlote não estava brava, ela estava triste – não há nenhuma graça nessa situação.
— Me perdoe – ela engoliu a seco, percebendo a tristeza da amiga – mas eu não vejo outra saída a não ser rir. Nem fudendo a tabaca de chola eu vou ficar chorando por causa daquele treloso do Fernandinho.
Então nos calamos e a Charlote até sorriu do jeito único que Betânia tinha de levar a vida. Mas eu fiquei com um nó entalado na minha garganta. Eu queria dizer um monte de coisas para ela. Queria dizer o quanto a amava, o quanto me arrependia por tudo que fiz e que me acovardei a fazer. Eu entreguei a Charlote naquele caos e agora era tarde demais para tentar corrigir qualquer coisa.
Quando saímos da delegacia já era noite e sentíamos uma leveza no ar. O semblante de dona Lúcia agora era mais calmo. Seu Chico até esboçava um sorriso. Eles sabiam melhor do que ninguém que nada poderia trazer o filho deles de volta, mas ver o assassino de Jacob preso trouxe paz para o coração e força para seguirmos em frente.
Mal tínhamos saído da delegacia e Bernardo veio correndo em nossa direção.
— Preciso da sua ajuda, Allan.
O semblante no rosto dele era de puro terror.
— Oxente! - tentei acalmá-lo – o que aconteceu dessa vez?
— O conselho tutelar está lá em casa – ele estava ofegante e o hálito que saia da boca dele não era nada agradável – eles vão levar Morgana.
Então ele começou a chorar. Eu sabia que Charlote estava bem atrás da gente, observando tudo, calada. Mas esse silêncio não durou muito tempo.
— Eu sinto muito, Bernardo, – ela tomou a frente – mas vai ser melhor para a Morgana assim.
— Melhor? - eu vi a fúria nos olhos dele – Como pode ser melhor ela ficar longe dos pais dela?
— Que pai? - ela perguntou em um sinalzinho de alerta se acendeu em mim – vocês passaram a vida inteira negligenciando aquela menina. Não a educaram, não a amaram, o que pode ser pior?
— Como você pode afirmar um negócio desses? - eu sentia que aquilo não terminaria bem – você não estava lá. Eu sempre amei a minha filha e ninguém tem o direito de tirá-la de mim.
— Lamento informar que tem sim.
—É claro – ele enxugava as lágrimas e até soltou um riso de deboche – você agora quer ser a salvadora da pátria, né Charlote? A gente foi tão cruel com você, que criamos um monstro.
—Não fale assim dela – voltei a tomar a frente criando uma barreira de proteção entre Charlote e Bernardo – no passado eu permitia esse tipo de insulto e esse foi meu pior erro, mas eu não vou mais deixar vocês ofenderem ela, entendeu, Bernardo?
Senti a mão da Charlote tocar o meu braço, mas minha atenção estava totalmente voltada para o Bernardo. Eu olhava bem nos olhos dele, enquanto ele permanecia em silêncio, como se calculasse o passo seguinte para livrar a filha dele de todo aquele caos.
— Ainda existe uma solução, Bernardo – Charlote falou logo atrás de mim. Ela tinha acabado de ser ofendida, mas agia como se não tivesse – A decisão do conselho tutelar não é definitiva. Eles vão te fazer uma proposta de obter a guarda da Morgana de volta, desde que você aceite um tratamento para dependentes químicos.
Ele parecia meio azuretado, mas eu conseguia ver uma faísca de esperança brilhar nos olhos dele. Mas foi aí que a Emília apareceu. Ela caminhava feito um pantel em nossa direção. Pronto, agora o circo estava armado.