Capítulo 52
954palavras
2023-01-18 21:53
Como a maioria dos garotos de Noronha, eu praticamente nasci no arquipélago. A gente não conhecia muito do mundo lá fora, entende? Às vezes eu me sentia isolado, esperando alguém ir me salvar daquela ilha. Não que eu não gostasse de Fernando de Noronha, eu até gostava, mas eu queria conhecer outros lugares, viajar pelo Brasil, ser livre.
Eu era amigo do Allan desde que me entendia por gente. A gente cresceu grudado, soltavam pipas juntos, brincávamos de bila, surfamos. Ele era maneiro, gente boa. Eu não me lembro exatamente o momento em que eu passei a odiar ele, mas eu sei que foi muito antes da Charlote. Quer dizer, muito antes de descobrir que eu gostava dela.
— E aí boy – eu abracei ele, porque realmente estava com saudades – como foi a viagem?
— Oxê – ele tinha um sorriso enorme no rosto – foi bom demais. O Maranhão é um dos estados mais lindos que eu já conheci.
E quanto mais o Allan ia me contando os detalhes, mas eu ficava com inveja dele. Era quase inevitável, porque ele já conhecia o Brasil quase inteiro, talvez eu esteja exagerando, mas era essa a impressão que eu tinha, já que eu havia viajado apenas uma única vez, para Fortaleza. Painho trabalhava no mesmo lugar que o pai dele, recebiam quase o mesmo salário, mas porque o Allan estava o tempo todo viajando para lugares incríveis e eu não? Eu fiquei arretado com esse sentimento de injustiça e todas as vezes que ele voltava de uma viagem, eu sentia mais raiva e a inveja só aumentava.
— A Charlote anda te ignorando ou é impressão minha?
Eu caí na gaitada. Eu gostava de provocar o Allan com aquele assunto da Charlote.
— Deixa de ser enxerido, Fernandinho – ele parecia um pantel – não há nada com a Charlote, ela só está chateada porque eu viajei sem avisar a ele.
— E a coisa anda tão séria assim? - continuei com o deboche – precisa avisar a gorda todas as vezes que for viajar?
— Não fale assim dela, cara – o nervosismo aumentou cem decibéis – e não tem nada de sério. Charlote e eu somos só amigos.
As desculpas eram sempre as mesmas. “Apenas amigos”.
— As vezes eu te acho um hipócrita, Allan – fui sincero e ele não gostou nadinha de ouvir aquilo – vive fazendo piada com a cara da gorda, mas pelas costas dela a defende?
—Tu és um cabuloso, isso sim – levantou-se do meio-fio, sacudiu a poeira das calças e olhou agoniado para mim – eu não fiz piadas com a Charlote, apenas ria delas.
— O que é pior – não que eu quisesse defender a Charlote, mas fazia tempo que eu queria jogar aquilo nas fuças do Allan – Você faz isso enquanto ela está por perto. Se fosse comigo eu não seria nem mais seu amigo, visse.
Ele parou e ficou pensando no que eu havia dito. E pensou bastante, porque o silêncio que se prolongou entre nós dois foi quase interminável.
—E aí, cabra safado – Bernardo rompeu o silêncio entre a gente. Chegou chegando – reunião a uma hora dessas?
— Não tem reunião nenhuma – Allan quebrou o silêncio – e eu já vou pegar o beco. Tenho outras coisas para resolver.
Eu observei o Allan partindo, enquanto sorria da covardia dele.
— Está rindo de que? - perguntou Bernardo, meio azuretado.
— O Allan é um frouxo.
— Por que está dizendo isso?
— Porque eu joguei umas verdades na cara dele sobre o modo como ele trata a amiguinha gorda dele – continuei sorrindo – e ele não gostou nadinha.
— Ah! – eu acho que ele não entendeu – ele também é um fura olho.
— Oxente! - eu fiquei azuretado – O Allan aprontou uma para cima de você também?
—Tu sabes que eu gosto da Emília – eu desconfiava – e ele vive de chamego com ela por Fernando de Noronha inteira.
Eu voltei a rir. Soltei uma gaitada mais escandalosa que a outra.
— Qual é a graça, seu cabra?
—Você gosta daquela metida a cavalo do cão? - o riso não me deixou prosseguir.
—Você é um amigo do cão, Fernandinho – ficou arretado, virado no mói de coentro.
— Avalie só, Bernardo, – me controlei e voltei a falar – a mesma sinceridade que eu usei com o Allan eu vou usar com você. Gostar da Emília é furada.
Ele ficou borocoxô que deu até pena.
—E outra – fui mais cruel ainda – O Allan não é problema, já que eu desconfio muito que ele ande arreando os pneu para a gorda da Charlote.
—Oxente – ficou abilolado – O Allan de chamego com a Charlote?
Foi a vez de Bernardo cair na gaitada. Ele ria tanto que até chorou.
—O boy mais maneiro de Noronha, apaixonado por uma gorda?
—A pois, não é.
Mas o assunto se encerrou ali, Bernardo saiu apressado dizendo que tinha que voltar para casa se não a mãe dele ia quebrar ele no coro. Achei engraçado e fiquei sozinho no banco da praça pensando sobre tudo aquilo. Os meus melhores amigos estavam se perdendo por causa do amor. Allan gostando de Charlote, Bernardo gostando da Emília. A ideia deles me abandonar me apavorou. Eu precisava estragar aquele clima de romance que pairava no ar, se quisesse ter meus amigos por perto. Parecia que estavam todos ficando loucos em Noronha. Como eles poderiam pensar em trocar brincadeiras, diversões com os amigos por causa de garotas? Mas eu não podia negar, a gente estava crescendo e uma hora ou outra aquilo iria acontecer. Era inevitável.