Capítulo 20
1208palavras
2023-01-12 08:00
Eu estava tentando de tudo para manter meu relacionamento com a Emília o melhor possível, antes da morte do pai dela, eu havia arrumado um emprego, bem chato por sinal, mas que me pagava bem. Minha vida era dedicada a ela e a Morgana. Apesar dos conflitos em nosso relacionamento, eu estava feliz. Até aquele dia.
— Eu amo o Allan.
Essa frase fez um estrago na minha mente até hoje. Todas as vezes que me lembro disso, meu peito se rasga, um nó se forma em minha garganta, o arrepio sobe pelas entranhas. É quase impossível não sentir ódio quando lembro o quanto fui ingênuo de ter acreditado que Emília sentiu algo por mim, algum dia.

Foi incontrolável a fúria que se apossou de mim quando ouvi Emília confessar isso pela primeira vez. Eu tive vontade de matá-la. Fiquei surpreso também quando percebi esse meu lado violento. Nunca imaginei que levantaria a mão para bater em uma mulher, mas cometi esse ato naquele dia. Só depois que a tempestade se acalmou, eu fui ver como tinha sido grave o meu erro. Me arrependi de imediato, mas não pedi desculpas a ela. Sentia que se fizesse aquilo, demonstraria fraqueza. Então me calei.
As coisas se acalmaram entre nós por alguns dias, quer dizer, eu não batia nela, mas não conversávamos, não dormíamos juntos. Parecíamos até mesmo dois estranhos morando debaixo do mesmo teto.
Um dia, enquanto arrumava algumas roupas de Morgana, encontrei um envelope no meio do amontoado de fraldas. Ele era grande e cheio. Estranhei aquilo ser encontrado exatamente naquele lugar. A impressão que dava era que estava sendo escondido. Tinha algo ali dentro realmente valioso, só assim justificaria Emília o esconder de mim.
Certifiquei-me que ela não me pegaria no flagra e então resolvi matar a curiosidade. Dentro do envelope havia dezenas de papéis, cartas escritas a mão, com a letra de Emília, e eu quase cai duro quando li o conteudo daqueles documentos.
Allan
Quantas saudades sinto de você. Chega a doer o peito a falta que você me faz. Depois que você partiu, sem ao menos se despedir de mim, Noronha se tornou um lugar vazio e triste. Tenho tantas coisas para te falar. Coisas essas que não tive coragem enquanto você ainda estava aqui. Fui boba em acreditar que sempre o teria por perto, mais boba ainda quando naquele dia resolvi provocar ciúmes em você, com o Bernardo. O grande erro da minha vida começou exatamente ali. Se arrependimento fosse veneno, eu estaria morta, porque consumo todos os dias. Escrevo essa carta porque ela me dá coragem em dizer a você tudo o que sinto. Eu te amo, Allan Gesser e não sei viver mais sem você. Por favor, volte para mim. Volte o mais rápido que puder. Salve-me desse inferno em que eu vivo, porque só em seus braços eu encontrarei paz.

Com amor, da sua Emília.
Minhas lágrimas borraram o papel que eu segurava. No primeiro momento foi só isso que eu conseguia fazer, no segundo momento, voltei a ler as cartas. Talvez tivesse umas vinte ali, confesso, talvez, porque de fato eu não as contei, mas eram diversas, com relatos da vida de Emília. Ela se abria a ele como nunca havia se aberto a mim. Como se o marido dela fosse ele e não eu. No final, eu só me recordo dela adentrando o quarto e arregalando aqueles olhos em minha direção, e veio a explosão logo em seguida.
— O que você acha que está fazendo seu cabra – caminhou apressada em minha direção, tomando as cartas que eu segurava – com que direito você mexe nas minhas coisas?
— Com que direito? - meu olhos estavam inundados, eu mal conseguia enxergar – eu ainda sou o seu marido, Emília. Ou já se esqueceu disso também?

— Marido – ela estava se fazendo de louca, só podia – faz muito tempo que você não é o meu marido.
— Oxente – eu tremia com cada palavra que ela pronunciava – não me lembro de ter pedido divórcio.
—Avalie só – ela debochava de mim – Deixe de leseira, Bernardo, que você me entendeu muito bem.
— Perfeitamente – conclui – entendi que você é uma desavergonhada. Anda me traindo debaixo do meu próprio teto.
— Que traição ouve aqui? – a cada minuto a voz dela se eleva – Essas cartas ainda não chegaram ao remetente, sendo assim não há traição.
— É muito cara de pau, visse – minha fúria aumentou cem decibéis – A quem você tá querendo enganar?
— Já enganei – confessou, enfim – e você só percebeu agora.
Não me contive, nem se eu quisesse conseguiria parar os meus sentimentos. Partir para cima dela e pela segunda vez a bati no rosto. Dessa vez a pancada foi mais forte. A boca dela sangrou e Emília ficou caída no chão. Não houve arrependimentos. Minha vontade era de bater mais. Eu acreditava que ela merecia. Então apanhei as cartas que sobraram sobre a cama e comecei rasgar uma por uma, lentamente na frente dela.
—Sabe que dia o Allan vai ler isso daqui? – rasguei mais outra, enquanto observava o olhar dela de puro ódio – Nunca.
Ela, corajosamente, se levantou e veio em minha direção com a intenção de salvar qualquer coisa que pudesse, mas eu a empurrei e ela voltou para o lugar de onde estava.
— Rasgue a vontade – gritou – eu escrevo outras e outras.
— Faça isso – eu me aproximei dela – faça e ficará sem os seus dedos.
Emília sentia medo de mim, eu podia ver isso no olhar dela, mas em momento algum demonstrava fraqueza. Não chorava quando eu a batia e muitas vezes não recuava. Ela era corajosa, me enfrentava, me afrontava sem nenhum remorso ou noção das consequências. Parecia sentir prazer em me irritar, em mostrar para mim que não me amava. Catei o restante dos papéis e joguei em um latão e meti fogo. Enquanto observava as chamas queimarem a traição da minha esposa, pensava no que havia feito. Eu era um monstro, ou, pelo menos, havia um monstro dentro de mim, que amava loucamente aquela mulher, que não a deixava ir, que não queria que ela partisse, mas que às vezes queria vê-la morta. Era algo doentio, destrutivo, mas eu não conseguia parar, já fazia parte de mim.
Passei a odiar o Allan por aquilo. Mesmo morando a milhares de quilômetros de mim, ele conseguiu arruinar a minha vida. Se ele tinha culpa? Toda a culpa, porque por muito tempo alimentou esse sentimento dentro da Emília, mesmo que jamais tivesse a intenção de ficar com ela, e veja então onde chegamos. Era o caos, e ele nem estava ali para consertar.
Então passei a frequentar o bar que havia perto de casa. Gastava mais do que podia enchendo a cara para esquecer que eu tinha uma mulher desavergonhada em casa. Eu bebia até não me lembrar de mais nada. Fernandinho me oferecia drogas, logo eu fiquei viciado. Aquilo parecia um inferno sem fim. Essa não foi a vida que eu sonhei para mim, mas eu já estava tão afundado na merda, que já não havia salvação. O abismo era o meu destino.