Capítulo 63
1130palavras
2023-04-05 05:45
Foi pouco depois do Natal que aconteceu.
- Você não vai dizer nada? – perguntou James. Ambos estavam à frente da terra recém-remexida do cemitério. Menos de um metro abaixo, o caixão.
- O que eu poderia dizer? Ela já era velhinha. Viveu muito, até.
James fungou. Desde que haviam chegado ali, ela estava morrendo de medo que ele chorasse. Não saberia lidar com um James emocional.
- Você não gostava dela – acusou.
- Realmente, não – admitiu ela – Mas você não pode me culpar.
- Sim, posso, porque ela era um ser irracional.
- Duvido! Ela se esfregava em mim de propósito!
James a olhou com raiva.
- Nem depois que ela morreu você para com isso?
- Não sou adepta da teoria que todos os defuntos são santos. E isso inclui animais. Principalmente gatos.
- Não, principalmente Anne. Não entendo porque você nunca gostou dela.
- Eu sentia o ódio no olhar dela. E, olha, sinceramente, eu estou...
Nesse ponto, ela parou. Mas James sentiu o espírito da frase não-dita.
- Você está feliz que ela tenha morrido – completou ele, rancoroso.
Cristina continuou em silêncio. Um vento frio incomum no inferno carioca começou a soprar. Ela começou a pensar que se talvez não fora longe demais.
- Realmente, não sei o que estava pensando quando pedi a você para vir comigo – disse ele em voz baixa, se afastando – Você é a criatura mais insensível que já conheci.
- Ora, quem diria, Narciso não se olha no espelho.
James a ignorou.
- Gostaria de saber se tivesse sido uma das suas filhas.
- Porra, James, sem comparação, era só uma gata!
- Que ficou comigo por quase vinte anos. E foi mais companheira do que você.
Cristina pôs as mãos nos quadris, indignada.
- Você ousa me comparar com um animal?
- Sim, mesmo correndo o risco de ofender o bicho.
- Quer saber? Chega! Vá à merda! Mesmo se eu lembrasse a última vez que fizemos sexo, não quero continuar fazendo isso com alguém que eu sei que gosta de homem!
- Se eu me importasse com o que você pensa, o meu Q.I. já teria desabado há muito. Vou embora agora.
E foi andando em direção à saída no cemitério de animais.
- Ei! – berrou ela quando ele já estava quase nos portões, estupefata – Você não pode me deixar aqui! Não estamos nem no Rio!
O silêncio dele e depois o assobio do vento no local deserto foi a resposta mais digna possível.
-
O ano que se seguiu foi o mais solitário da vida de Cristina.
Quando voltou das férias de verão, ela percebeu que aquele dia do enterro de Anne fora mesmo o fim de sua longa história com James. Miguel, desde que Cristina declinara de sua semi-proposta de casamento, estava distante e frio. E seu casamento com Maurício estava naufragando.
Cada vez mais ela sabia. O nascimento de Alice fora responsável apenas por uma sobrevida de uns dez anos, ou talvez sequer isso. Suas conversas eram apenas sobre amenidades ou assuntos formais. Ela percebera isso visivelmente durante as férias. O sexo, então, foi diminuindo pouco a pouco até, finalmente, cessar totalmente. A separação talvez fosse apenas uma questão de tempo.
Para ajudá-la a se sentir ainda mais insignificante, nem Olga estava ligando para ela. Portanto, foi com alívio que ela viu o ano de 2030 chegar. Talvez então seu inferno astral acabasse.
Não acabou. Tudo continuou uma merda. Ela continuou ignorada por todos. Uma pasmaceira só.
Em maio, tudo começou a mudar. O problema que Cristina só percebeu isso em retrospecto.
Foi no dia das Mães.
- Não toque nisso, Dimitri! – exclamou Teresa.
Dimitri, que andara examinando um vaso, recuou.
- É porcelana – explicou ela depois de se acalmar – Foi presente de casamento.
- Mas você já se separou – observou Yuri astutamente.
Sua avó lhe lançou um olhar gelado.
- Civilmente.
- Como se casamento na Igreja ainda importasse.
Teresa pôs a mão no peito, horrorizada. A própria defensora da moral e dos bons costumes. Cristina quase acreditaria se já não soubesse que ela tinha um caso com seu motorista. A mulher não era feita de gelo, afinal.
- O casamento diante de Deus é o mais importante!
- Ah, sério, vó. Ninguém casa hoje em dia, quanto mais na Igreja.
- Juventude indecente – retrucou ela de cara fechada – Mas eu conheço alguns jovens que são católicos.
- Fundamentalistas como Isabella não contam.
A mencionada olhou o primo com irritação.
- Você é um nojo, Yuri.
- E você é uma escrota, Isabella.
- Parem com isso, os dois. É nessas horas que vejo porque parentes tão próximos como primos não podem se casar. Proximidade demais para não haver choques. Seria infame. O Levítico diz isso.
Isabella assentiu, ruborizada, e desviou o olhar de Gregori.
- Diversas dinastias casaram-se entre si – comentou Cristina – Às vezes, tio e sobrinha. Teve até um rei da Inglaterra que se casou com a viúva de seu irmão. Sua cunhada, portanto. E isso era aprovado pelo papa.
Ela fingiu não ver o olhar muito significativo que Miguel lhe lançou.
- Erros de interpretação – disse Teresa imediatamente, como se tivesse planejado a resposta há muito – Família é família, não pode se colocar casamento no meio. Isso é uma abominação.
- Acho que a definição de abominação depende do que é conveniente – opinou Olga, que estava encostada à parede – Veja a homossexualidade, por exemplo. No começo do século, alguns ainda consideravam uma doença. Hoje em dia, com a superpopulação, isso mudou.
- Pois é – concordou Cristina – E mesmo com tanta gente no mundo, algumas mulheres insistem em ter, sei lá, três filhos.
Olga balançou a cabeça com um leve sorriso e ignorou a farpa. Cristina murchou. Bom tempo era aquele que ela quase levava umas porradas.
Nesse momento, ouviu-se um toque de celular. Era o de Maurício. Uma mensagem havia chegado. Ele se adiantou, mas Olga, que estava do lado, pegou o troço antes. Com um toque acidental dela, a tela se iluminou.
Maurício chegou e pegou o celular da mão manicurada de sua cunhada. Isso chamou a atenção de Cristina. Seu marido estava ansioso para pegar o celular, tanto que foi até um pouco brusco com Olga. Esta, quando teve o aparelho retirado de si, levantou os olhos com uma expressão...
Foi então que Cristina se perdeu. Com uma expressão de quê? Aborrecimento? Irritação? Surpresa? Na hora, porém, ela não identificou o que estava se passando, não entendeu o diálogo mudo entre o olhar tenso de Maurício e os olhos misteriosos de Olga. Só percebeu que estava perdendo algo. E era importante.
Foi exatamente ali que começou a queda.