Capítulo 31
1324palavras
2023-01-18 21:46
Lembro da felicidade que se apossou de mim quando Jacob nasceu. Eu e Dona Lúcia já tínhamos, Charlote e Bentinho e a chegada de Jacob, trouxe para as nossas vidas uma alegria maior.
Quando pequeno, era um menino buliçoso, gostava de mexer em tudo o tempo todo. Eu achava que aquilo era coisa de criança, que pra mim pareciam todas iguais, mas ele foi crescendo e suas manias foram só piorando.
Charlote havia nascido com os mesmos olhos da minha falecida avó. Minha menina era tão linda, mas foi crescendo e não parava de ganhar peso, avalie só, que nem eu mesmo sabia a quem aquela menina havia puxado. Foi nas brincadeiras de mau gosto que Jacob fazia com ela, que eu percebi que algo de errado havia com aquele menino.
— Balofa – ele passou por Charlote, rindo – nem sei a quem esse poço de banha puxou, visse.
— Oxente, Jacob – eu fiquei que nem um pantel com ele – peça desculpa à sua irmã.
O lesado fingiu nem me escutar. E todos os dias eram assim. Charlote nem o provocava, mas ele parecia sentir prazer em machucá-la.
Eu vivia na bronca com ele. Não falo de Charlote, nem mesmo de Bentinho, aqueles dois eram uma benção em nossas vidas. Obedientes e estudiosos. Não me recordo de qualquer resposta mal dada deles, contra mim ou contra Dona Lúcia. Mas Jacob me fazia perder o sono.
Quando nos mudamos para Fernando de Noronha, a dona Lúcia ainda estava buchuda de Charlote. Com a chegada da primeira filha, nós nos apressamos em nos mudar. A casa onde moraríamos era herança da minha falecida mãe, que cresceu em Noronha e me fez prometer que eu também criaria meus filhos no arquipélago. Foi um sonho, porque Fernando de Noronha era um lugar muito disputado pelos brasileiros, havia filas de espera para se morar aqui. Nós tivemos sorte, muita sorte.
A primeira ajuda que recebi quando cheguei foi de seu Natalino, que se tornara pai também muito cedo. Lembro que Alan já tinha alguns meses quando o peguei pela primeira vez no colo. Era um xôxo, depois que cresceu se tornando um cabra muito do esperto.
Quando percebi pela primeira vez que Charlote arriava os pneus pra ele, fiquei arretado que só, visse. Eu não quis aceitar que a minha menina, que só tinha quatorze anos, gostasse do filho do meu melhor amigo. Alan, por mais que parecesse desinteressado, eu sabia que aquele cabra tinha um brilho especial nos olhos quando olhava para ela. Talvez eu tenha sido o primeiro a perceber , porque acho que nem Alan sabia. Eles eram só meninos, como poderiam entender essas coisas?
Dona Lúcia estava costurando na cozinha, sob a luz ligada perto de sua cabeça, sentada, concentrada como sempre fazia. Eu não queria avexar minha mulher com minhas besteiras. Apanhei um copo sobre a pia, o enchi de café, tomei um gole enquanto a observava.
— O que aconteceu, homi?
Ela me perguntou ainda concentrada na sua costura, enquanto a máquina fazia seu barulho chato. Ela me conhecia melhor do que eu mesmo e sabia quando as coisas não estavam bem. Eu pensei bastante antes de falar.
— Você precisa conversar com Charlote – tomei outro gole.
— Oxente – ela parou de imediato, desligou a máquina e olhou pra mim com aqueles olhos – o que Charlote aprontou?
— Nada, ainda.
Esse “ainda” fez Dona Lúcia saltar da cadeira, avexada.
— Desembucha hômi – colocou as duas mãos na cintura – o que tanto te preocupa?
— Você percebeu que ela anda se assanhando toda pra cima do Alan – larguei o copo na pia e voltei a olhar para ela – dê você um ponto final nisso.
—Oxente! - ela não parecia preocupada – isso é coisa da sua cabeça.
