Capítulo 21
1449palavras
2023-01-14 08:00
Morgana era a minha esperança. Era a única que me fazia acordar todos os dias e sair para trabalhar. Era o meu amor por ela que me encorajava a parar de beber. Mas o vício já havia me fisgado. Eu até tentei algumas vezes parar de beber, deixar de frequentar o bar, mas daí meu corpo começava a tremer, minha boca ficava seca e eu só sentia o cheiro do álcool no ar.
— Você é uma inútil – Emília gritava com ela – eu na sua idade já sabia me virar sozinha, visse. Está na hora de você aprender também.
Morgana chorava. Eu via uma tristeza enorme do olhar da minha filha quando ela escutava os insultos de Emília. Ela só tinha oito anos, como poderia saber fazer as coisas que Emília nem ao menos ensinava a ela? Mas eu não me metia no assunto, por mais que meu coração partisse, eu não repreendia a Emília, nem consolava a Morgana. Também, eu só vivia bicado, era raro as vezes que estava no meu juízo perfeito.

Talvez eu não tenha ideia do quanto essas atitudes de Emília prejudicam o futuro de Morgana. Eu acreditava que logo ela iria se acostumar com o jeito da mãe e se moldaria aquela vida estranha que a gente a submetia. Mas eu estava enganado. Com o tempo Morgana mudou seu comportamento. De menina doce, educada, passou a ser calada e agressiva.
— Expulsa de novo? – ela estava sentada no sofá de casa, de cabeça baixa. Era cedo ainda naquele dia e fui chamado a ir na escola para buscá-la, porque Morgana havia sido expulsa do colégio – Mas que diacho, Morgana. Porque você age dessa forma?
— Não sei – respondeu, meio azoretada – eu apenas me defendi daquela metida a cavalo do cão.
— Oxente! – passei a mão no rosto – você age igual à sua mãe. Fala igual a ela.
— Infelizmente, – me olhou nos olhos e eu vi um pedido de socorro – foi ela que me ensinou a ser assim.
— Ela te ensinou? - fiquei abilolado.

— Mainha diz que eu preciso me defender – continuou – e que não há mal fazer brincadeiras com gente metida.
— A pois – achei incoerente – sua mãe era a patricinha do colégio na nossa época e ninguém fazia brincadeiras de mau gosto com ela. Pelo contrário.
Então as lembranças vieram a boléu, como uma onda gelada e forte. Lembrei-me o quanto Emília era cruel com Charlote e ela estava moldando Morgana a ser igual. Talvez eu tivesse o poder de mudar a história, de ensinar Morgana a ser alguém menos destrutiva do que Emília. Eu não podia deixar minha filha se afundar no mesmo mar.
—Venha cá, menina – chamei-a enquanto meus braços estavam abertos. Ela sentou perto de mim e eu a abracei – a agressividade não resolve as coisas, pelo contrário só piora.

