Capítulo 25
2437palavras
2023-01-18 21:40
Eu era cagado por demais em ter uma família que dormia cedo. Não eram nem onze horas daquela noite e a casa já estava escura e em total silêncio. Catei minhas alpercatas e fui saindo de casa, nas pontas dos pés, fazendo o menor barulho possível, rumo ao meu destino.
Já na rua deserta, sai na tora em direção a casa bonita, enquanto os cachorros latiam a cada passada minha pelas ruas do arquipélago. Olhei o relógio de pulso e percebi que eu estava atrasado cinco minutos. Porém Fernandinho não estava lá. Fiquei avexado que só. Pensei em esperar mais cinco minutos, mas sabia que não seria uma boa ideia me atrasar ainda mais. Observei o movimento para ver se aquele treloso aparecia, mas havia apenas um vira-lata revirando o lixo do vizinho, então toquei o interfone.
Minha vontade era sair correndo dali.
Uma voz surgiu do outro lado da linha.
— Puxe e empurre a porta para entrar.
O portão fez um barulho e eu observei que havia câmeras nos dois lados do muro. Então entrei. Havia uma música ao fundo. O som estava baixo. A casa era a mais bonita vista dali. Tinha uma piscina enorme bem à minha frente. Uma mangueira, um pitbull.
Eu lasquei minha bunda no chão com o susto que eu levei quando olhei para os dentes daquele cachorro. Ele rosnava pra mim do outro lado da grade do canil. E eu nem conseguia me levantar de tanto que minhas pernas tremiam. Me arrastei para longe ainda agachado, enquanto tentava acalmar meu coração.
— Está atrasado – eu senti aquela mão segurar por trás de mim me levantando em um impulso – primeira regra se quiser trabalhar comigo: seja pontual.
— Desculpe – sacudir o mato que ficou grudado na minha roupa. Aquele era o mesmo homem que vi conversando com Fernandinho naquele dia – avalie só, tive que esperar painho dormir para poder vir.
Ele riu. Soltou uma gaitada daquelas.
— Avalie só! - ele parecia bem-humorado – precisa da permissão do painho pra sair de casa?
— Oxente! - eu quis naquele momento ser mais corajoso do que era – porque Fernandinho não está aqui?
—A presença dele não nos interessa.
Ele calou-se. O sorriso evapora dos seus lábios. Ele olhou pra mim pela última vez e começou a caminhar de volta para casa. Eu fiquei azuretado, mas fui atrás dele, cauteloso, com medo do que eu encontraria ali dentro. Adentrei a porta de madeira e me deparei com a sala mais bonita que havia visto em toda a minha vida. Paredes recheadas de quadros valiosos, um espelho gigante. Tinha um sofá preto no canto da casa e em frente havia uma TV tão gigante que meus olhos brilharam. Essa era exatamente a vida que eu havia sonhado pra mim e essa realidade me fez querer começar com aquele negócio o mais rápido possível.
— Jacob – ouvi aquela voz e me virei pra vê quem era – gostou da TV?
Vi aquele homem que fumava um charuto, ele era rechonchudo, gordo mesmo. Vestia uma roupa social preta e tinha os cabelos bem penteados. Se aproximou de mim e descansou o braço sobre meus ombros.
— Tudo isso também pode ser seu – soltou a fumaça pelas narinas e me encarou – está disposto a pagar o preço?
— Pagar o preço? - Fiquei azuretado – Não sabia que tinha que pagar alguma coisa.
— Deixe de ser aruá – levei uma bela chapuletada no pé do ouvido – ele quer saber se você está preparado para o que der e vier.
— Oxente – eu estava realmente avexado com toda aquela enrolação – já disse que sim. Ou o Fernandinho não deu o recado?
Então os dois homens se entreolharam e me levaram para um outro cômodo da casa. Meus olhos não acreditaram no que viram. Havia pacotes de dinheiro em cima daquela mesa. Em outro canto da sala, dezenas de saquinhos contendo drogas de vários tipos.
Eu demorei para assimilar aquilo. Era informação demais para minha mente pequena, visse. Mas meus olhos brilhavam, minha boca salivava, e eu queria pôr minhas mãos naquele dinheiro ali. Um sorriso brotou dos meus lábios quando eu me imaginei rico e poderoso, e a pois, parecia tão fácil conquistar o mundo. Vender drogas, entregar pacotinhos, e eu nem precisaria ir atrás das pessoas, porque elas saberiam onde nos encontrar.
— Fascinante! – eu disse.
— E apois! – falou um dos homens – a partir de hoje chega de furtar mercadinhos e bolachas, e isso não é um conselho, é uma ordem. Se realmente quiser trabalhar conosco.
— Oxente! - eu me tremi todo – como vocês sabem tanto sobre minha vida?
