Capítulo 4
2089palavras
2022-12-29 00:58
Queria que não fossemos tão amigos assim
1
A decisão dela
Depois da visita de Allan o meu dia ficou mais leve, se não fosse, é claro, pelas piadas de muito mau gosto de Jacob, que resolveu me chamar de bujão logo na frente dele. Fico com a macaca quando os meninos aprontam essas coisas comigo lá em casa, prefiro não revidar quando painho está por perto, pois sei que com ele a prosa é bem diferente de mainha, que até aceita algumas coisas.
Eu bem que tentei me achegar um pouco mais do Allan, mesmo com o meu jeito acanhado, mas não teve como, o máximo que consegui foi uma leve relada em seus cachos, e… apenas isso, sim, apenas isso. Ele percebeu, é claro, porém painho também entendeu minhas intenções e assim que ficou sozinho comigo, se pôs logo a falar:
— Menina abestalhada – painho estava que nem um pantel –, tu achas que eu não vi todo o seu assanhamento com aquele cabra? Você não me venha de chamego com Allan, senão eu te quebro no coro.
— Painho, não diga essas coisas – eu estava azoretada pelo modo direto das palavras do seu Chico comigo. Eu era amiga do Allan há anos e ninguém nunca duvidara que poderia ser além do que isso. – Por que essa conversa agora?
— Oxe, por que leseira? – ele estava com a gota serena. – Allan é filho do meu melhor amigo e assim, não quero você de enxerimento para o lado dele, me entendeu sua menina?
Fodeu a tabaca de chola, eu pensei, enquanto painho saía soltando fumaça pelas ventas e eu ficava pregada no chão da cozinha sem reação alguma. Se eu pudesse fazer um pedido ao gênio da lâmpada naquele exato momento, seria que não fossemos tão amigos assim. Que a vida desse um jeito de jamais termos nascidos em famílias tão próximas, e mesmo sendo mais abilolada possível, que eu jamais tivesse o conhecido, seria bem melhor.
Olha só a confusão que eu me meti!
Enquanto vejo o dia passar, da janela do meu quarto, enquanto sei que poderia aproveitar esse paraíso que é Fernando de Noronha, sinto o meu coração acochado com tudo o que anda a acontecer entre mim e o Allan. Peguei o fofinho bonequinho de pelúcia que ele me deu, apertei contra o meu peito e chorei em silêncio, cheia de medo.
Preciso esquecê-lo, não é uma regra que eu estou impondo, mas uma necessidade, mesmo que eu saiba que seja quase impossível de cumpri-la.
Resolvi então ligar para Betânia, a minha vizinha baixinha, que fala pelos cotovelos, mas que é arretada de boa para guardar segredos. De uns tempos para cá nos tornamos boas amigas e ela já sabe dos meus sentimentos por Allan.
— Que lindeza! – Betânia abraçou o bonequinho de pelúcia com tanta força que pensei que tamanho desmantelo iria parti-lo ao meio. – Por que não se declara logo para o Allan?
— De jeito maneira! – Eu tomei o meu agrado dela e o guardei. – Sabe que o plano aqui é esquecê-lo abestalhada, lembra né?
— Apois! – Ela disse rindo, sem jeito, mexendo no cabelo como se quisesse me dizer algo que eu não gostaria de ouvir muito. – Sabe o que é Charlote, você deveria emagrecer menina. Rapaz nenhum nesse mundo se agrada de moças assim, sabe, GG que nem você, visse.
Zanguei-me com o seu comentário descabido.
— Allan não liga para essas coisas, fique sabendo disso menina.
Ela riu.
— Não? Pois então você não conhece tão bem assim o seu melhor amigo, Charlote.
— Por que diz isso?
— Porque se eu fosse o boy mais lindo de Fernando de Noronha que nem ele, mesmo sendo seu amigo, não sairia com você gordinha desse jeito aí.
— Avalie só! – Foi um baque a sua sinceridade. – Nunca pensei assim, visse.
— Deveria mesmo correr na esteira para perder todo esse bucho aí.
Eu parei e pensei enquanto olhava para ela ainda abobalhada com esses fatos que eu nunca tinha pensado. Será que por isso Allan nunca me olhou de um jeito diferente?