—Mas o senhor bate em, mainha – conclui.
Fiquei sem reação, envergonhado mesmo por saber que Morgana presenciava coisas daquele tipo.
— A pois – sussurrei – você vê as coisas se resolvendo entre mim e sua mãe?
—Não – ela continuava azoretada – então por que continua batendo nela?
—Morgana – nem eu mesmo sabia explicar aquilo – esses assuntos de gente grande você não entenderia. Mas você é uma criança e não precisa agir como eu ou como sua mãe. Seja alguém melhor.
Ela me olhou com aqueles olhos negros, que se enchiam de lágrimas e tentava assimilar cada palavra. Eu sabia que minha filha precisava de ajuda, mas eu não conseguia ajudar nem a mim mesmo, como poderia salvá-la desse caos que era nossas vidas? Que diacho! Às vezes até me arrependia por tê-la concebido a esse mundo.
— Obrigada painho.
Ela voltou a me abraçar com aquele corpinho tão pequeno.
— Pelo que?
— Por ser o único que ainda tenta cuidar de mim.
Aquelas palavras arrebentaram o meu coração. Por muito tempo eu pensei sobre isso. Emília era uma infeliz da costa oca, incapaz de amar a própria filha e cuidar dela. Só havia desprezo dela em relação à menina. Insultos, surras. O ciclo se repetia, a mãe de Emília foi ruim com ela, Emília descontava em Charlote agora em Morgana e Morgana descontava no resto do mundo. A única que escapou desse ciclo foi a própria Charlote. Por mais agressivo que eu era com a Emília, eu nunca havia levantado minha mão para Morgana, pelo contrário, eu ainda tentava ser o meu melhor para ela. Falhei miseravelmente, como pai, como marido, como uma pessoa. Destruía-me mesmo sem forças para ajudar minha própria filha.
— Morgana foi expulsa de novo.
Emília estava estirada no sofá assistindo uma série besta, concentrada. Pareceu não se importar com a informação.
—Vou transferi-la para o colégio Princesa Isabel.
— Oxente! - ficou arretada, desligou a TV e me olhou com os olhos arregalados – nem fudendo a tabaca de chola ela vai para aquele colégio.
— Que diacho! - eu sabia que ela não concordaria – e para onde ela vai? Se o único colégio que restou em Noronha foi esse.
— Não sei – falou com desdém – ela não vai. Fica em casa sem estudar.
—Você é uma mãe desnaturada.
—Você, querendo me dar lição de moral? – era sempre assim, todas as vezes que eu tentava ter uma conversa com Emília, a gente acabava se ofendendo – você só vive bicado, nunca tem tempo para sua filha e quer mesmo falar de mim?
— Eu, pelo menos, me esforço – gritei – você nem isso faz. Despreza a garota, mas agora jura que se importa em que colégio ela deve estudar.
— Não quero que ela passe pelo mesmo que eu naquele colégio.
— Passar o que? - zombei dela – o inferno daquele colégio era você.
— Mas você não se importou em amar o demônio.
Como eu queria que tivesse sido diferente, e nunca ter me apaixonado por Emilia.
— Está decidido – continuei com o assunto – Semana que vem Morgana já se transfere para lá.
— Ah, claro – revirou os olhos – se já está decidido, porque vem me azuretar com esses problemas?
— Porque achei que você se importaria.
— Eu me importo? - cruzou os braços sobre o corpo demonstrando que não se importava mesmo – desde que Charlote não se meta a besta com Morgana, eu não me importo nenhum pouco.
Fiquei sem entender o que Charlote tinha a ver com aquilo, e então me lembrei que ela havia inaugurado uma ONG contra o bullying nas escolas.
— Porque a Charlote se meteria?
— Não se faça de besta, Bernardo – continuou – ela tem mania de querer ser a salvadora da pátria, e quando Morgana se meter em confusão, porque eu sei que ela vai, Charlote vai querer encarnar em mim.
A pois – eu rir quando concluir aquilo – sua preocupação não é com Morgana, mas com você.
— Eu quero que a Morgana morra, se possível – falou sem nenhum sentimentalismo – eu só não quero fantasmas do passado me atormentando nessa altura da vida.
O horror que tomou conta do meu coração ao ouvi-la dizer aquilo me impediu de continuar com o diálogo. Emília era seca por dentro, um zumbi ambulante que se alimentava do sofrimento alheio. Cada vez que eu descobria isso, me questionava como eu conseguiria amar alguém como ela. Manipuladora, era também uma boa atriz, havia me enganado direitinho com aquele papo de amor verdadeiro. Mas naquele momento eu percebi que ela era incapaz de amar qualquer pessoa, nem mesmo ela experimentaria esse amor. Mas eu ainda a amava loucamente, como da primeira vez. Esse amor também era um vício que me destruía aos poucos, Porque Emília era desprezível e destrutível, todos que se aproximavam dela saiam derrotados. Mas eu não sabia como me livrar de todo esse mal, pelo menos nunca havia tentado. Eu morreria amando aquela infeliz e ela morreria ao meu lado.
Ninguém podia entender os nossos interesses. Ela permanecia ao meu lado por medo de ficar sozinha e jogada na rua, eu ficava com ela por que sentia um amor injustificável. E foi assim durante quase toda a vida. Brigávamos, eu agredia ela, havia choro e sofrimento, mas não nos largamos. Porém, a mais prejudicada de toda essa história foi Morgana. Não havia salvação nem para mim, nem para Emília, mas podia haver para Morgana se nós dois tivéssemos esquecidos nossos interesses de lado e se dedicado a ela.
Mas nem toda história tem um final feliz. Nem toda história tinha um herói para te salvar no final.