Capítulo 3
1378palavras
2022-12-29 00:56
O boneco de pelúcia
1
O convite de Charlote
O primeiro dia de aula havia sido o pior possível, com toda aquela zoeira, risos e o Allan leso como sempre esnobando a minha presença durante toda a aula. Mas ali estava eu, na esquina da rua da escola, esperando por ele, avexada. Quando ele me viu ficou nervoso, olhou para os lados, pensou em fugir, mas não teve jeito, ele me conhecia. Chegou de mansinho e foi logo falando:
— Oi Charlote, como estás? Fazia tempo que não nos encontrávamos assim, de frente, não é?
Eu o olhei apressada e fui logo dizendo:
— Oxê, como estou? É sério que você se preocupa? Se realmente fosse assim, teria me dito onde raios se enfiou durante todo esse tempo.
— Ah Charlote, não comece… – ele balançou a cabeça inconformado e deu passos largos para frente, mas parou, suspirou e voltou atrás. – Tu sabes como a minha família é, né? Eles decidiram tudo em cima da hora e tivemos que sair feito loucos, não deu tempo de avisar a ninguém.
— Sei! – Faço cara de que não ligo muito, mas só eu sei o quanto me importo. Resolvi então mudar de prosa:
— Mas me diga, anda de chamego com a Emília agora é boy?
— Então! – Ele coçou o nariz. – Não tenho nada com ela, tu sabes que são os boys que caem de amores por Emília – ele parou na minha frente, retirou a mochila das costas e me mostrou um pequeno presente. – Pegue, trouxe para tu, visse.
Eu olho para ele totalmente sem jeito, enquanto sinto as minhas bochechas encarnarem.
— Não carece Allan – ainda estava com muita raiva dele, mas ele me conhecia tão bem que sabia que um bom agrado resolveria qualquer birra minha –, mesmo assim obrigada.
— Achou mesmo que eu te esqueceria? – Ele sorriu antes de esticar o braço esquerdo e descansá-lo no meu ombro, eu adorava quando ele fazia aquilo. “Ainda bem que essa gorda se acalmou!'', é o que ele deve ter pensado.
— É de bom agrado – eu disse, feliz, enquanto pensava em algo.
Prolongar a conversa, talvez dizer coisas que eu não tinha coragem enquanto o sentia tão próximo de mim. Não fiz nada, só recuei quando lembrei que já fazia um tempo que eu e Allan já não conversávamos como antes. Havíamos crescido, já não éramos mais crianças, ele andava diferente, distante. Melhor esquecer essa loucura, visse. Resolvi, então, chamá-lo para ir comigo até minha casa como fazíamos quando crianças.
— Mainha fez aquele bolo de cenoura com cobertura de chocolate que você tanto gosta, que tal irmos lá para casa?
— Não vai ter problema? Quer dizer, ela nem espera por visitas, não quero incomodar a dona Lúcia, se bem que tô com saudade dela e dos parceiros. Jacob e Bentinho continuam surfando?
— Oxê – Eu ri dele –, mainha gosta muito das suas visitas e os meninos passaram as férias inteiras perguntando pelo boy mais popular de Fernando de Noronha. Não fique acanhado, vamos logo Allan.
— Tá certo, visse – ele deu um tapa na minha rabeta (de leve) e sorriu. Nossa, como eu amava aquele sorriso do Allan.
2
As dúvidas e certezas de Allan
É cada uma viu! A Charlote não muda nunca. Sempre com esse jeito divertido e tímido. Tão diferente de mim, mas me completa. Eu acho que ela está notando o meu afastamento, não sei o porquê, mas essa gordinha ainda consegue me conhecer tão bem que às vezes ela entende coisas sobre mim que nem eu mesmo consigo compreender. Sei que ela adorou o bonequinho de pelúcia que eu trouxe para ela, mas de fofo não tinha nada, era magro que só Deus sabe, vareie visse!
Falando em falar, não sei ainda como dizer que vou me mudar em breve. Vou sentir falta de tudo por aqui. Dos parceiros, do Arquipélago, das boyzinhas e de Charlote, confesso que ainda mais. A ''GG'' ocupa tanto tempo na minha vida que vai ficar um espaço tão grande sem ela por perto. Tenho que dar um jeito de contá-la sobre a mudança sem causar muito impacto, mas talvez eu esteja exagerando, talvez ela entenda a minha partida.
