Capítulo 23
1641palavras
2023-01-17 08:07
1
Fugindo para longe dos problemas
Depois da conversa que tive com Bernardo passei o final da tarde na ONG. Fiquei pensando no que disse a ele sobre o conselho tutelar e resolvi dar a Morgana mais uma chance. Eu tentaria resolver aquele problema sozinha, primeiro, antes de procurar o conselho tutelar.

Minha cabeça doía quando cheguei em casa. Ouvi a voz de painho que vinha lá da cozinha, estava avexado, feito um pantel e ninguém precisaria me contar o motivo: Jacob.
Eu fiquei atrás da porta escutando, porque se entrasse lá eles encerraram a conversa e fingiram que nada estava acontecendo.
— Oxente muié – sua voz estava angustiada – Já tem dois dias que Jacob não aparece em casa. Aquele cabra tá mexendo com coisa errada, visse.
— Que coisa errada, hômi? – Mainha falou apressada. Estava nervosa – Não me venha com fuxico desse povo, Chico.
— Que fuxico o que, Lúcia – continuou – até parece que não conheço o treloso do filho que tenho.
— Então fale hômi – a voz dela ficou embargada.

— Drogas – foi direto. Meu coração se acochou – Jacob está metido com esses maloqueiros de Noronha, visse.
— Que diacho – mainha estava chorando e eu também – não pode ser verdade, Chico.
— Mas é, muié – disse, e eu senti uma angústia enorme na sua voz – e eu não sei o que fazer, visse.
E houve um silêncio perturbador. Eu só conseguia ouvir os soluços angustiados de mainha e os suspiros de painho. Eu quis entrar naquela cozinha e consolá-los, mas se fizesse isso levaria uma bronca por ficar ouvindo atrás da porta.

