Capítulo 39
1634palavras
2023-01-18 21:49
1
O amigo da onça
Estava chegando na casa de Charlote, quando vi Fernandinho sair de lá, com uma cara de quem comeu e não gostou. Me avistou, sorriu e veio com toda aquela falsidade para cima de mim.

— Oxente! – Me analisou e falou com deboche – foi atropelado por um boi?
— Isso não é da sua conta, visse.
Continuei andando em direção a casa de Charlote e ele se meteu na minha frente.
— Por que você voltou, Allan? – Perguntou ainda que soubesse a resposta – por que fica se metendo entre eu e Charlote?
— O único intrometido aqui é você – encarei bem em seus olhos – Você pode enganar a Charlote com essa cara de bom moço, mas a mim não engana.
— Diacho! – Pareceu surpreso – o que eu fiz contra tu?

— Está dando em cima de Charlote, mesmo sabendo que é a mim que ela ama.
— É proibido? – Tive vontade de socar a cara dele – quem foi que te bateu? Estou perguntando porque preciso parabenizar esse macho.
— Não se meta a besta comigo, Fernandinho, porque se não…
— Se não o que Allan? – Zombou de mim – vai ficar com o outro olho roxo? Não tenho medo de tu, visse.

—Tu és uma cabra muito frouxa, isso sim – disse, provocando – o – Quinze anos e não conseguiu conquistar a Charlote.
— Seu infeliz! – Eu vi a fúria nos seus olhos, mas ele não ousou se aproximar de mim – Se quiser ficar com ela, vai ter que passar primeiro por mim.
— Estou me borrando todo, visse – sorrir – nem mesmo os anos conseguiram nos separar, achas que você vai? Amigo da onça.
— Eu gostava de você, Allan. Gostava mesmo, até o dia em que descobrir que você andava de chamego para o lado de Charlote. Nesse dia eu passei a te odiar.
— Oxente! – Fiquei surpreso – como tu soubesse, eu não contei isso para ninguém?
— E precisava? – Me peitou – eu sempre fui apaixonado por Charlote. Eu sim, amei ela do jeitinho que ela era.
— Não fale o que você não sabe, Fernandinho.
Ele ficou rindo de mim, mas não me respondeu. Aquele homem que estava a minha frente não era o mesmo que, na pré-adolescência, eu chamei de amigos. Eu consegui despertar um ódio quase mortal nos meus velhos amigos, mesmo estando a quilômetros de distância. Me entristeci, as coisas tomaram um rumo que eu jamais imaginei.
— Eu sei que você não vai ficar aqui – continuou – que tem um emprego bom lá em São Paulo. Uma namorada linda. Que vai ser gerente de uma das filiais do pai dela. Tenho certeza que não vai querer trocar toda essa abundância por causa de um amor adolescente.
— Como tu sabe dessas coisas, cabra? – a desconfiança subiu ao nível máximo – tu anda xeretando a minha vida? Com quais objetivos?
— Um dia, quem sabe, eu te conto – deu um soco de leve no meu peito como provocação, virou as costas e saiu andando – quem sabe também você me agradece pelo belo favor que te fiz. Mas até lá, eu lutarei para Charlote ser minha.
2
O amor da minha vida sempre foi Charlote
Meu sangue ferveu quando bati a porta da casa de Charlote. Eu nem precisava de tantas cerimônias, afinal eu era de casa e meus pais estavam ali, mas não queria dar um susto logo de cara, porque eles ficariam assustados quando me vissem naquele estado.
E foi exatamente o que aconteceu. A expressão no rosto de Charlote ao me ver foi de susto, preocupação e raiva.
— Diacho, Allan – me puxou pelo braço, fechou a porta e toda avexada me obrigou a sentar no sofá – o que aconteceu?
— Bernardo – comecei a contar – me pegou com Emília lá no hotel.
O que eu disse foi uma ofensa para ela. Estava arretada, com raiva mesmo. Eu podia ver no seu olhar.
— Avalie só! – Cruzou os braços e nem olhou para mim quando disse – mal chegastes e já foi matar a saudades daquela infeliz, é?
Eu rir. Ela estava com ciúmes.
— Oxente! – Me defendi – não é nada disso que você está pensando, visse.
— Como não? – Sussurrou – essa sua cara arrebentada foi por que Bernardo te pegou conversando, apenas, com a mulher dele?
— Exatamente! – Respondi – Não aconteceu nada, Charlote, mas Emília bem que tentou.
— Fia duma égua!
— Bernardo pegou ela com a boca na botija – continuei – eu tentei explicar. Emília também, mas foi aí que ele bateu nela. Uma chapuletada forte no rosto que a coitada ficou zonza, visse, aí eu não aguentei. Virado num mói de coentro fui para cima dele para ele aprender que em mulher não se bate.
