Capítulo 57
1240palavras
2023-03-22 06:05
Mesmo com o estresse da paternidade de Alice voltando a pairar sobre ela, Cristina ainda conseguiu parar e pensar num presente perfeito para James. O aniversário de 50 anos dele se aproximava, e ela não poderia deixar simplesmente passar. Nunca o perdoara por fazer questão de lembrar aquele maldito 16 de agosto de 2021, quando ela completara 30 anos. Embora, naquele tempo, ambos tivessem uma relação muito diferente. Afinal, se conheciam há quase 20 anos. Ninguém poderia esperar que continuasse sendo a mesma coisa. Agora, mal eram amantes; quando eram, isso era uma exceção pontual. Eram, surpreendentemente, amigos. Amigos que viviam discutindo e que eventualmente queriam se socar, mas mesmo assim. A atração sexual entre eles fora gradualmente embora, e em breve, sabia ela, acabaria de vez. Se extinguiria tão súbito como começara. Era um processo natural, imaginava ela.
Depois de alguns dias, ela teve a ideia perfeita para um presente. Naquela terça, quase saltitava de satisfação com o seu senso de humor enquanto ia até ele no sofá da sala dos professores.
- Olá – cumprimentou ela – Feliz aniversário! Este ano eu não esqueci.
Ele a encarou por cima dos óculos.
- Esse era o ano ideal para você esquecer – resmungou.
Cristina se sentou no sofá ao lado dele.
- Ora, James – começou, passando o braço pelos ombros dele, exibindo um tom falsamente animado – Anime-se. Afinal, não se faz 50 anos todo dia. E, para mostrar como essa data é importante, eu comprei um presente para você.
James levantou os olhos e a encarou visivelmente espantado.
- Certo, agora eu acordo na Terra de Oz.
- Ah, para com isso! Você também não me dá presentes há anos.
- Cristina, eu já te dei uma relíquia histórica. Vale por todos os presentes da sua vida.
- Uma suposta relíquia histórica – sublinhou Cristina – Tudo pode ser história de carochinha dos seus parentes.
- Pense assim se quiser – disse ele, desanimado – Agora dê o meu presente.
Cristina remexeu na sua bolsa, pegou um embrulho e pôs na mão dele. James o ergueu e encarou o troço sob a luz.
- Uma caixinha retangular – descreveu ele – É leve, então você não quer me explodir.
- Você bem merecia, mas não. Abra logo.
James desembrulhou. Olhou para o presente. Depois a encarou.
- Tintura para cabelos. Tão humorístico, Cristina.
- Ah, você tem que concordar – argumentou ela, segurando o riso enquanto mexia nos cabelos dele, cheios de fios brancos – Você não tem tendência à calvície, mas pelo ritmo da coisa, não vai ser mais ruivo em pouco tempo.
- Talvez em sete ou oito anos. Mas estranho seria se meus cabelos não descolorissem. Acontece com todos. Um dia você também vai ser uma velhinha de cabelos brancos.
Cristina estremeceu e passou as mãos nos cachos avermelhados.
- Jamais. Estarei com a minha tinta vermelho acaju para sempre.
James deu de ombros e colocou a caixinha em cima de uma mesa próxima, aparentemente abandonando o tópico.
- Tenho uma novidade para você – anunciou.
Cristina se empertigou no sofá.
- Diga.
- Seu marido trabalha na mesma universidade do que eu?
- Sim, mas é no...
- Então no próximo ano ele vai trabalhar comigo.
Cristina congelou.
- O quê?
- Letras vai se unir novamente com as demais ciências humanas no mesmo prédio. Demorou muito tempo, se quer a minha opinião.
- Você não vai arranjar confusão, vai? – perguntou ela, amedrontada.
Ele riu.
- Por que eu faria isso? Se não quer confusão, fale com ele.
