Capítulo 35
1198palavras
2023-01-18 21:47
Era um dia cinzento de dezembro, segunda-feira. Eu corria feito uma abestalhada com medo de me molhar com o temporal que se formava bem em cima da minha cabeça. Eu usava uma calça jeans preta, tênis e uma blusa de mangas compridas que não me recordo a cor. Estava avexada, e com a cabeça no mundo da lua, que não vi aquele homem se aproximar de mim. Eu topei com aquele coitado que a sacola com batatas que ele segurava caiu e elas saíram rolando ladeira abaixo. O homem nem sequer olhou para mim, pediu desculpas e saiu na tora atrás das batatas. Eu achei engraçado a cena e comecei a rir, quando ele se virou ainda apressado, e disse:
— Oxê! Deixe de leseira e venha me ajudar.
Acho que fiquei meio minuto olhando para ele. O cabra era bonito por demais.
Eu não pensei duas vezes, aliás tinha sido eu a causadora daquela confusão. Nós pareciamos dois abobalhados correndo, no centro de Fortaleza, atrás das batatas que não paravam de rolar pelo meio da rua. Foi uma canseira só. Eu me perguntei porque diacho aquele homem precisaria de tanta batata de uma vez só. Acho que contei umas vinte das quais catei e ainda tinha um monte com ele.
— Ufa! - ele deu um longo suspiro enquanto ajeitava a coluna – Vou precisar de uma massagem depois dessa loucura.
— A pois – eu estava curvada, com as mãos nos joelhos, recuperando o fôlego – precisaremos nós dois.
Eu não conseguia parar de rir e o homem também não, foi quando a chuva começou a cair. Então eu vi ele se aproximar de mim. Era alto, tinha os cabelos despenteados, a barba por fazer. Seus olhos grudaram nos meus e meu coração desembestou. Estendeu a mão para mim enquanto dizia:
— Meu nome é Francisco – sorriu, e era o sorriso mais lindo que eu já havia visto em toda a minha vida – mas pode me chamar de Chico.
Levei minha mão até a sua. A gente nem sequer se importou com a chuva que caia constante e aumentava o ritmo a cada minuto.
— Prazer, Chico – eu disse enquanto lhe retribuía o sorriso – eu sou a Lúcia e te peço mil desculpas pelas batatas.
Ele soltou uma gaitada, mas não soltou minha mão. Olhou pra mim novamente e ficou sério. Que diacho estava acontecendo comigo? Eu parecia hipnotizada por aquele homem. Meu coração não parava de socar o meu peito.
Uma rajada de água bateu em mim tão forte que eu tive vontade de xingar aquele motorista fi duma égua, até a sua última geração. Chico voltou a rir, agora estávamos iguais dois pintos molhados no meio da rua.
— Acho melhor sairmos dessa chuva – ele disse.
Minha mão já não sentia mais a dele, nossos olhos já não se encontravam. Nos refugiamos perto do supermercado, enquanto eu já tremia de frio.
— Sua casa é perto daqui? - me perguntou, percebendo que eu não estava confortável naquela situação.
— Sim – respondi, sentindo meus dentes baterem uns nos outros.
— Posso te levar até lá, se quiser.
Concordo. Então fui caminhando com ele ao meu lado, enquanto a chuva caia, ora feroz, ora tão calma. O vento fazia minha pele arrepiar. Quando chegamos ao portal da casa, eu já não sentia os dedos das minhas mãos, mas olhar pra ele sorrindo, me fez esquecer de todo o resto.
— Está entregue, Lúcia – observou o lugar como se quisesse guardar cada detalhe – Nós veremos novamente, não é?
— Agora você sabe onde eu moro – eu não conseguia desgrudar os meus olhos daquele homem – pode vir me visitar quando quiser.
Ele sorriu, e eu vi uma satisfação enorme com a minha resposta. Então virou as costas e partiu, debaixo daquela chuva, como se ela não existisse.
Eu tinha 18 anos quando conheci o Chico. Fazia um curso de corte e costura e essa era a coisa que eu mais amava fazer, costurar roupas. Painho queria que eu fizesse faculdade, mainha já não ligava muito para essas coisas, desde que eu estudasse e fizesse aquilo que eu amava já estava de bom tamanho pra ela. O Chico, ao contrário de mim, trabalhava como cafuçu, na construção civil, e mais tarde eu descobriria o quanto ele odiava aquilo. Ele tinha 25 anos quando nos conhecemos, tinha uma mãe acamada, um pai falecido e era o responsável por sustentar a casa e ajudar os irmãos. Parecia que ele carregava um peso nas costas, vivia cansado, triste. O Chico também era um homem durão, não demonstrava seus sentimentos facilmente. Mas não foi difícil descobrir o quanto ele já gostava de mim, já que todos os dias aparecia no portão da minha casa com aquele sorriso amarelado, e o brilho nos olhos todas as vezes que olhava para mim.
— Casa comigo? - ele perguntou aquilo de repente, não havia flores, nem um anel estendido a mim, mas eu não me importei. Aquele foi sem dúvidas um dos dias mais felizes da minha vida.
— Sim – responde, pulando no seu pescoço.
Já fazia alguns meses que estávamos namorando, quando ele fez aquele pedido. Talvez Chico tivesse medo de ficar sozinho, por isso sentia necessário a urgência. A ideia de perder a mãe dele, assim tão nova o apavorava. Eu não me via como uma substituta, essa jamais havia sido a intenção dele, mas o amor que sentíamos um pelo outro acabava sendo seu porto seguro, e diminuía a dor.
— Mainha está morrendo – uma lágrima escorreu pelo seu rosto – o médico disse que não há muito tempo.
— Oxente! – o abracei tristonha – eu sinto muito, Chico.
— Quero que ela esteja lá quando eu casar com você – assentir com a cabeça – será importante pra mim.
Então tratamos logo de marcar a data. Foi uma festa simples, para poucos convidados, mas o desejo dele foi atendido. Alguns meses depois veio a felicidade da gestação de Charlote junto ao luto pela morte da mãe de Chico. Ela havia nos deixado como herança a casa que tinha localizada em Fernando de Noronha. Lembro que o Chico bateu o pé dizendo que iríamos morar lá o mais rápido possível. Mainha dizia a mim que morar no arquipélago era um sonho e que eu não deveria recusar. O futuro parecia incerto para mim, meu coração se enchia de medo, mas eu encarei tudo com medo mesmo assim. Se fosse isso que o meu marido queria, seria assim.
Charlote nasceu em uma tarde chuvosa de Janeiro, na cidade de Fortaleza, Pernambuco. Crianças não podiam nascer em Noronha. Ela tinha os olhos verdes iguais à cor do mar. O cabelo dela era claro, sua pele delicada. Até parecia que a mãe do Zé havia depositado toda a sua genética naquela menina. Foi amor à primeira vista. Não digo que foi difícil criá-la. Charlote era a criança mais doce que eu conhecia, a mais esperta, a mais obediente. Eu me sentia sortuda por tê-la como filha e por ter sido ela a me ensinar o que era o verdadeiro e mais arrebatador amor.