Capítulo 53
1522palavras
2023-01-18 21:53
Eu gostava das zoações que fazíamos com a Charlote, eu nunca havia visto problema nisso. A gente se divertia, tinha lá sua graça, por mais que muitas vezes eu conseguisse vê o sofrimento no semblante dela. Ela nunca revidava ou se defendia, nem o próprio Allan a defendia. Às vezes até me dava pena dela.
Foi em um desses dias, quando a Emília brincava com a aparência dela, que tudo aconteceu. Ela chamou a Charlote de balofa e riu do laço que a menina tinha colocado na cabeça. De cabeça baixa, ela nunca encarava ninguém, mas naquele dia ela resolveu lançar o olhar até mim.
Eu não sei o que me deu. Aqueles olhos verdes intensos, cheios de lágrimas brilhavam na minha direção. Ela olhou tão profundamente para mim que até achei que veria minha alma. Eu nunca tinha reparado o quanto Charlote tinha os olhos tão lindos, o quanto ela era linda. Eu não me lembro por quanto tempo ficamos nos encarando, mas foi o suficiente para despertar algo estranho em mim.

Eu tentava parar de pensar naqueles olhos, mas era inútil. Conforme os dias foram passando, a vontade de ver Charlote todos os dias ia aumentando cada vez mais. Oxe, véi, que onda, eu tinha até mais disposição para ir à escola. Quando chegava, procurava por ela e quando a via o dia parecia iluminar.
Para disfarçar o que eu sentia ou esquecer dela, eu comecei a intensificar as zoações e cheguei até a participar das piadas, mas, no fundo, eu ficava borocochô com o sofrimento dela. Me sentia um monstro fazendo aquilo. Será que Charlote era mesmo gente boa como o Allan sempre dizia? Aparentemente, ela parecia uma menina insegura, tímida e indefesa. Ninguém conseguia enxergar beleza nela, porque, talvez estivesse escondida por detrás de toda aquela banha. Mas uma coisa era fato, o Allan não gostava das pessoas por qualquer motivo, e ele tinha fortes razões para gostar tanto daquela menina.
Já me arrependi muito por ter feito a Charlote sofrer, e quando via que estávamos passando dos limites eu tentava reverter a situação.
— Não acha que está exagerando, Emília? - perguntei
— Oxente, Fernandinho – ela riu desconfiada – desde quando chamar um gordo de gordo é exagero?
— Você entendeu o que eu quis dizer – concluir.

— O que eu não estou entendendo aqui é porque você está defendendo ela.
— Não estou defendendo ninguém, visse – fiquei arretado. Tinha medo de Emília descobrir.
— Não vai me dizer que se apaixonou pela balofa?
— Deixe de leseira, Emília – minhas mãos tremeram – o único apaixonado pela Charlote nessa escola é o Allan, visse.