— Oxente! - exclamou o outro – Eu sou o cabra mais poderoso desse arquipélago, não há nada que aconteça nessa cidade que eu não saiba.
Aquela alma sebosa do Fernandinho andou de fuxico com minha vida. Eu tive certeza que tinha sido ele o cabueta da história toda.
— Estamos de acordo, Jacob?
— De acordo? - eu ficava meio azuretado com a confusão que eles causavam em minha mente – Com o que exatamente? Vender drogas ou não roubar mercadinhos.
— Os dois.
O homem que fumava um charuto deu a volta na mesa recheada de dinheiro e pegou um montante e ofereceu a mim.
— Esse será seu pagamento inicial – soltou fumaça pelas narinas.
Feito um abestalhado corri com sede demais ao poço, no caminho meu pé prendeu na alcatifa da sala e eu quase cai.
— Primeira regra: deixe de ser avoado – encolheu a mão com o montante, fazendo o brilho dos meus olhos desaparecer – Segunda regra e não mais importante: os produtos são para o consumo dos clientes, jamais do vendedor. Se quiser sua parte terá que comprar como qualquer outra. E por último, não me deve nada, porque eu costumo cobrar com a vida.
Eu gelei. O recado era claro: eu precisava andar na linha.
Então ele esticou novamente a mão até mim e eu pude, enfim, experimentar pela primeira vez o que era ter muito dinheiro em mãos. Estava arretado de tanta felicidade. Eu poderia melhorar até mesmo a vida de painho, mainha, meus irmãos. Era um sonho que eu mal pude acreditar.
— Agora vá, cabra safado, que o JP será seu instrutor – O homem fez um gesto de desdém com a mão e virou-se para a janela de vidro a sua frente, soltando fumaça pelas narinas.
O tal JP segurou pelo meu colarinho e saiu me compelindo para fora da casa bonita. O pitbull já latia feroz com minha presença.
— Amanhã, às 7:00 em frente a pista de pouso – abriu o portão pra mim – e não se atrase.
A porta batendo foi tudo o que vi depois disso. Fui saltitando, feliz, de volta pra casa. Contando nota por nota e fazendo planos de como minha vida seria dali pra frente. Entrei em casa novamente, cauteloso. Painho ia querer me esguelhar quando eu não aparecesse no trabalho no dia seguinte.
Aprendi tudo o que precisava enquanto observava JP trabalhar. A confusão lá em casa era a boléu. Painho não se conformava com minha desobediência, ele vivia feito um pantel, mas eu sabia que um dia, seu Chico me agradeceria por toda dor de cabeça que eu estava lhe provocando. Eu daria a vida que eles tanto mereciam.
Depois que experimentei a tal da droga, não consegui parar mais, aquilo parecia um ímã me puxando para as profundezas do caos. Eu já não raciocinava direito, tanto que até tentei roubar Bentinho para pagar o que eu devia. Mas sabe como é, as coisas começaram a sair do meu controle, eu passei a consumir mais do que vendia e a dever o chefe do crime de Noronha.
— Preciso da sua ajuda – eu esperei Fernandinho se despedir de Charlote naquele dia, escondido atrás de uma moita.
— Oxente, cabra – Fernandinho arregalou os olhos para mim, assustado – O que fazes aqui, seu treloso? JP está furioso atrás de você. O homem fala até em te matar.
Eu estava azuretado, olhava de um lado a outro como se a qualquer momento alguém aparecesse e metesse uma bala bem no meio da minha testa.
— Por isso eu preciso da sua ajuda – eu segurei nos dois braços dele olhando bem nos olhos – me arruma um dinheiro emprestado, e eu pago o que eu devo.
Não sei onde Fernandinho viu graça visse, mas o cabra caiu na gaitada.
— Oxê, não me meta nessa zorra, Jacob – ele apontou o dedo pra mim, com ar de soberba – de mim você não vai ver um tostão.
— Como é? - eu não acreditava naquilo – eu só estou nessa zorra por sua causa, seu fim duma égua.
— Deixe de leseira – falou com gosto de gás – entrou nessa porque quis, visse.
Minha vontade era de socar as fuças dele.
— Você me ofereceu o trabalho e foi lá fazer propaganda de mim para aqueles maloqueiros – eu estava arretado, fechei os punhos pronto para socá-lo – insistiu tanto com aquilo, só para que eu não contasse tudo o que sei para Charlote. Acha que eu não sei dos seus planos, Fernandinho?
— Não sei do que está falando, visse. - deu de ombros.
— A pois, vejamos só essa sua cara de pau – cheguei bem perto dele – imagina quando Charlote souber do seu envolvimento com o tráfico. Imagina a decepção da minha irmãzinha quando souber que você é um drogado trambiqueiro.
— Fique na sua, seu cabueta – ele me enfrentou – Se JP não dê cabo de você, eu certamente darei.