— A pois – fiquei arretado – está me dizendo que estou ficando louco? Que não percebo as coisas? Charlote só tem quatorze anos, mulher. Nessa idade eu estava trabalhando na roça com painho e nem me passava pela cabeça essas besteiras.
Ela olhou pra mim de um jeito bem estranho e até sei que desistiu de falar umas boas pra mim.
— Seu Natalino e dona Francisca vão se mudar em breve para São Paulo – foi assim que eu recebi a notícia da mudança. Imediatamente fiquei borocochô – então não tem porque se preocupar.
— Tu tá me saindo uma mãe desnaturada viu mulher.
Ela resmungou alguma coisa, mas eu me calei pra não prolongar a prosa.
— Então Natalino foi aceito no novo emprego?
— Ele estava tão feliz quando veio aqui hoje pela manhã – o semblante dela mudou – você tinha que ver Chico, o quanto o hômi está empolgado.
— Imagino.
Então me calei e decidi eu mesma falar com Charlote sobre este assunto. Ainda que seu Natalino fosse embora, eu precisava colocar um pouco de juízo na cabeça da minha menina. Eu nunca fui bom em dar conselhos, ou ter uma prosa decente com os meus próprios filhos. Meu modo de dizer que eu me importava era sempre com palavras duras e ríspidas, mas com o tempo eu sei que eles me entendiam. O modo como eu comuniquei aquilo a ela, a magoou, mas eu sabia que se Charlote fosse esperta, esqueceria Alan e seria feliz.
Mas Charlote era o menor dos meus problemas, quem me dera se a paternidade se resumisse a namoricos de adolescentes. Eu tinha minha cruz pra carregar e logo descobriria isso.
—Oxente, homi – eu olhei para o Joaquim, que estava branco feito a neve – parece que viu um fantasma.
- Foi quase isso – ele me disse, tirando o chapéu de palha da cabeça e enxugando o suor que escorria-lhe a testa.
Joaquim era meu colega de trabalho em uma empresa de turismo de Noronha. Estávamos lá de sol a sol, sempre nos mesmos horários e levando pessoas aos mesmos lugares. Conhecíamos aquela ilha de ponta a rabo. Cada ponto turístico, cada história, toda a biodiversidade do local. Sabíamos como direcionar e proteger os turistas de qualquer problema. Mas tinha alguma coisa de errado com Joaquim naquele dia.
—Desembucha, hômi – eu fiquei avexado.
— Eu desci a praia do leão com aquele grupo de turistas, – ele precisou pegar fôlego para continuar – quando dei de cara com um grupo de maloqueiros, você sabe, usando aquelas coisas. Os turistas quase se cagaram todo, hômi.
— Fudeu a tabaca de chola – eu também comecei a suar, porque sabia exatamente do que Joaquim falava – e depois, o que você fez?
— Oxente!- ele estava feito um pantel – saímos desembestados dali. A catinga daquele troço era de lascar, visse.
Eu esperei ele continuar. Joaquim parecia querer dizer mais alguma coisa.
— Avalie só – ele continuou, parava e pensava entre uma palavra e outra – os turistas estavam arretados que só. Foi reclamação para todo o lado.
— Isso vai dar um nó-cego para o lado da gente.
Esse comentário foi o suficiente para deixar o Joaquim mais agoniado ainda. Esse não era o primeiro episódio que acontecia com a gente enquanto pegavamos os turistas. Os maloqueiros se multiplicavam por Noronha e até furtos aconteciam, às vezes.
—Podíamos nos queixar na administração – ele disse – mas já sabemos a resposta.
Joaquim estava certo. A gente já tinha se reunido com a administração de Noronha para conversar e tentar resolver esses problemas que vinham acontecendo. Aquela alma sebosa do administrador jurou de pé junto que o policiamento daria conta disso, mas ninguém apareceu. Os fuxico na agência era de que o tráfico havia tomado conta de Noronha, e que muitos turistas financiavam isso, fazendo o problema só crescer. A gente sabia que podia perder o emprego por conta disso, por não conseguir mais oferecer uma segurança aos turistas, mas resolvemos fingir que não via e continuamos a fazer nosso trabalho. Que diacho!