2
Um pedido de ajuda
Tomei um rápido banho e resolvi ir até Betânia. Sua casa ficava na parede e meia da minha. Apesar dos problemas que eu tinha em casa, inevitavelmente eu fugia para um poço mais fundo onde os problemas dos outros pareciam menos pesados do que os meus. Me sentia um covarde, por não encarar os olhos de painho e dizer a ele o que ele precisava ouvir. O choro de mainha dilacerava o meu coração e isso me fazia fugir. E fugir me fazia acreditar que tudo ficaria bem um dia.
Betânia estava estirada no sofá, assistindo sua série favorita e por isso nem percebeu minha presença. O portão da casa dela rangia horrivelmente quando abria e eu achei um absurdo ela não ter escutado, pelo menos isso.
— Deixa de leseira, muié – bati com força no braço do sofá e o pulo que Betânia deu foi como a de um gato assustado.
Cai na gaitada que perdi até a voz, visse.
— Que diacho, Charlote – ela colocou a mão no coração como se quisesse segurá-lo – Eita que eu quase morro, visse.
— Morre nada – recuperei o fôlego enquanto ela choramingava porque eu não a deixei assistir ao final do episódio – vim te contar como foi o dia lá na ONG.
— Oxê! – Disse, ainda com a moléstia – me fez perder meu episódio por causa disso? Não quero saber nadinha daquela infeliz da Emília.
— Mas vai saber! – Então comecei a falar e ela a revirar os olhos – Conversamos também com o Bernardo e ele nos contou que Emília nunca gostou da filha.
— E você se surpreende com isso, Charlote? – Ela zombou – A Emília não gosta de ninguém, visse.
— A pois! – Falei – mas ainda preciso da sua ajuda – ela se levantou impaciente – por favor, Betânia. Fernandinho é contra a ideia de meter o conselho tutelar nisso.
— O máximo que eu posso te ajudar – fechou os punhos – é dando uma boa coça na Emília.
— Depois que ajudarmos Morgana, – também fechei o punho – eu te ajudo a bater nela. Mas agora, eu realmente preciso da sua ajuda.
Ela olhou para mim e ficou em silêncio, pensando. Eu sabia o quanto era difícil para ela ter que encarar a Emília depois de tudo que ela fizera a mim. Betânia conseguia odiá-la bem mais do que eu, sem que Emília jamais fizesse uma única piada com ela.
— Vou te ajudar – eu a abracei – Só por você eu faço isso, visse. Mas Emília que não se meta a besta comigo e nem com você, porque minha mão está coçando para pousar na cara dela.
Agradeci pela amiga maravilhosa que tinha.
— E como está o Fernandinho? – Ela me perguntou e logo em seguida soltou uma bomba – tu sabes que aquele cabra é doido pra chamegar contigo, né Charlote?
Pigarrei, porque eu realmente engasguei com a minha própria saliva.
— Oxente! – Falei, enquanto puxava o ar de volta para os meus pulmões – pare de conversa fiada, Betânia. Está imaginando coisas.
Eu disse a ela que toda essa ideia era uma bobagem. Que Fernandinho jamais se apaixonaria por mim. Não tinha certeza das minhas palavras.
— Bobagem? – Ela riu – ele mesmo me confessou isso, visse.
Não sei exatamente o que senti na hora que soube disso. Fiquei literalmente boquiaberta.
— Eu gosto da ideia de ver vocês dois juntos – continuou – e disse para ele que vou ajudá-lo a te conquistar.
— Você vai o que? – Eu disse, surpresa – tu és uma amiga da onça, isso sim.
— Oxente! – Achou graça – já está na hora de esquecer o Allan, visse. E nada melhor do que um amor para curar o outro.
— Nem pensar, Betânia – falei com firmeza – e vamos parar com essa prosa, visse. Não estou interessada.
— Em quem? – Insistiu – Você nunca está interessada em ninguém, Charlote. Os turistas ficam maluquinhos por você e o máximo que acontece são uns beijinhos aqui, outros acolá. Você nunca teve um namorado sequer.
— A pois – ela estava certa, minha vida amorosa estava mais parada do que coração de defunto – eu não quero pensar nessas coisas, visse.
Fugi do assunto, porque só de pensar naquela possibilidade de chamegar com Fernandinho me dava calafrios. E não tinha tempo para pensar em namorados. Ele era um cabra legal. Companheiro, amigo, mas seria apenas isso. Eu não queria um amor para curar o outro, eu queria esquecer o Allan para só assim encontrar outro amor, e definitivamente, Fernandinho não estava nessa lista de pretendentes. Se é que existia uma lista.
Betânia se calou e imediatamente eu dei um jeito de amarrar meu jegue para encerrar qualquer intenção que ela tivesse de continuar com aquele assunto. Então ela me acompanhou até o portão barulhento.
3
O tiro
Eu sabia que a língua dela coçava para me contar alguma coisa, mas não teve tempo. Ela olhou para o outro lado da rua e falou:
— Aquele ali não é o Jacob?
Olhei na direção que ela apontava. Jacob estava com outro homem, debaixo da sombra de uma árvore. Já era tarde da noite. Não tinha nenhuma outra alma viva na rua. Meu irmão parecia um bicho acuado. Tinha uma expressão de medo no rosto. Dizia alguma coisa com o homem. Argumentava com as mãos a altura do peito. Se explicava. Essa era a impressão que eu tinha. Então pensei em ir até ele e lhe dar uma boa bronca, pelo sumiço de dois dias e por deixar painho e mainha tão avexados, sem notícias suas. Mas não deu tempo. Antes de eu pensar em dar um passo sequer eu vi aquele homem tirar algo enfiado no meio das calças, levantar o objeto e apontar para Jacob, gritando: você vai morrer.
Tudo o que eu ouvi foi um estalo e o corpo do meu irmão ser lançado para trás, caindo no chão feito uma jaca podre. Betânia gritava: foi um tiro. Atiraram em Jacob. Eu sentia aquela mão puxando o meu corpo pra baixo, como se quisesse me proteger de outro tiro que viria, mas nada veio. Tudo o que vi foi aquele homem correndo, fugindo, enquanto o corpo de Jacob ficava caído ao chão.
Então eu corri na direção do meu irmão. Betânia veio atrás de mim, desesperada, implorando que eu não fosse lá. Eu não lhe dei ouvidos. Me ajoelhei ao lado dele e chorei. Tinha um furo bem no meio da sua testa. Era como um souvenir de abertura. Sua testa tinha um buraco adornado com a pele esfolada. Seus olhos estavam fechados. Seu peito não se mexia. Eu chamava por ele pedindo para que acordasse, enquanto uma dor aguda dilacerava o meu coração e um calor tomava conta de todo o meu corpo. Eu não me dei conta do que estava acontecendo até ver o seu sangue escorrendo no chão. Ele não teve tempo de reagir. Aquela bala o alcançou tão rápido que ele não teve tempo de se esquivar, de gritar ou implorar por sua vida. Agora eu fiz isso por ele.
Então Betânia me pegou pelo braço, enquanto falava com outra pessoa pelo celular. Ela estava pedindo ajuda, mas era tarde demais. Jacob estava morto.
Antes mesmo que eu pudesse recuperar minhas forças, eu vi mainha correndo pela rua e se jogando em cima do corpo de Jacob. Ela gritava. Implorava a Deus para não levar o filho dela e aquilo me destruiu completamente. Eu vi painho, olhando Jacob estirado no chão, em silêncio, enquanto as luzes da viatura, misturada com a presença de alguns curiosos davam vida a uma noite tão sombria como aquela. Mas seu silêncio foi rompido pelo choro, como o de uma criança que acabara de perder algo muito valioso. Se lamentava em voz alta, enquanto batia no peito dizendo: a culpa é minha! Eu vi Bentinho segurar mainha pela cintura e tirá-la dali. Eu vi minha família morrer um pouco junto com Jacob. E depois eu não vi mais nada.