Capítulo 44
1536palavras
2023-02-20 04:27
Assim que acabaram suas aulas, Cristina foi para a casa de James.
Entrar foi fácil; em pleno 2019, o prédio dele ainda não trocara as antigas fechaduras pelas mais modernas, que substituíam aquela chave medieval por uma simples senha. Mas foi melhor. Cristina ainda tinha uma cópia da chave. Ele nunca se lembrara de pedir de volta.
Uma vez dentro do apartamento, ela se instalou no sofá e esperou. Ele não poderia demorar muito mais.
Estava enganada. Quando ouviu outra chave girando na fechadura, já eram quase 4 da tarde. Desligou a televisão rapidamente e ficou bem quieta enquanto James entrava no apartamento e trancava a porta novamente. Quando ele se virou e a viu no sofá, deu um gritinho particularmente fino de susto e derrubou todos os seus livros no chão.
- Como você entrou aqui? – indagou ele, obviamente ainda se recuperando do baque.
Cristina não respondeu. Levantou-se lentamente e o encarou, em choque. Tudo de repente fazia sentido. Ela só pensara naquilo antes muito superficialmente, como um pensamento divertido ou zombeteiro, mas, agora era sério. Seríssimo.
- Oh meu Deus, você é gay.
James olhou para ela por um longo tempo.
- Ah, claro – disse lentamente, e depois de uma pausa - Antes que pergunte, sim, estou ótimo, obrigado. Espero que Tânia não tenha me deixado estéril. Se tiver, bem, pelo menos você está grá...
Cristina pigarreou, sem graça.
- Na verdade...
Calou-se antes de terminar a frase, seu moralismo bissexto a deixando subitamente constrangida. James respirou fundo.
- Você não está grávida?
- Não – confessou ela simplesmente – Nunca mais vou passar por aquilo novamente. Agora meu anticoncepcional é injetável.
- Ah – fez ele, e se sentou no sofá. Anne apareceu e começou a se esfregar nele – Espero que saiba que destruiu meu carro com isso – acrescentou, no mesmo tom que se comunica a morte de um filho.
- E seu casamento – lembrou-o Cristina – Ou não?
James deu de ombros e pegou a gata do chão.
- Eu me esforcei – disse, melancólico, enquanto acariciava o pelo loiro de Anne - mas depois de ser espancado e perder meu carro, não posso perdoá-la.
Cristina assentiu com vigor.
- Foi perda total?
- Foi milagre Tânia ter saído só com as duas pernas quebradas.
- Ah, que pena.
- Por ela não ter morrido? – perguntou James, azedo.
- Não, pelo Alfa Romeo mesmo – esclareceu ela, sentando-se do lado dela - Não me importo tanto assim com ela para querer que morra.
James não disse nada em resposta. O único barulho na sala era o ronronar da gata.
- Acho que vou desistir das mulheres – declarou finalmente - A única fêmea que vou amar daqui por diante é Anne.
- Bem – ponderou Cristina - nunca vi você amar nenhuma mulher também. Tânia seria apenas uma reprodutora. E eu sou só sua amiguinha.
- Amiguinha?
- Claro, você é gay.
- De novo isso – suspirou ele.
- São muitos sinais – começou Cristina, começando a contar nos dedos – Seu gritinho fino é só a primeira. Sabe, homem de verdade não se veste bem assim. Depois, você teve ausência de pai na sua infância e super presença da mãe. Está comprovado que homens com essas características têm tendência. Então, para matar, você faz História. Só não é pior do que Letras.
James evidentemente achava graça.
- Cristina, você percebe que seu raciocínio não tem o menor sentido, não?
- Faz todo sentido – protestou ela, levantando-se – E eu sempre achei que você tinha algo esquisito. E nunca correu atrás de nenhuma mulher na vida. Só precisava esperar que elas caíssem aos seus pés e, pronto, disfarçava para o mundo. Certo?
- Certo – repetiu James, que no meio do discurso abrira um livro e tinha os olhos grudados nele.
Cristina pegou-o e o atirou do outro lado da sala.
- Isso era um Hobsbawn.
- Dane-se. Estou falando algo importante.
- É, fascinante – disse ele com voz entediada – Escuta, Cristina, eu gosto de mulheres.
- James, você gritou mais fino do que eu. Você é gay. Ou bissexual. O fato é que você gosta de homem.
- Uma amante minha dizendo que sou gay é uma contradição em termos.
Cristina ergueu as sobrancelhas.
- Amante?
- Se você quiser.
Cristina o olhou com descrença.
- Mas acabei de dizer que você é gay.
- E quem disse que eu me importo?
Cristina suspirou e deixou quando ele a puxou pela mão. Se ele estava em negação, o problema não era dela, afinal.
-
Na próxima reunião do conselho dos aliados, Olga rompeu o exílio auto imposto com os três filhotes em seu apartamento e apareceu.