— Mas ele deveria gostar de mim do jeito que eu sou.
— Ele até gosta – ela disse –, mas se você melhorar um pouquinho ele pode até querer chamegar com você, visse.
Eu suspirei, mas logo fiquei aperreada quando me lembrei da conversa que tive com painho. Ele jamais permitiria qualquer assanhamento meu com o Allan, por isso o plano agora era esquecê-lo.
Mandei a Betânia amarrar o jegue, depois que ela encheu minhas ideias com uma conversa estranha de que eu deveria dar um gelo no Allan. Como se fosse possível fazer isso sendo amiga dele a tanto tempo. Mas a tarde foi caindo, a noite foi chegando com um luar tão lindo que me fez pensar desenfreadamente naquele boy desajuizado.
Resolvi arriscar.
Pela manhã vesti a minha farda e fui para o colégio. De longe avistei o Allan na companhia dos boys que sempre o rodeavam. Então, ergui a cabeça, empinei o nariz e fui com tudo.
Allan me chamou duas ou três vezes antes que eu entrasse na escola sem nem ao menos respondê-lo ou olhá-lo. Não sentia minhas pernas quando percebi o que acabara de fazer. Como eu sou abestalhada, como eu posso acreditar que vai dar certo? Como eu posso acreditar que sou tão forte?
Mas eu juro, vou esquecê-lo.
2
As insinuações dos amigos dele
Nossa, que estranho boy! A Charlote nem olhou na minha cara, será que aconteceu alguma coisa?
A situação lá em casa não estava muito boa, Painho não estava se adaptando ao novo emprego, estava realmente todo abobalhado na cozinha do restaurante, ele disse que os seus superiores já o olhavam atravessado e alguns companheiros de função começavam a avisá-lo sobre uma possível troca de funcionário. Isso deixou seu Natalino arretado. Era óbvio que ele não queria ser um fracasso.
Na noite passada ele conversou bastante com Francisca, minha mãe, e os dois quase se esgoelaram pelo chão por tanta teimosia da parte de painho.
— Eu não vou ficar lá por muito tempo, mulher, aquilo não é ambiente para mim, eu gosto de trabalhar ao ar livre, sentindo o vento bater na minha cara, não fique me aperreando não! – Ele falou quase gritando enquanto fatiava o jerimum do jantar.
— Mas hômi, não faz nem um mês que tu entrasses lá e já estás falando assim? O que queres então? Vai passar a vida toda vivendo de pesca? E quanto aos seus netos, como eles vão ter um conforto quando nascerem?
— Netos? O Allan ainda é muito novo mulher, não diga besteiras… – Nessa hora ele jogou o jerimum na panela com tudo e se virou. – E ele vai terminar os estudos e se formar em algo grande, vai ter um futuro diferente do nosso e dará coisas boas para os pirralhos.
Eles ficaram assim quase meia hora. Eu dei dois ou três passos para trás quando escutei falarem dos meus filhos que ainda nem tinham sido mencionados por mim em toda a minha vida. Acho que me assustei. Depois eu saí do corredor. Eles nem perceberam que eu estava lá.
Aí hoje eu acordei cedo, sei lá, a ralação de opiniões dos dois não deixou eu dormir direito. Vim mais cedo para a aula e me deparo com a Charlote me olhando daquele jeito tão gelado quanto um picolé. Foi um olhar de um segundo e meio antes daquela empinadinha de nariz ridícula que ela fez. Aliás, ela estava cheia, nem podia fazer essas coisas esnobes, isso é coisa de patricinha, só as boyzinhas gostosas que fazem isso. Empinar o nariz!
Imagine só, uma gorda se achando! Não quero parecer arrogante, mas ela está muito louca desse jeito. Se bem que isso pode ser bom, já que eu quero que ela não sinta tanto quando eu me mudar, vou parar de dar ideias para ela.
— Oxe, tu viste a cara da sua Charlote? – Fernandinho gostava de me aperrear dizendo essas coisas de ''sua Charlote''.
— Pare de coisa Fernandinho, ela não é minha.
