Capítulo 37
996palavras
2023-01-18 21:48
— Eu sinto muito Charlote – eu dizia a ela, sentada ao seu lado no hospital – Eu devia ter percebido.
— Mainha – ela pousou a mão dela sobre a minha – a culpa não foi sua, visse. Deixe de leseira e esqueça isso.
Olhei para ela tão admirada da sua força que tive vontade de chorar. Como Charlote conseguia aguentar a partida de Allan, o amor que nunca se concretiza, a saudade, as feridas físicas e emocionais? Ela só tinha 17 anos e já suportava o mundo nas costas.

— Não quero ser mais uma preocupação para vocês – ela dizia – Jacob já tem sido um nó-cego suficiente.
— Não diga isso, menina – falei avexada – você é o maior orgulho que eu tenho na vida.
Ela sorriu, satisfeita. E foi como se eu aliviasse a dor dela por alguns instantes
Por muito tempo eu me culpei por não ter tido aquela conversa sobre Allan com Charlote. A partida dele tirou dela o direito de amar. Até a volta de Allan, Charlote optou por não se relacionar com ninguém. Queria ficar sozinha e me dizia muitas vezes que essas questões não lhe interessavam. Teve também o tal do Fernandinho, porém o meu instinto materno gritava que aquele cabra não prestava.
Como mãe eu tive que lidar com muitas dores. Perder um filho como eu havia perdido Jacob foi quase o fim para mim. Era como se alguém tivesse me arrancado a vontade de viver. Levaram um pedaço meu e nunca mais me devolveram. Chico foi o único que lutou por ele de verdade, até o último dia, mas também foi o que mais se culpou. A tristeza dele era maior e mais destrutiva que a minha. Depois da morte do nosso filho mais moço, não tivemos nenhum diálogo sequer sobre aquilo. Eu esperava os sentimentos se acalmarem, Chico talvez, esperasse por mim, e uma hora ou outra teríamos que falar sobre aquilo.
Eu arrumava as roupas de Jacob dentro de uma mala para doação. Fazer aquilo foi uma das coisas mais difíceis da minha vida. Eu me desfazia das lembranças físicas doando tudo o que havia restado, mas me apegar a objetos não traria meu filho de volta. A cada peça que eu dobrava, meu coração se acochava, mas havia dentro de mim um sentimento pior do que a saudade. Era a vingança. Não havia um dia sequer que eu não desejasse que o cabra safado que havia matado Jacob, fosse pego. Talvez meu coração só ganhasse paz quando eu presenciasse aquele assassino atrás das grades. As lágrimas escorriam do meu rosto a cada pensamento. Foi quando Chico entrou no quarto.

— Que diacho mulher! – não falou isso com brutalidade, mas com tristeza – por que não espera mais um bocado para tratar dessas coisas.
Chico não entendia a minha pressa em querer afastar as lembranças.
— Não quero esperar mais por nada – lhe disse enquanto colocava a última peça na mala – meu filho não vai mais voltar.
Ouvi aquilo pareceu um peso sobre Chico. Ficou borocoxô. Seus olhos se encheram de lágrimas.

— Eu falhei – se lamentou – me desculpe por ter trago Jacob de volta para casa, dentro de um caixão.
Eu me acheguei até ele e lhe abracei.
— Pare de se culpar, Chico – olhei em seus olhos – Você fez até o que não podia pelo nosso filho. E eu amo você mais agora, do que antes.
Chico sorriu, ainda tinha o mesmo sorriso daquele dia em que o conheci. O tempo havia passado para todos nós. Cabelos brancos, experiências, pele enrugada, mas o amor que eu sentia por ele, esse não havia sido alterado. Eu ainda conseguia sentir meu peito socar no peito quando estava perto dele.
— Eu também te amo.
Essa havia sido a segunda vez que Chico se declarava para mim. Ouvi-lo dizer isso, acalentou meu coração. A última vez havia sido em nosso casamento, há mais de vinte anos e eu agradecia a Deus todos os dias pelo amor ter permanecido. Eu não precisava ouvir declarações de amor todos os dias para saber que havia muito amor na minha família. Chico tinha seu próprio jeito de ser e eu aprendi a conviver com isso.
— Como serão as nossas vidas daqui para frente? - seu olhar ficou vago, e Chico parecia realmente perdido sem Jacob?
— Será como sempre foi – eu respondi – precisa ser. Jacob se foi, mas Charlote e Bentinho permanecem, e por isso precisamos continuar.
—Você sempre está certa – deu um toque leve em minhas mãos – acha que o maloqueiro que matou Jacob será preso algum dia?
— Sem qualquer sombra de dúvidas – falei com firmeza – E não deve também se preocupar com isso.
Tentei encerrar aquele assunto, porque eu melhor do que ninguém, odiava ficar lembrando que o assassino do meu filho andava solto por aí. Levantei-me e o deixei sozinho no quarto que era de Jacob, enquanto ia até a cozinha preparar o nosso jantar. Seu Natalino, Dona Francisca e Allan jantaram conosco naquele dia. Charlote e Allan ainda tinham tantas coisas para resolver. Um dilema, decisões a serem tomadas, mas eu disse a ela que tudo ficaria bem, desde que tomasse as rédeas do seu próprio destino. Enquanto jantávamos o clima era de paz. Por aquelas poucas horas que se passaram até nos esquecemos da dor do luto. Contamos histórias, relembramos o passado. Rimos. Chico estava até mais leve. Charlote parecia em paz enquanto Allan a olhava com tanto amor. Eu sempre desconfiei que ele também a amava e me lamentava por não ter sido eu a melhor amiga da minha filha. Ela viveu dores e amores e não me confidenciou. Talvez o conselho que eu dera a ela também servisse para mim e fosse a hora de tomar as rédeas da minha vida e começar a participar mais das vidas dos meus filhos.
O que restou.