A primeira vez que falou foi para se opor a Cristina.
- Quanto mais tempo penso – começou – mais acho que esse plano não faz sentido algum.
Cristina se endireitou, ofendida.
- Ah, é? E por quê?
Olga encostou-se à cadeira, virando a cabeça para encará-la. Naquela noite, Cristina trocara de lugares com seu marido, ficando assim mais perto de Teresa, que sempre estava na cabeceira. À sua frente, Miguel. Do lado de seus respectivos cônjuges, ficavam Maurício e Olga, que instalara Dimitri num bebê conforto ao seu lado. As outras crianças, como sempre, estavam com babás.
- Digamos que Miguel consiga.
- Já conseguiu – consertou-a Cristina.
Olga deu de ombros, sem se abalar. Aparentemente recuperara seu autocontrole budista.
- Que seja. Digamos que ele se estabeleça como amante dela.
Fez uma pausa. Todos esperaram.
- E daí? – perguntou Olga suavemente.
Cristina se sobressaltou com a delicadeza tão rara naquela voz. Então, em um átimo, três olhares indagadores se viraram para ela. Com duas palavras, a japa desgraçada virara a mesa.
- Boa pergunta – concordou Miguel com um olhar inflexível. A concordância dele com uma mulher com quem frequentemente se desentendia foi o que mais machucou Cristina. O fato que a mulher era esposa dele não importava. Ele devia ser aliado dela – E daí, Cristina? Vou fazer tudo isso à toa?
Pelo canto do olho, Cristina viu Olga sorrir de satisfação.
- Não acho que você esteja se esforçando muito – opinou Maurício – Houve um tempo que você fazia sem objetivo nenhum, inclusive.
Olga parou de sorrir.
Miguel desviou o olhar de Cristina para o irmão. Chegou a abrir a boca para retrucar, mas mudou de ideia no meio do caminho. Felizmente, porque Cristina tinha uma boa noção do que ele falaria. Algo relacionado em prestar atenção em quem aquecia seu lado da cama quando ele deixava sua esposa sozinha, provavelmente.
Sem saber de nada disso, Maurício considerou uma inteligente atitude de preservação da própria vida erradamente como uma admissão de derrota intelectual. Assim, a reunião pode prosseguir sem nenhum morto/ferido.
E, pensou Cristina, que Deus fosse abençoado por um ser humano tão ingênuo. Amém.
- Eu entendo o que Cristina quer fazer – disse Teresa, e todos olharam para ela – Ela quer que Miguel ganhe a confiança dessa mulher.
Cristina confirmou com a cabeça, admirada pela clareza do pensamento.
- Pode até ser – atacou Olga novamente – Mas e depois?
Teresa sorriu para ela de forma um tanto psicótica. Cristina não teria se admirado se Olga tivesse se encolhido num instante, mas ela se manteve lá, firme.
- Em que mundo estava quando isso começou, Olga? Para mim, parece óbvio o que acontecerá.
- Desculpe se estava desnorteada por oferecerem meu marido como gigolô – justificou-se ela, ácida.
Teresa ergueu as sobrancelhas e não disse mais nada. Foi Maurício quem esclareceu a situação.
- Creio que o objetivo é armar um flagra – esclareceu de forma muito concisa.
Olga ficou calada por muito tempo.
- Vejamos se eu entendi – começou por fim – O plano de Cristina é armar para que meu sogro pegue sua mulher o traindo com o próprio filho dele?
Maurício assentiu, meio desanimado.
- Então é uma merda de plano – concluiu Olga.
- Você esperava o quê? – questionou Cristina – Não faz sentido armar algo complexo.
- E nem poderia, considerando sua capa...
E se interrompeu, porque naquele instante Dimitri começou a chorar. Ela o pegou, abriu os primeiros botões de sua blusa magenta e começou a dar de mamar. Mesmo com os seios cheios de leite, continuava despeitada.
Esse intervalo na discussão foi suficiente para Teresa intervir.
- Se ninguém apresentar um plano melhor, não vejo porque não continuarmos com este.
- E eu? – questionou Miguel – Alguém já pensou no que pode acontecer comigo quando meu pai me flagrar com Bárbara?
- Nada pior do que algumas porradas - opinou Teresa, pacífica.
- Algumas porradas? Ele vai me matar. Já não gosta muito de mim.
- Não precisa ter medo, Miguel – tranquilizou-o Cristina - Acredito que Adriano vai estar furioso demais com a esposa para se preocupar com você.
- Não estou com medo – respondeu ele entredentes – Só não queria que meu próprio pai tentasse me matar.
- Relaxa, Miguel – insistiu ela -Vai dar tudo certo.
Pela olhada que Olga lançou a ela quando ergueu o rosto de Dimitri, ela não concordava.