O sinal tocou naquele momento. James se levantou, se despediu e foi para sua sala, mas Cristina nada ouviu. Aquela notícia inesperada sacudira ainda mais sua cabeça e a deixara com um pressentimento muito ruim.
Alguns anos depois, ele se provaria certo.
-
Depois de ouvir todo o discurso da mãe, Miguel passou um longo, longo tempo sem dizer nada, em choque.
- Então eu sou filho de Mário, o motorista? – perguntou ele, num início bem leve de histeria.
- Ela não disse isso – interpôs-se Cristina – Você pode ser, é diferente.
- E por que eu? – perguntou Miguel, indignado – Por que não Maurício?
- Não ouviu nada o que falei? – questionou sua mãe, as mãos nos quadris – É o seu tipo sanguíneo. Se você for mesmo O, não pode ser filho de Adriano, mas...
- O que explicaria muita coisa – resmungou Miguel.
-...sua esposa disse que você pode ter o tipo sanguíneo falso.
Miguel olhou para Olga.
- O quê?
Ela se aproximou.
- Você pode ser um falso O. Ou seja, ser geneticamente um A, B ou AB, mas não expressar nada no fenótipo. Seus exames de sangue ordinários seriam sempre O.
- Qual é a chance disso?
- Pequena – admitiu ela – Mas possível.
- Se você for na verdade AB – continuou Teresa -, como seu irmão...
- Ou meio-irmão – observou Miguel, e pela primeira vez pareceu feliz com a perspectiva.
-..., seria com certeza filho de Adriano.
- Como sabe disso? – questionou Cristina.
- Mário me disse que é O.
- E se eu for A? – sugeriu Miguel – Ou B? Como daria para ter certeza de quem é o meu pai?
As três mulheres se entreolharam.
- Pensaremos em algo – respondeu Teresa – Mas o importante agora é você fazer esse teste. Se der AB como seu verdadeiro tipo sanguíneo, poderemos ficar sossegados. Diga que fará.
- Vou fazer – confirmou ele, sombrio – Afinal, tenho que saber se a herança é minha.
- Isso mesmo – aprovou Teresa, dando uma palmada no ombro do filho – É esse o espírito. Nada derrubará a dignidade da minha família.
Cristina franziu a testa, imaginando onde estaria essa tal dignidade.
- Agora preciso fazer as unhas – anunciou Teresa – Depois nos falamos para acertar os detalhes. Estou indo.
Olga olhou o relógio.
- Também preciso ir, tenho que buscar Yuri.
- Ótimo, me dê uma carona. Quero dar um beijo no meu netinho.
Olga ficou evidentemente contrariada, mas não teve escolha. Foi-se com sua sogra.
- Cristina.
Ela olhou para Miguel. Com exceção de Maristela, que cuidava da cozinha, eles estavam a sós agora.
- Não pense que não entendi. Se eu for aquele troço que Olga falou...
- Falso O – disse Cristina, focando o olhar em um ponto da parede e tentando se convencer que não estava tremendo.
- Isso. Eu posso ser pai de Alice.
- É, pode – admitiu ela.
- Cristina, olha para mim.
Ela olhou. Miguel estendeu os braços.
- Vem aqui.
Obediente com um cachorrinho, ela foi, parando bem na frente dele, que a abraçou pela cintura.
- Se eu for um falso O – continuou ele, olhando para cima para encará-la – vou querer um teste. Vou querer saber, certo?
Cristina assentiu. Satisfeito, Miguel a puxou para o sofá. A incessante cantoria da empregada na distante cozinha os tranquilizava; só poderiam ser surpreendidos quando aquela desafinação cessasse, o que só ocorreu uma boa meia hora depois. Durante aquele tempo, ele a fez reafirmar que permitiria a realização do exame de DNA de Alice, se o resultado comprovasse mesmo que Miguel tinha o Fenótipo Bombaim. Quando ela foi embora, ele estava mais ou menos tranquilizado quanto a essa questão. Não deveria.
Cristina jamais disse quando permitiria a realização do exame.