— Está me ameaçando seu cabra safado?
— Não preciso – ele se afastou lentamente – você já está atolado na merda. E se eu fosse você sairia correndo daqui.
Eu me apavorei, mas tentei não transparecer. Observei o movimento, olhei pela última vez para Fernandinho e fui embora.
Enquanto me escondia, me lamentei pelo rumo que minha vida tomou. Não era exatamente aquilo que eu queria. Decepcionei painho, fiz mainha sofrer, e estava com minha vida por um fio. Eu não tinha nenhum tostão para fugir dessa maldita ilha. Eu queria que o tempo voltasse, que eu tivesse ouvido os conselhos de painho, que eu tivesse permanecido ao lado dele, trabalhando honestamente. Mas o tempo não voltou e eu precisava encarar as consequências das minhas más escolhas. Enquanto eu chorava, pensei em correr até Charlote e contar a ela toda a verdade sobre Fernandinho. Seria um ato mínimo de bondade com minha irmã, depois de tanto mal que lhe fiz. Eu era desprezível, falei coisas horríveis a ela, sobre seu peso, sua aparência, e eu melhor do que ninguém sabia o quanto Charlote não merecia isso. Era uma menina boa, inteligente, amável. Eu não fui um bom irmão, nem com ela nem com Bentinho, a qual foi outro que várias vezes tentou me ajudar, me aconselhar, mas eu nunca lhe dei ouvidos. Queria poder abraçar o painho e dizer o quanto sinto muito por ter lhe causado tanta dor. Aquele homem nunca desistiu de mim, apesar da sua fúria, eu sabia que era o seu amor gritando, tentando me salvar. Queria pedir perdão a mainha pela decepção que lhe causei. Que diacho! Eu estava prestes a morrer e tudo que me restava era a dor do arrependimento.
O dia já se apagava, e eu catei o resto da minha coragem e decidi voltar para casa. Eu sabia o quanto isso era arriscado, mas eu precisava ver minha família, nem que fosse pela última vez. Eu dava uma carreira entre um beco e outro e tentava me esconder entre as sombras das árvores. Foi quando cheguei na rua da minha casa, me escondi atrás da mangueira que ficava em frente e observei, mainha sentada no sofá. Ela parecia preocupada, triste e eu sabia, o motivo era eu. Observei bem de longe, painho sentar-se ao lado dela, com um copo de café em uma de suas mãos, enquanto dava um gole, eu sentia saudades do café do seu Chico, das suas broncas, do seu jeito meio sem jeito de amar a gente. Então quando eu me preparava para correr até lá sentir aquela mão segurar o meu braço e a voz que ouvi me deu arrepios. Era o fim.
—Avalie só – me virei e ele estava com o dedo apontado pra mim – não é que o treloso veio mesmo ver a família.
Eu olhei para trás, para minha casa pela última vez, talvez uns cem metros me separava do arrependimento, mas eu soube ali, que eu nunca mais pisaria naquela casa novamente.
— Eu vou te pagar amanhã, visse – foi o que eu consegui dizer, enquanto minhas mãos tremiam – mas me deixe ir em casa ver mainha.
— Você vai voltar pra casa, Jacob – ele estava agitado, mexia em um volume que havia nas calças – mas seria dentro de um caixão.
— Oxente, hômi – eu juntei as mãos como se implorava pela própria vida – eu vou te pagar, visse. Dê-me só mais uns dias.
— Cabra safado – seus músculos ficaram rígidos – eu te avisei por diversas vezes o que aconteceria caso você não pagasse o que nos deve. Você conhecia os riscos.
— Eu…
— Cale-se! – colocou um dos dedos em frente a boca – já estou há uma semana te procurando pelas ruas do arquipélago, e você vem com essa conversa de mais um dia?
Eu quis implorar pela minha vida, eu juntei as mãos em um ato humilhante diante de um criminoso, como se nada mais importasse, mas havia ódio nele. Foi então que eu escutei a voz de Charlote, de longe. Aquilo também chamou a atenção de JP e não houve tempo de qualquer reação. Antes mesmo de virar o meu rosto na direção da voz dela, ele tirou uma arma de dentro das calças e gritou: você vai morrer! E apertou o gatilho. Escutei um pipoco, uma dor latejante invadiu minha testa, meu corpo foi projetado para trás. Estou duro feito uma pedra, enquanto sinto o sangue escorrer. Ainda consigo ver JP fugindo. Ainda consigo vê-la, Charlote correndo, em câmera lenta, na minha direção, aflita. Os olhos azuis dela foi a última coisa que vi. Minha visão se embaça, até a escuridão vir.
Eu queria respirar pela última vez, só para dizer a ela o quanto eu sentia muito.
Tarde demais!
Foi o meu fim.