Capítulo 24
2233palavras
2023-01-18 08:09
Como tudo começou
Eu era o filho mais novo de Dona Lúcia e seu Chico. Nasci e cresci no arquipélago, e confesso, eu odiava esse lugar. Fernando de Noronha, apesar de ser um lugar bonito que só, não tinha oportunidades de crescimento profissional, pelo menos não pra mim. Pesca artesanal, guia turístico me dava uma canseira só de pensar. Imagine eu trabalhando com coisas assim? Eu queria mais, sabe, money, bufunfa, dinheiro e ali eu não iria muito longe. Foi só depois que eu cresci que percebi o quanto eu era ganancioso.
Quando eu tinha oito anos, lembro que mainha me levou ao mercadinho que tinha próximo de casa, eu era buliçoso, avoado as vezes, mas quando queria uma coisa ninguém me convence a desistir daquilo. Eu queria comer um biscoito naquele dia, lembro que foi de rosca tentar convencer mainha a comprar um pacote pra mim, mas Dona Lúcia tava arretada que só e repetiu diversas vezes que não me daria esse privilégio. Então me afastei dela, o lugar era pequeno e só tinha o dono da vendinha lá com a gente. Fui até a prateleira onde o biscoito estava, peguei um pacote e enfiei dentro das calças. Espichei o pescoço pra ter certeza que ninguém tinha visto meu delito e segui para perto da minha mainha como se nada tivesse acontecido. Saímos do mercado sem que mainha desconfiasse de nada, e assim que ela adentrou dentro de casa eu dei um jeito de amarrar meu jegue e fugir, feliz da vida, segurando aquele pacote de biscoito que eu acabara de roubar, como se segurasse minha própria vida. Enquanto me deliciava com cada pedaço, me divertia também com o que eu havia feito. Não houve culpa, nem remorso, apenas vontade de fazer mais.

Ali nascia o Jacob que eu me tornaria anos depois.
Seu Chico era um homem bom, às vezes virava um pantel por causa das nossas travessuras, mas nem as surras dele deram jeito em mim. Ele trabalhava de sol a sol guiando turistas pelas belezas de Noronha, para que nunca nos faltasse nada, nem comida, roupa, educação, nem mesmo o amor. Painho tinha seu jeito estranho de demonstrar carinho, mas a gente entendia bem as suas intenções.
Apesar de todo o esforço dele, o que painho me oferecia não era o suficiente. Eu não me conformava com aquela vida de família simples. Eu não queria ficar preso naquele lugar tão limitado em Noronha. E eu também não me importei em ferir ele quando decidir ir além.
Eu tinha uns doze anos quando eu e meu amigo Lucas decidimos, gazear aula. Estudávamos de manhã e eu ia sozinho para escola porque ficava perto de casa e porque por algum motivo o painho andava ocupado demais. Ele me dizia que eu já era um cabra crescido e precisava aprender a me cuidar sem a ajuda de ninguém. Foi o que eu fiz.
— O que achas de irmos lá no mercadinho do seu Zé? - perguntei a ele enquanto parávamos perto da árvore florida no centro de Noronha.
— Deixa de leseira, Jacob – ele estava arretado – estamos burlando a aula, com fardas. E não temos um tostão furado para uma balinha.

— Deixe de ser afolosado, cabra. Quem disse que precisamos de dinheiro?
Lucas olhou pra mim azuretado, mas ele entendeu minhas intenções. Ele era um cabra bem mais alto do que eu, zambeta, um vara pau, mas tínhamos a mesma alma sebosa.
— Você quer que eu me lasque todinho, é? - perguntou aperreado.
— Não sabia que tu era um cabra frouxo, visse – cheguei perto dele e sussurrei confessando – eu já fiz isso antes e ninguém nem desconfiou. Confia em mim.

Ele olhou pra mim pensativo, estava com medo de ser pego, e eu também.
— Vai ser um pé lá e outro cá.
Prometi enquanto juntava as duas mãos em um gesto de súplica. Ele pensou, e aquilo pareceu uma eternidade.
— Avalie só – ele apontou aquele dedo magro e grande bem no meio da minha fuça – Torça para que não sejamos pegos, seu treloso, se não será dois nós-cegos que você vai arranjar na sua vida, visse.
Revirei os olhos, mas concordei. Lucas estava me saindo um cabra muito frouxo.
— Você fica tocaiando e eu pego os biscoitos.