— Mas só por que tu não queres, né? Porque se dependesse dela você já estava todo amassado feito uma folha de papel… já pensou aquilo tudo em cima de você no sofá? – Ele fez os outros rirem da situação, na verdade, todos nós.
— Não, eu nunca pensei – sentei num dos bancos do espaço do Arquipélago e fiquei olhando ela indo pelo corredor. Nossa, ele tinha razão quando disse ''Aquilo tudo''. Charlote era mesmo exagerada. Bunda, cintura, coxa… peitos…. Aí balancei a cabeça e retirei o olhar. – Eu nunca faria isso, tá ligado? A GG está fora dos meus planos.
— Ah, para Allan, vai dizer que tu e ela nunca trocaram uns beijos por aí? – O Mateus era meio direto nas suas perguntas, ele se assentou ao meu lado, ajeitou a mochila, esticou o pescoço e olhou lá para o corredor. – Nada mal, até que vocês combinaram. A Charlote não é feia não, só o peso dela que é algo assim, diríamos, insuficiente demais para o parceiro mais popular da área.
— Não Mateus, a gente nunca se beijou… e não fale assim dela cara, ela é legal, vocês nem a conhecem direito para ficarem falando essas coisas.
— Não conhecemos mesmo não, quem a conhece muito bem aqui é tu, né? Sabe o que tu podias fazer? – O intrometido do Fernandinho falou de novo. – Chamar ela pra roçar a pitoca mais tarde no forró da minha rua.
Era assim todo dia, eu já estava acostumado com tantas insinuações que os meus amigos faziam a respeito da nossa amizade grudenta. Às vezes aquilo me enchia, mesmo sendo engraçado, eu sentia um pouco de raiva pelas brincadeiras com a Charlote. Mas, ao mesmo tempo, eu achava que eles estavam falando apenas da realidade.
— Pare Fernandinho, eu nem sei dançar, e mesmo que soubesse e quisesse, a Charlote é muito tímida, ela jamais dançaria no meio de tanta gente.
— Eu não acho, com certeza ela ia adorar… – nessa hora eu achei que eles iam parar, mas Mateus continuou. – Eu nunca vi a Lauren com ninguém cara, ela quer você!
— Não acho que seja só isso não Mateus… com aquele tamanho não deve ser fácil arrumar um boy, por isso que ela só vive sozinha – Fernandinho riu.
Eu larguei os dois para trás e entrei na escola.
Na sala, Emília e Paulinha vieram logo se roçando em mim. Paulinha era a melhor amiga de Emília, as duas viviam andando de cima a baixo por todo canto. Não era tão gostosa quanto Emília, mas era bonita também. A Charlote de vez em quando dizia que as duas eram lésbicas, mas acho que era uma maneira de catucar a imagem quase que perfeita da Emília, já que ela – GG – não era estrutural quanto a Emi.
A professora de Matemática chegou dez minutos antes do horário do início da aula. Passei pela carteira da Charlote e ela ainda estava com o rosto contra a minha presença. Não sabia ainda o motivo de ela agir assim, e se eu falar que não me importei mentirei para mim mesmo.
Era indiscutível a minha preocupação com a garota que mais se importava comigo dentre todas as outras. Isso eu não nego. Mas se ela queria guerra, então ela teria guerra. Não a procuraria enquanto ela não fizesse o mesmo. Sendo assim, vou parar de pensar um pouco nisso. Já que a língua trelosa do Fábio faltou hoje, vou chamar os manos para irem comigo na casa dele quando a aula terminar, não vou ficar me martirizando pelo nariz empinado da gordinha.
Falando em Fábio, já é a décima vez que o Bernardo pergunta por ele e sobre ele durante a aula. Esse boy nem é da nossa turma, que estranho. Será que essa Coca é Fanta? Bem, isso eu não sei, mas que é um fato incomum às suas perguntas quase que sem intervalos, sim, isso é.
Exercícios, trabalhos e explicações sobre seno, cosseno e tangente de ângulos… que rotina entediante. Hoje seria legal pegar umas ondas.
Talvez eu chame o pessoal, mas, mesmo assim, mesmo querendo não me importar, eu ainda olho pra GG tentando imaginar o motivo dela estar assim.
Ah, deixe de bobeira Allan, depois as coisas se acertam. Eu acho!