Eu consegui encerrar o assunto e conseguir também deixar Emília bem arretada com aquele comentário. Logo ela tirou o foco de mim e depositou toda a sua desconfiança em Allan. Ainda bem, não queria aquela metida encarnada em mim.
Mas o menor dos meus problemas era a Emília. Eu amava a Charlote, o que era engraçado quando eu lembrava que só me apaixonei por ela por causa de um olhar. Eu não sabia como esconder isso por muito tempo. O desespero de ficar perto dela crescia dentro de mim, e eu nunca tinha trocado qualquer palavra com ela na vida. Como a gente pode desejar alguém que a gente mal conhece? Como eu havia me apaixonado por uma gorda, vei?
Então bolei um plano.
Enquanto ela estava no recreio, peguei seu livro de história e guardei na minha mochila. Depois que a aula acabasse, eu iria até a casa dele e devolveria o livro com a desculpa de que ela havia esquecido na escola. Eu era um gênio, talvez um louco também. Agora eu conseguia entender porque Bernardo ficava tão louco com aquela metida da Emília. Eu também estava cometendo loucuras por causa da Charlote.
Esperei algumas horas passar, já em casa. Depois sai, com o livro em mãos, alegre pelas ruas do arquipélago, quando me deparei com aquela cena. Os dois estavam caídos no meio da rua, Allan por cima, rostos colados e um beijo rolar. Sei lá o que me deu, mas naquele dia eu chorei. Eu não chorava nem pelos meus machucados, que eu vivia me ralando todo nas pedras das praias, mas eu chorei por Charlote. Chorei por ver ela beijando o meu melhor amigo. Cheguei em casa na tora e me tranquei no quarto, joguei aquele livro contra a parede, e no lugar do amor começou a surgir um sentimento bem diferente dentro de mim. Eu odiava o Allan. Odiava ele por ser popular, por ser metido a cavalo do cão, por estar dando em cima de Charlote. O odiava por ele ter tudo e eu não.
No outro dia na escola nem me importei em disfarçar que estava com o livro dela. Fui logo entregando para o Allan.
— Oxente – ficou azoretado – o que você faz com o livro da Charlote?
— Encontrei caído no meio da rua – respondi ríspido, sem nem olhar nas fuças dele.
— Que estranho, véi – me olhou realmente desconfiado, mas eu não me importava – a Charlote nunca deixaria uma coisa assim acontecer, sabe, o livro cai no meio da rua e ela nem percebe.
— E o que eu tenho a ver com isso? – eu não conseguia disfarçar minha raiva – diga para a gorda da sua amiga, tomar cuidado da próxima vez, porque eu não vou ser bonzinho de novo.
—Oxê, Fernandinho – a expressão no rosto dele mudou completamente – está com a moléstia hoje, é?
—E se estiver? – minha vontade era de socar a cara do Allan toda vez que eu lembrava daquele beijo – deixe de leseira Allan, e não se meta a besta comigo, visse.
—O único besta aqui é você – me encarou – porque você mesmo não devolve o livro para ela?
— A pois – eu ri, só para disfarçar meu nervosismo em imaginar eu falando com a Charlote – não tenho nada a ver com o bujão enfeitado, visse. Entregue você.
— Já disse para não falar assim dela.
— Você deve gostar muito da Charlote, né Allan? – eu o provoquei – Quantos beijos vocês dão escondidos por aí?
Ele gelou com a minha pergunta. Eu pude perceber a aflição estampada no rosto dele. Deve ter pensado que havia sido descoberto.
— Está de onda com a minha cara, seu cabra?
— Por que está nervoso?
— Não estou – engoliu a seco – e se eu tivesse dando uns beijinhos na Charlote por aí, não seria da sua conta. Vai cuidar da sua vida que você ganha mais.
Então ele virou as costas e foi se afastando. Eu sentia o ódio me consumindo.
— Diga ao pudim de baleia que não precisa me agradecer.
O Allan virou e me fuzilou com um olhar. Se ele pudesse me bater ali mesmo me bateria, mas aí a Emília chegou e o envolveu em todo o seu charme e ele foi embora. Mas ficou um sentimento estranho em mim, um sentimento de vingança. Eu sentia a necessidade de fazer o Allan pagar por aquilo. Então a Charlote passou por mim, o seu perfume era tão agradável. Seu cabelo brilhava com o reflexo do sol. Eu nem ligava se ela tinha aquela banha toda, desde que eu pudesse olhar em seus olhos novamente. Desde que eu pudesse tê-la comigo. Mas aí ela foi em direção ao Allan, que agora estava sozinho, abraçou ele e aquilo quase me matou. Quando ele entregou o livro a ela, imediatamente seu olhar se cruzou com o meu novamente e eu quase perdi as forças nas pernas. Me vi forçado a desviar o olhar e sair dali. Porque a Charlote causava esse efeito em mim? Porque, diante de tantas boyzinhas da escola, eu fui me interessar logo por ela?
Porque o Allan estava no meu caminho? E depois as coisas só pioraram quando eu percebi que o Allan também gostava dela. Que o amor dos dois era recíproco. Perceber não exatamente,como uma coisa que você acha que é verdadeiro sem provas, eu tinha certeza que ele gostava dela. Como? Quando eu cheguei na casa dele, encontrei um caderno de anotações em cima da cama. Allan estava tomando banho, e a gente tinha total liberdade para entrar e sair da casa dele quando bem quisermos. Fiquei curioso com aquilo e quando li a última página, fiquei arretado que só.
“Hoje eu beijei a Charlote, ou foi ela que me beijou. Não sei explicar, mas o gosto daquele beijo não sai da minha cabeça. Lembro do meu corpo estremecer com o toque dela. O que é estranho, já que a Charlote é só minha amiga, ou era até hoje”
Não chegou a ser uma confissão, mas aquilo foi o suficiente para saber que o Allan sentia por Charlote o mesmo. Não precisaria ser tão inteligente para saber disso. Larguei o caderno no mesmo lugar e sai dali, disposto a fazer qualquer loucura para afastar o Allan da Charlote.
Eu precisava fazer alguma coisa para afastar aqueles dois o mais rápido possível.