Ele concordou com um sorriso meio torto e eu preferi não prolongar a prosa antes que ele desistisse. Entramos na vendinha do seu Zé, a mesma que eu havia furtado pela primeiras vezes anos antes. Cumprimentei ele e logo percebi que o lugar estava vazio. Lucas se arrastava logo atrás de mim, com uma expressão avexada, assustada. Se continuasse agindo assim, logo entregaria o jogo. Eu pensei em desistir, arrastá-lo pelo braço e dar uma bela chapuletada nele, porém era tarde pra isso.
Seu Zé lia o jornal do dia e parecia não se importar com a nossa presença, o homem estava tão azoretado que nem sequer percebeu que a gente burlava a aula. Então aproveitei o momento e esgueirei para os fundos da loja, onde estava os biscoitos, enquanto Lucas ficou tocaiando. Alguma coisa não funcionou no nosso plano, porque assim que eu escondia o pacote no meio das calças aquela sombra surgiu bem atrás de mim, me virei rapidamente e dei de cara com o seu Zé, me olhando. Ele estava com a moléstia.
— Me devolva esse pacote – ele não gritou, apesar da fúria estampada em seu rosto. Olhou para o pacote escondido no meio das minhas calças, com a mão esticada – Vamos seu maloqueiro, antes que eu chame a polícia.
Não tive tempo de pensar, resolvi amarrar meu jegue e correr, mas seu Zé, apesar do tamanho e do peso, foi mais rápido do que eu, quando percebi estava estirado no chão feito uma jaca podre e ele em cima de mim.
Eu não ousei gritar, mas esperneei até não poder mais para me livrar daquele bronca, mas o homem me segurou a pulso, chamou meus pais e a confusão da minha vida começou ali.
Seu Chico chegou arretado, soltando fumaça pelo nariz. Olhava pra mim de um jeito estranho, ora com raiva, ora decepcionado. Seu Zé lhe contava o ocorrido, bem ofegante, enquanto sua mão ainda apertava com força o meu pulso. O Lucas fugiu feito um covarde. Ele saiu correndo da vendinha assim que viu que o negócio ficaria feio para o lado dele caso ele fosse pego também, o que fez seu Zé desconfiar de mim. O cabueta me entregou sem nem perceber.
Painho não disse uma palavra a mim durante todo o ocorrido. Só por consideração aos meus pais, ele não envolveu a polícia, mas eu sabia que seria melhor ser preso do que enfrentar a fúria do seu Chico.
Então, Painho segurou no meu pulso e me compeliu até nossa casa, em silêncio, eu me lembro da confusão que foi quando chegamos. Painho gritava de um lado, mainha chorava do outro. Enquanto ele falava ia desafivelar o cinto e o tirando, avexado, eu sabia que o negócio ia ficar feio para o meu lado se eu não saísse dali o mais rápido possível.
Foi quando ele veio rápido em minha direção com o cinto na mão e eu não tive outra saída senão fugir. Peguei o beco e acho que nunca corri tanto em minha vida, visse. Sem rumo, eu parei em uma das praias de Noronha e esperei as coisas se acalmarem antes de, enfim, voltar pra casa.
Nesse mesmo dia painho tomou uma decisão que mudaria de vez a minha vida. Ele decidiu por si só que eu trabalharia com ele no turismo. Eu não o questionei, nem o desobedeci. Precisava acalmar as coisas lá em casa, e enfrentar seu Chico não me ajudaria em nada.
Às vezes, quando eu via a tristeza no rosto de painho por causa das minhas atitudes, eu até me arrependia de ser tão treloso, mas algo dentro de mim não me deixava mudar. Eu odiava aquela rotina, aquele lugar, o futuro da minha vida que se desenhava. Noronha não tinha nada a me oferecer. Eu não queria ser um guia turístico que nem ele e trabalhando ali tive certeza disso.
Em um dia, enquanto ajudava ele a organizar os grupos de turistas, avistei um homem, que estava do outro lado da baía, encostado em um coqueiro, meio agoniado. Então sem que seu Chico percebesse, me esgueirei até ele.
— Está perdido?- eu realmente achei que ele era um dos turistas que precisava de ajuda – Se vai para a praia do leão, o grupo já está reunido. Vamos sair em vinte minutos.
Ele olhou para os lados, inquieto, antes de se virar para mim e falar:
— Oxente! Estás me confundindo com alguém cabra? – sua expressão mudou – pega o beco antes que arrume confusão pro meu lado.