A família de Charlote me adorava. Dona Lúcia fazia em sorrisos todas as vezes em que me via com a filha. Ela não parecia muito com Charlote, era elegante, cintura fina, cabelos mais cheios, bem mais concentrada do que a louca da Charlote.
Dona Lúcia estava lá, olhava bem nos meus olhos com cara de abestalhada, a mesma que a filha fazia quando estávamos sozinhos no gramado da parte de trás da Tour Marítima. Nisso ela se parecia com a Lauren, tinha aquela cara de abobada, que nem uma palhacinha engraçada daquelas que se colocam no espelho interior dos carros.
Mas o olhar dela era menos fuzilador do que os olhares de Charlote, tenho que confessar que a gorda me deixava envergonhado em várias situações a sós.
Quando sentei à mesa, Charlote deixou a mochila e presente em cima do armário da cozinha e deu a volta por trás de mim. A danada aproveitou o instante para relar a mão nos meus cachos. Ela pensa que eu não percebi! Eu senti! Só faltava agora querer acochar a mão no meu butico.
O seu Chico também viu e entendeu a gracinha da filha. Ele fez cara de guaiamum, ficou meio de lado e parecia que queria voar no pescoço dela. Ainda bem que Bentinho chegou!
— Allan, Allan… onde tu foi? Onde passou as férias?
Ele chegou pulando nas minhas costas, prendendo o meu cangote com os braços gelados, fazendo zona, uma continuada zona…
— Ei boy, uma hora dessas e tu já mergulhando é? – Desconversei e não respondi onde eu havia me enfiado aquelas férias todas.
— E apois! – Ele nem percebeu que dei um nó-cego em sua pergunta.
De repente eu não via mais a Charlote. Rodeado por Bentinho e suas zoadas eu não podia ver mais nada. Ele também era diferente da irmã, não tinha jeito de que ficaria obeso quando crescesse. Como características pessoais Bentinho tinha algo bem comum nas crianças. Era treloso, um fiel ''alma-de-gato'', bastava se distrair para que ele aprontasse, mas era excessivamente carinhoso, não arredava o pé de perto enquanto não recebesse um carinho, agora ele parecia com a irmã, mas só agora.
Nossa, é sério que eu não pude ver a Charlote?
— Que coisa feia! Está parecendo um “bujão” de uniforme.
Na sala, os risos de Jacob irritaram dona Lúcia.
— Eu já falei para tu, não chamar tua irmã dessas coisas, não é Jacob?
Não escutei Charlote revidar, era como na escola, ela sempre calada, deixando as vozes agressivas insultarem o seu corpo.
Depois do bolo eu fui embora.
Deixei marcas de chocolate na toalha da mesa, eu disse que sou abobalhado às vezes, mas não me importo, isso não me atrapalha em nada.
Charlote queria me perseguir até o próximo quarteirão, lá mesmo, onde fica a casa mais bonita de Fernando de Noronha, de tom azulado e pedras perfeitas no muro da frente. Ainda bem que o seu Chico não deixou, o quanto mais a gente se desapegar nesses dias será melhor, aí ela vai se acostumando.
Ah, foi lá perto dessa casona bonita que uma vez ela quase me beijou quando éramos mais novos. A gente estava correndo e de repente ela caiu. Preocupei-me e fui ajudá-la, mas acabei caindo também. Os nossos rostos ficaram bem próximos, quase colados um ao outro. Ela foi aproximando a sua boca da minha e o meu coração acelerou. Eu ainda senti os nossos lábios se tocarem de leve, mas, de repente, pulei para o lado, inventei um assunto, meio envergonhado e fui logo falando para ela se levantar sozinha pois já estava muito bem, já que conseguia pensar em sem-vergonhices.
Olhe lá a galera!
Os parceiros, todos eles, com certeza combinariam alguma coisa para mais tarde. Ainda bem que não me viram com ela, iam arengar demais… já estou ficando confuso com tudo isso, eles tem razão, ela é gorda, mas… eles não a conhecem, por trás daquilo tudo existe alguém realmente legal.