Capítulo 36
897palavras
2023-01-18 21:48
A família de seu Natalino foi das pessoas mais próximas que tínhamos em Noronha. Foram nossos primeiros amigos, anjos em tempos difíceis e ficamos tão íntimos que era como se nossas famílias fossem uma só. Allan era apenas alguns meses mais velho que Charlote. Aprenderam a andar juntos, a falar as primeiras palavras, a descobrir o mundo. Nem mesmo depois que tive Bentinho e Jacob, Allan largou da saia de Charlote. Aqueles dois eram como unha e carne.
Vinte e quatro horas por dia, Charlote falava dele. Das aventuras que tinham pelas praias de Noronha, das brincadeiras, das conversas. Eu não me importava com aquele relacionamento tão próximo dos dois, afinal ainda eram crianças e Allan por muito tempo foi o único amigo que Charlote teve.
Com os anos e o peso que ela ganhou, as outras crianças acabavam fazendo chacota com a aparência dela. Aquilo fez Charlote se isolar do mundo. Ela vivia como se estivesse tudo bem, porque quando não havia criticas, nem piadinhas, para Charlote realmente tudo estava bem. Não era uma garota que guardava mágoas de ninguém. A tristeza vinha, fazia ela chorar, questionar o próprio corpo, mas depois ia embora lhe devolvendo a alegria, até que vinha a próxima piada e o ciclo se repetia. Hoje eu sei que tudo que ela passou na infância a tornou forte. Uma mulher corajosa que talvez, eu jamais seria.
Só houve uma época em que eu achei que Charlote não suportaria a tristeza, foi quando Allan partiu de Noronha. Ela tentava disfarçar, mas eu a conhecia tão bem, que sabia, eles já não eram tão amigos já fazia muito tempo.
Conforme ela foi crescendo, minha preocupação em relação aquela amizade se expandiu também. Dava para ver o brilho dos olhos dela se acender todas as vezes que Allan estava por perto, o mesmo brilho que eu tinha quando conheci o Zé. Mas Charlote e Allan eram dois garotos de quatorze anos, e mesmo que a idade aumentasse conforme o tempo, Allan iria embora, deixando Charlote triste e arrasada.
— Oxente! - eu entrei na minha sala de costuras e lá estavam eles vestidos com as roupas da clientela, que eu acabara de concertar. Fiquei arretada que só – Tire isso imediatamente, e arrume outro canto para brincar.
Eles riam sem nenhuma preocupação de que haviam sidos pegos no pulo. Eles tinham seus 12 anos de idade. Todos os dias estava lá me aperreando com suas brincadeiras e buliço. Em um desses dias, observei Charlote se aproximando de Allan e lhe tacar um belo de um beijo no rosto e sai correndo. Allan ficou ali parado, com o rosto encarnado até perceber que eu observava tudo. O coitado ficou abilolado com toda a situação e desapareceu lá de casa por quase duas semanas. Charlote tinha o mesmo espírito ousado que o meu, não media as consequências, ela só fazia o que lhe dava na telha e só depois via no que iria dá.
— Avalie só, mulher – eu dizia a Dona Francisca, sentada no sofá da sua sala tomando um café – estou aperriada com esse interesse de Charlote por Allan, visse.
— Oxente! - ela não parecia se importar – tu tens certeza disso?
— Iapôs – larguei a xícara sobre a mesinha de centro – tem um brilho especial nos olhos dela quando Allan está por perto. Ela suspira, fica até com cara de abestalhada quando estão juntos.
Francisca achou graça no que eu dizia.
— Acho que você anda assistindo novela demais, Lúcia – ela brincou – entendo sua preocupação, mas não se avexe. Logo iremos embora de Noronha e esse Chamego todo acaba.
— Está aí a questão – bati minhas mãos nas coxas – eu não me importaria que Charlote a Allan namorasse algum dia. Allan é um rapaz bom, respeitador, mas desde que ele ficasse aqui. Se Charlote gosta mesmo dele, vai sofrer demais com essa partida.
— Você está certa – ela afirmou – Já pensou em conversar com ela sobre isso?
— Pensei – disse – mas me falta coragem, visse.
— Então largue a leseira e vai conversar com sua filha, oxente!
Ela estava certa, eu precisava conversar com Charlote e tirar minhas dúvidas. Eu sabia o que era ficar loucamente apaixonada por alguém, mas eu desconhecia a dor da rejeição, do abandono, de um amor não correspondido. Às vezes Allan dava a impressão que também arreava os pneus para Charlote, mas o cabra era bom para disfarçar seus sentimentos. E era bem provável que esse amor fosse via de mão única. Eu não podia evitar o sofrimento dela, mas podia lhe aconselhar para encontrar as melhores soluções.
Cheguem em casa disposta a ter um diálogo com Charlote, mas aí vieram o Chico com Jacob e aquela confusão dentro de casa. O homem estava feito um pantel porque Jacob havia sido pego roubando. Foi difícil acreditar naquilo. E por muitas vezes eu me questionei se estava sendo uma boa mãe. A preocupação com Jacob foi tão a boléu que eu acabei me esquecendo dos problemas de Charlote.
Eu não percebi que ela sofria bullying na escola, que ela sofria por tanto tempo calada. Foi no dia em que me avisaram ainda na escola que ela havia sido levada para o hospital. Por duas vezes eu quase perdi minha filha. Minha vida de mãe estava um caos.