— Eita! – Ela ficou surpresa e eu ainda mais por Charlote não saber daquelas coisas – Emília sabe que Bernardo não suporta a ideia que é de você que ela gosta. Não tinha nada que ter ido atrás de tu, visse.
— A pois! – Então cheguei bem perto dela e olhei bem em seus olhos – Agora todo mundo já sabe que é você que eu amo.
Eu tive vontade de beijá-la ali mesmo e matar toda essa saudade que eu tinha no meu peito. Mas Charlote resistiu. Se afastou, desviando o olhar e foi logo cortando o clima:
— Precisa cuidar desses ferimentos – pegou uma caixa de primeiros socorros que estava na parte de baixo da estante – imagine só como seus pais ficarão quando te ver nesse estado.
— Melhor não imaginar – ela limpava o meu rosto com tanto carinho que me fez sentir mais culpado ainda por ter desistido dela assim tão facilmente – Encontrei com Fernandinho lá fora. Está rolando alguma coisa entre vocês é?
— Deixe de leseira, Allan. – Pareceu irritada com o meu comentário – já disse para ele que somos apenas amigos.
— Nem isso deveriam ser. Ele não é de confiança.
— Oxente! – Achou graça – vocês eram amigos, lembra? Por que não confia mais nele?
Eu fiquei calado, pensando no que responder a ela. Não queria levantar suspeitas mirabolantes sem ter provas.
— Tenho meus motivos para isso, Charlote – respondi e mudei de assunto – fiquei sabendo que você fundou uma ONG.
Então ela me contou sobre a ONG. Sobre o fato de ajudar a filha de Emília e de como era difícil e prazeroso ao mesmo tempo ajudar as pessoas que sofriam do mesmo mal que ela sofreu no passado.
— Eu já escutei pessoas dizendo que bullying é frescura – continuou – mas essas são as mesmas pessoas que não levam a depressão e a ansiedade a sério. E o número de suicídios só aumenta. O que falta é empatia pela dor do outro. Entender que o que é fácil para mim superar, pode não ser para você.
Eu via uma força extraordinária nela que eu jamais tinha visto em ninguém. Charlote sofreu perseguições na infância. Superou suas próprias limitações. Aprendeu desde muito cedo amar-se e cuidar-se. Agora usava toda a sua experiência para ajudar outras pessoas. Sem me esquecer do fato que há dois dias ela presenciou a morte do próprio irmão e estava ali diante de mim, firme, aparentemente. Seguia em frente com a cabeça erguida, ainda que ninguém conseguisse ver o quão mal estava seu coração, e em que ela se agarrava para permanecer de pé.
Estar com ela trouxe de volta a nostalgia da infância. Eu queria nunca mais sair dali. Foi então que os pais de Charlote e os meus adentraram a sala e foi aquela confusão. Mainha olhava para mim desesperada e seu Natalino como sempre ficou feito um pantel:
— Que diacho aconteceu, Allan? – me perguntou enquanto virava meu rosto de um lado pro outro, como se procurasse mais arranhões – tu mal chegaste em Noronha e já se meteu em confusão, cabra.
— Não carece de tanta preocupação – eu tentei acalmá-los em vão – Só porque Bernardo me pegou no quarto com a mulher dele.
— Fudeu a tabaca de chola! – Esbravejou painho. Então ele começou a gritar – Só por isso, foi? Tu és muito cara de pau, seu cabra. Ele te machucou foi pouco, visse.
— Oxente painho – todo mundo entendia errado a história – o senhor está contra mim é? Não aconteceu nada, diacho. Foi uma confusão.
— E que confusão – ele estava com a moléstia – honre as calças que tu vestes, Allan, porque eu não criei filho para me passar uma vergonha dessa. Pegando mulher de amigo.
E eu demorei uns trinta minutos para explicar pra eles que não era nada disso que eles estavam pensando. Mainha chorava de um lado, encabulada. Charlote ria de mim, do outro e eu fiquei no meio do fogo cruzado. E no final deu tudo certo. Seu Natalino entendeu que eu não estava pegando a mulher de nenhum amigo porque acabei confessando na frente de todos eles que era de Charlote que eu realmente gostava. O que não surpreendeu dona Lúcia, que soltou um sonoro “eu desconfiava”, mas que não pareceu irritada. Pelo contrário, Painho até gostou da ideia de me ver namorando a filha do seu velho amigo. Todos pareciam bem confortáveis com aquela possibilidade. Do outro lado da sala eu vi o rosto de Charlote encarnar quando confessei o meu amor por ela. Ficou encabulada, depois irritada e saiu da sala sem ouvir o final da conversa. Uma hora todos saberiam e eu já não aguentava mais esconder que me apaixonei pela minha melhor amiga.