Eu não entendi muito bem o que ele quis dizer com aquilo, mas resolvi me afastar. Durante muitos dias eu passei a observar aquele homem, sempre no mesmo lugar, sempre com a mesma expressão azuretada. Chegava alguém, ele falava alguma coisa, entregava um pacote e recebia outro. Até que um dia vi Fernandinho com ele. Conversaram com alguma coisa, o homem lhe entregou um pacote e Fernandinho partiu. Eu fiquei azuretado, que diacho estava acontecendo? Larguei o serviço que fazia sem pensar nem duas vezes e fui atrás daquele treloso do Fernandinho.
— Ei Fernandinho – ele se assustou que quase deu um pulo – o que é isso que você tá segurando?
— Eu? – ficou sem rumo, visse – oxe, tu andas me vigiando, é Jacob?
—Tá tirando onda com minha cara, maloqueiro? – ele estava invocado – Eu percebi que você estava conversando com aquele homem estranho lá na baia. desembucha logo diacho.
— Oxente – ele estava me tremendo todo, visse. Até tentou esconder o pacote no meio das calças, mas eu fui bem mais rápido – não lhe devo satisfação da minha vida.
Em um movimento rápido, tomei o pacote que ele segurava. Mal pude acreditar no que via.
—A pois! – fiz cara de surpresa, mas eu estava mesmo assustado – se transformou em um drogadinho, é cabra?
Ele parecia um bicho acuado.
— Não conte nada a Charlote - ele implorou - se quiser posso te arrumar um trampo que vai te pagar bem mais do que isso daqui.
— Acredite, Charlote vai ser o menor dos seus problemas – falei e ele me olhou com cara de espanto.
— Vou marcar um encontro com vc e o JP - o que diacho aquele cabra estava falando – ele é nosso principal fornecedor, e você pode fazer parte da turma. É muito dinheiro envolvido, e eu sei, você gosta de dinheiro.
Oxente! Quem Fernandinho pensava que era para falar comigo daquele jeito? Apesar de odiar aquele cavalo do cão, eu fiquei bem interessado naquela proposta.
— Desembucha e me conte sobre isso.
Então ele me contou tudo, cada detalhe de como o tráfico de drogas funcionava em Noronha e me contou o quanto eu poderia ganhar. Fiquei fascinado!
— Me encontre amanhã às 23:30, nesse endereço – entregou um papel pra mim – vamos vê até onde vai a sua coragem, Jacob.
Meu estômago se revirou com as possibilidades que passavam pela minha cabeça, visse. Fudeu a tabaca de chola. Examinei o dedo que, constantemente ele apontava em minha direção, e eu repetia para mim mesmo que tudo ficaria bem, que não podia ser algo assim, tão grave. Eu parecia um bicho acuado, estava aperreado, mas essa sensação se evaporou quando eu pensava no quanto eu ganharia com isso.
— Pense um pouco – ele continuou – tu es um cabra buliçoso, mas não me parece burro. Se aceitar, terá que ir até o fim.
Parecia fascinante e perigoso ao mesmo tempo. Eu soltei um suspiro exagerado antes de responder.
— Eu aceito.
Então ele observou o movimento ao redor se certificando que ninguém estava por perto.
— Vou marcar o encontro e nos vemos lá.
Então Fernandinho foi embora, avexado, e eu fiquei ali feito um abestalhado, tremendo. Era loucura, eu sei. Noronha era um lugar pequeno e os fuxico rolavam soltos por aí, um deles era que existia tráfico de drogas no turismo da ilha. Loucura é pensar nisso, mas a administração do arquipélago nem cogitou a ideia de se investigar a fundo o problema. Painho dizia que esse problema acabava sendo uma solução para os moradores que dependiam do turismo. Havia interesses entrelaçados em tudo isso, e muita gente fingia não vê.
— Oxente! – painho chegou do nada quase me matando pela segunda vez naquele dia – o que tu fazes aí seu cabra? A sua hora de descanso já acabou.
— Desculpe, painho – eu abaixei a cabeça e amarrei meu jegue. Não prolongue o assunto e deixe seu Chico bem desconfiado com a situação.
Eu peguei novamente o papel que havia enfiado no bolso, minutos antes e dei mais uma conferida naquele endereço. Era uma casa bonita no final da rua onde Allan morava. Todo mundo conhecia aquele lugar por ser a casa mais bonita de Fernando de Noronha. Voltei a guardar o papel e fui trabalhar. Painho já me olhava avexado e eu tentei fingir que eu não estava prestes a me enfiar em uma encrenca, que custaria minha vida.