Capítulo 38
1236palavras
2023-01-18 21:49
Mais um dia e o clima lá em casa, de tristeza, culpa, frustração, parecia aumentar cada vez mais. Mainha estava sentada na cadeira com a cabeça baixa, enxugando as lágrimas, enquanto dona Francisca insistia para que ela começasse alguma coisa. Painho, do outro lado da cozinha encostado no batente da porta que dava para o fundo da casa, conversava com seu Natalino, mas a tristeza não abandonava o seu rosto. Ainda existia um brilho do choro em seus olhos, pelo filho que ele jamais imaginou enterrar. Ainda que o painho não demonstrasse muito a sua dor, eu sabia que seu coração estava destruído e que demoraria muito para se recuperar. Ninguém falava em se conformar com o que havia acontecido, não enquanto o assassino de Jacob estivesse solto por aí. Eu continuava azoretada no meio de toda essa confusão, o delegado de Noronha veio mais duas vezes aqui em casa para falar comigo sobre o ocorrido. Eu e Betânia éramos as duas únicas testemunhas do crime e eu me sentia inútil por não conseguir lembrar das feições do assassino. Pelo menos, Bentinho parecia firme. Seguia a vida trabalhando, ainda que todos soubessem que ele era o que mais se sentia culpado pela morte do nosso irmão.
Todos nós poderíamos ter feito algo para ajudar Jacob a sair daquele mundo sombrio que ele se enfiou, mas o único que realmente tentou foi painho, que dia e noite esquentava a cabeça, tentando arrumar um jeito de ajudá-lo, em vão. Quantas vezes Jacob apanhou de painho. Castigou um homem com seus mais de vinte anos nas costas, o obrigando a trabalhar com ele, lembrando os valores, tentando direcioná-lo de volta ao caminho certo. Parecia ridículo, mas foi o jeito que painho encontrou de dizer a ele: eu te amo meu filho, e não importa o que aconteça, não desistirei de você.
Eu também carregava a minha culpa, por não ter me metido naquela confusão. Eu me refugiava na ONG, ajudando o mundo inteiro, para esquecer os meus problemas e também do meu irmão. Foi ele o que mais precisou da minha ajuda e eu não o ajudei. Agora era tarde demais para se lamentar. Chorar sobre o leite derramado não traria Jacob de volta. A vida seguia e com ela a oportunidade de fazer tudo diferente dali para frente.
2
A declaração de amor de Fernandinho
Eu estava comendo meu bolo de macaxeira sentada no sofá quando Betânia chegou junto com Fernandinho. Revirei meus olhos e não disfarcei nadinha meu descontentamento. Eu não queria ver aqueles dois logo de manhã.
— Bom dia, Charlote – sentou-se cada um de um lado – não coma muito se não você vai engordar de novo, visse.
Betânia, sem cerimônias, arrancou o pedaço de bolo que estava na minha mão e enfiou todinho na boca.
— Oxê! – Fiquei arretada – Você veio aqui para regular minha alimentação, é?
— Também para tomar o café de seu Chico – ironizou – e também te pedir desculpas por ter contado o que não devia.
— Tu és uma fuxiqueira de primeira, visse – falei – amiga da onça!
— Não fale assim, Charlote – se meteu Fernandinho – fui eu que insisti para ela me contar.
— Torturou ela, foi? – Perguntei – como se precisasse.
Cruzei meus braços e fechei a cara. Eu realmente me sentia traída pela Betânia.
— Por favor, me desculpe – ela parecia arrependida – eu errei feio, contigo, visse e também não vou me justificar.
Eu era amiga de Betânia a tantos anos e dividi com ela tantos segredos que não podia ficar por muito tempo com raiva do tamborete de zona por causa daquilo.
— Mas que isso não se repita, visse – alertei – Noronha inteira já sabe mesmo que eu gosto de Allan.
Eu observei Fernandinho fechar a cara com aquele comentário. Então Betânia me deu um abraço acochado e disse que tomaria o café de painho, me deixando assim, sozinha com Fernandinho. Era tudo o que eu não queria naquele momento.
— Então, Charlote – começou – tenho também uma coisa para te pedir, visse.
Me calei e esperei ele jogar a bomba em cima de mim.
— Betânia também me falou que contou meu segredo para você – ele não parecia nem um pouco chateado com aquilo – Já sabes que estou com os pneus arriados por tu, né?
— A pois. – Respondi, mas me calei. Não sabia exatamente o que dizer a ele.
Então ele foi se aproximando, devagarinho, como alguém que não quer nada e foi passando a mão no meu cabelo.
— Avalie só – desviei meu corpo, me afastando dele – Gosto demais de você, Fernandinho. É um ótimo amigo, visse.
Minhas bochechas queimavam de tanta vergonha que eu sentia. Tomei fôlego e coragem para dizer a ele o que eu precisava.
— Eu ainda amo o Allan – falei.
— Oxente! – Falou cheio de frustração – tu não sabes que Allan não vai ficar aqui?
Ele afirmou isso com tanta certeza que eu tive até medo.
— Eu não sei de nada, Fernandinho – cruzei os braços – e isso não muda o que sinto por ele e nem por você.
— E o que você sente por mim, Charlote?
Se aproximou novamente.
— Eu gosto de tu, só como amigo, visse – novamente me desviei dele – E nunca passou pela minha cabeça ser mais do que isso.
Ele ficou borocoxô. Triste de verdade, e eu fiquei com um peso enorme no meu coração por causa daquilo.
— Ele foi embora e desistiu de você – sussurrou, e eu fiquei furiosa por ele jogar de novo aquilo na minha cara – seguiu a vida dele e você parou a sua. Você acredita mesmo que ele te ama?
— E é desse jeito que você pretende me fazer mudar de ideia, cabra? – Questionei – Nunca duvidei dos sentimentos do Allan por mim.
— Diacho! – Esbravejou – que muié mais cabeça dura.
Então se calou. Seu rosto ficou encarnado. De vez enquanto ele fechava os olhos, depois esbugalhou com tanta força que eu achava que saltariam do seu rosto
— Está passando mal, Fernandinho? – Perguntei, então ele começou a suar feito um bode velho.
— Estou bem – respondeu e se calou.
Sentou-se no sofá, no segundo seguinte levantou-se agoniado passando a mal na barriga.
— Oxente, hômi! – Fiquei preocupada – está me deixando avexada, visse. Foi alguma coisa que eu disse?
Ele tentou responder com um não, mas foi interrompido com aquele barulho alto e constrangedor.
— Vixe Maria! – Eu me segurei para não rir – acho que vai chover. Será que eu posso usar seu banheiro, Charlote?
E saiu correndo pela porta da sala. Eu até comecei a rir, mas a inhaca que subiu logo em seguida fez perder toda a graça. No meio do caminho, Fernandinho estaria todo borrado.
Depois disso não tivemos clima para continuar a conversa, essa a qual eu considerei encerrada. Pedi para que ele não tocasse mais nesse assunto e que seguisse sua vida sem quaisquer expectativas sobre mim. Ele saiu de casa bem pior do que eu esperava, mas achei melhor assim.
Não se passaram nem dez minutos e bateram à porta novamente. Quando abri era o Allan, com o rosto todo machucado e a camisa cheia de sangue.
O dia mal havia começado.