Capítulo 34
1164palavras
2023-01-18 21:47
Cheguei mais cedo do que de costume naquele dia. O clima estava pesado na agência, eu podia sentir. Todos me olhavam de um jeito diferente, com piedade, confusos. Até pareceu que me escondiam algo.
— Aconteceu alguma coisa aqui na agência? – perguntei ao Joaquim
— Nada – ele não me olhou, parecia não querer conversar.
— Avalie só – continuei – se eu não te conheço o suficiente pra saber que está mentindo pra mim.
— Oxente, hômi – permaneceu de cabeça baixa – está me chamando de mentiroso?
— Estou.
Então ele levantou o olhar até mim, em silêncio. Eu esperei ele continuar, porque eu não desistiria até saber o que estava acontecendo.
— Está rolando uns boatos por aí, – continuou me olhando – parece que Jacob se meteu com aqueles maloqueiros.
Eu perdi o ar e senti o mundo girar ao meu redor.
— Quem foi o mexeriqueiro que andou falando essas coisas?
— E isso, importa, hômi? – me perguntou – Eu vi Jacob com eles quando descia a praia do leão. Ele fugiu quando me viu. Achei bem suspeito.
— Você tem certeza disso, Joaquim?
Ele balançou a cabeça em afirmação.
— E tem mais meu amigo – continuou.
Diacho! Tem como isso piorar?
— Os boatos falam também que Jacob está usando drogas.
Minhas pernas perderam a força, a visão ficou completamente escura e eu senti Joaquim segurar meus braços para que eu não desabasse. Fiquei branco feito a neve. Incrédulo, eu precisei me recuperar para entender o que diacho estava acontecendo.
— Mas que diacho, homi – minha voz saiu embargada – quando esse pesadelo vai acabar?
— Sinto muito meu amigo – me ofereceu um copo de garapa – precisa conversar com ele e descobrir se isso é realmente verdade.
Concordo. Por precaução, Joaquim me liberou naquele dia. Fui para casa, contei a Lúcia sobre o ocorrido e aquilo causou uma tristeza quase insuportável à minha mulher. Era um pesadelo, não tinha outra definição para aquele momento em que passava em minha vida. Eu não podia perder meu filho mais novo, não para o crime, muito menos para as drogas. Já faz dois dias que Jacob não aparecia em casa quando eu decidi sair pelo arquipélago procurando. Ninguém tinha o visto. Foi como se ele tivesse evaporado no ar. Cheguei em casa já tarde da noite, não havia comido nada durante todo o dia, minha cabeça latejava, meu coração estava destruído. Tomei um banho enquanto Lúcia preparava meu café. Assim que saí ela já estava sentada em seu sofá assistindo seus programas favoritos. Apesar de parecer distraída, a gente conseguia vê no semblante dela, a dor de uma mãe que estava perdendo o seu filho.
— E se ele já estiver morto – uma lágrima desceu pelos olhos dela.
— Não diga isso, mulher – tentei confortá-la, mas até mesmo eu já havia pensado nessa possibilidade milhões de vezes – ele vai voltar pra casa, tenho certeza.
Então nos calamos. Eu terminei de tomar o meu café, o tempo estava fresquinho e uma rajada de vento entrou pela porta. Logo em seguida veio um pipoco, meus olhos se voltaram para a porta aberta, que dava a visão direto da rua. Vi Charlote correr desesperada, gritando por Jacob. Meu coração gelou, Lúcia levantou agoniada, com os olhos molhados, e correu na mesma direção que Charlote. O copo caiu da minha mão se partindo em mil pedaços. Não tive tempo de calçar as alpercatas. Caminhei pra rua e mal acreditei na cena que esperava. Ele estava ali, há uns cem metros de casa, estirado no chão. Olhei para o lado e havia uma poça de sangue. Lúcia gritava, Charlote sacudia o irmão, Bentinho vinha logo atrás e eu, por alguns segundos, fiquei paralisado. Ali estava Jacob, o meu filho, o meu menino que eu tanto procurei. Que eu tanto pedi a Deus para salvá-lo. Eu o havia encontrado tarde demais.
Caminhei em direção a ele. Tinha um furo na testa. Seus olhos ainda estavam abertos. Eu sussurrei seu nome com a esperança de que ele acordasse, e as lágrimas que por muito tempo eu escondi, inevitavelmente jorraram. Eu abracei o corpo ainda quente. Coloquei minha cabeça sobre o seu peito enquanto minhas lágrimas molhavam sua pele. Não havia nenhum sinal de vida, nenhum batimento. Ele se foi. Eu só me lembro de uma mão me segurando e me tirando dali e eu gesticulava que ficaria, que não abandonaria meu filho ao relento até que alguém viesse e o tirasse dali. Logo a notícia se espalhou e os fuxiqueiros de Noronha se amontoaram ao redor do meu filho, como urubus prontos para devorar.
Lúcia estava desesperada, Charlote que certamente havia assistido o irmão ser morto, tentava consolá-la. Bentinho se isolou em um canto, calado pensativo e eu fui dominado pela culpa de não ter conseguido salvar o meu próprio filho.
E eu fiquei lá como um sentinela até que alguém aparecesse e tirasse o corpo de Jacob dali. As pessoas foram indo embora conforme as horas iam passando. Diziam palavras de condolências, diziam sentir muito. Eu observava Jacob coberto com um pano branco manchado de sangue e não queria acreditar. Eu cheguei tão perto de salvá-lo e falhei miseravelmente.
5
O adeus
O sol nascia por detrás das montanhas de Noronha e eu não me lembro de ter dormido naquela noite. Fui até o necrotério reconhecer o corpo do meu filho. O acompanhei até a funerária. Cuidei dele exatamente igual quando fui vê-lo pela primeira vez no hospital. O limpei, o vesti, só que agora tudo o que me restou foi um corpo vazio.
O levei de volta para casa. Devolvi a Lúcia um filho morto.
— Painho – Charlote me abraçou – a culpa não foi sua.
Minha menina tão doce me conhecia tão bem que nem precisei dizer a ela o que sentia. Era para ser ela a mais traumatizada de todos, mas Charlote permanecia forte, dividindo aquela força com os demais.
Esse foi o momento mais difícil de toda a minha vida. Não é o natural da vida pais enterrarem seus filhos, ainda sendo tão novos e cheios de vitalidade. Mas Jacob havia escolhido seu próprio destino. Eu seguiria minha vida, mesmo carregando a culpa, com a certeza que eu havia lutado por ele até o último dia da sua vida. Que eu o amei e que dei o meu melhor. Mas quando tudo acabou eu voltei meus olhos para o que havia sobrado. Eu passei tanto tempo focado em Jacob que nem havia me tocado que Charlote e Bentinho também precisavam de mim. Que Lúcia, mais do que ninguém precisa de mim. Que eu também necessitava cuidar de mim.
A vida nem sempre é justa, nem sempre ela retribui o seu esforço e dedicação. Mas ela seguia, a gente querendo ou não. E nesse rumo, muitos ficavam para trás deixando com a gente só as boas lembranças de uma vida que não volta mais.