Capítulo 8
2772palavras
2023-01-09 06:28
- Olga, veja o lado positivo: Yuri vai ser lavado de seus pecados.
Olga olhou bem para ela.
- Cristina – disse, tensa dos pés à cabeça - cala essa boca.
Cristina mal podia segurar o riso. Olha quem falava de lavar os pecados.
E ela sequer acreditava de verdade no batismo. Como um bebê recém-nascido vai ser absolvido de algo se nem pensa direito para se arrepender disso? Sem sentido.
Mas, em algumas ocasiões, as crenças de Cristina (que eram raras) não importavam. O que importava era o uso que podia fazer da crença de outra pessoa. No caso, da crença de Teresa sobre batismo.
- Pense só se ele morrer sem ser batizado – prosseguiu ela – Vai ser uma alma pagã. Direto para o limbo.
- Cristina – continuou Olga, levantando-se – se você não calar a boca, vou te jogar varanda abaixo.
E ela transpirava assassinato. Poderia muito bem fazer isso. Deu as costas e foi em direção à cozinha.
Cristina recostou-se no sofá macio, satisfeita. Olhou de um lado para o outro da grande sala. Vazia. Maurício, quase metrossexual, estava se arrumando meticulosamente alguns andares acima, na cobertura que ainda vivia, de seu quase não presente papai e de sua mamãe, que também estava se emperiquitando para o batizado de seu primeiro neto.
Vinham dela o início da cadeia de eventos que, em breve, tornariam Cristina e Maurício os padrinhos de Yuri Alexei.
Tudo começara com as crenças de outra pessoa, no caso, Olga Rachmaninoff, que, apesar de budista, conservava uma opinião meio cristã protestante do batismo. Para ela, Yuri só deveria ser batizado depois de chegar à idade da razão.
Teresa, como orgulhosa membra da Igreja Católica Apostólica Romana, discordara enfaticamente desde que a questão fora posta em primeiro lugar, na segunda semana de vida de Yuri. Ela mesma batizara seus filhos com um mês de vida. É claro que o menino teria que ser batizado. E rápido. Quem seria louco de pensar ao contrário?
Agora, estavam no fim de agosto. O capetinha tinha quase dois meses de vida. Teresa já estava ficando nervosa com a perspectiva de seu netinho não ser batizado tão cedo.
Foi quando Cristina jogara suas cartas. Era um lindo domingo, ensolarado, mas não estupidamente quente. E ela falara. Sugerira. Não que desejasse a morte de Yuri, longe disso, mas, se por acaso... mortes de berço ainda aconteciam. Ele seria pagão. Iria para o limbo, ou até um lugar pior.
A ideia de uma linda criança queimando no mármore do inferno fez Teresa se levantar, puxando Cristina pelo cotovelo, e descer dois andares para ter um papo muito sério com sua primeira nora.
O resto fora consequência, inclusive a escolha dos padrinhos. Olga e Miguel não tiveram escolha mesmo. Era a família em primeiro lugar.
De repente, cortando as linhas do pensamento de Cristina, Miguel apareceu na sala vindo de um dos quartos. Trazia o filho no colo.
Pela primeira vez em muito tempo, ela pensou que um dia podia ter seu próprio bebê. Mas não naquele momento. Aquela ideia de segurar Maurício pela barriga fora estúpida, e, no final, nem fora necessária. Mas, dali a alguns anos... quem podia saber?
Miguel parou no meio da sala. O que era consideravelmente distante.
Cristina checou se estavam sozinhos. Positivo. Então mandou:
- Você não parece mais o mesmo.
Miguel levantou as sobrancelhas.
- Sou o mesmo – afirmou ele, categórico.
- De jeito nenhum. Tem esse novo enfeite aí.
Miguel olhou para Yuri no seu colo. Depois riu.
- Você sugere o quê, que eu o jogue fora?
- Não, não sou tão radical, mas que tal dar para a adoção?
Miguel fez que não com a cabeça, meio sério, meio divertido.
- Falando teoricamente, por exemplo, eu não te beijaria com esse novo enfeite.
Miguel só a olhou com ceticismo.
- Ah, certo – começou ele, ajeitando Yuri no seu colo – Se eu fizesse isso agora, aposto que você ia deixar. Sei que você quer.
Cristina pensou em Olga, que estava no aposento ao lado, e em Maurício, que não demoraria a chegar.
- Não – respondeu por fim – Isso meio que significaria uma execução.
- Só talvez. E você tem que viver perigosamente de vez em quando.
Cristina balançou a cabeça. Ela já vivia perigosamente. Além de brincar de tentar trair Maurício com James, ainda fazia pior: flertava com seu irmão.
- Não, obrigada.
Miguel transferiu Yuri para segurá-lo apenas com o braço direito.
- Que seja. Velhos hábitos nunca morrem. Um dia vai acontecer.
Cristina fez uma careta que não simbolizava total desagrado com a ideia. Afinal, isso era de fato uma coisa meio previsível de acontecer. Miguel e as namoradas de Maurício tinham certo histórico de atração.
Não era questão de destino, coisa na qual Cristina não acreditava. Era lógica mesmo.
- Agora – começou ele, aproximando-se e encerrando toda a conversa perigosa, fazendo Cristina ter um certo medo do que aquele temerário suicida fosse fazer – por que você não pega seu afilhado?
- Futuro – acrescentou ela, ao mesmo tempo em que Miguel sentava do seu lado e passava Yuri para ela – Futuro afilhado.
Aquele moleque era um capetinha, mas também era uma graça. Cristina tinha que ceder que Olga fizera um bom trabalho. Ele podia parecer um bebê normal, com cara de joelho comum, nas primeiras semanas, mas agora estava claro que era um fofo. Muito bonitinho. Dava vontade de apertar.
E era mesmo parecido com Miguel. Eles de fato se pareciam um pouco, teve que admitir Cristina para si mesma, já que Yuri fez as mesmas caretas típicas de seu pai quando Miguel, passando o braço por cima de Cristina, começou a fazer cócegas nele.
Foi quando aconteceu.
Yuri Alexei, futuro afilhado de Cristina, levantou a mãozinha e a pôs no peito dela.
E não tirou. E mais: deu uma apertadinha com sua mão minúscula.
Houve uma pausa meio incrédula por partes de ambos. Então Miguel gargalhou.
- Já nasceu sabendo, hein?
Olhando aquela expressão inocente, Cristina quase acreditou. Porque uma coisa que qualquer molequinho já sabia era que peitos eram bons e que davam leite gostoso.
Foi então que ela notou Miguel se aproximando devagar pelas costas dela. Antes que pudesse falar qualquer coisa, ele beijou a nuca dela, e a respiração dele fez todos os pelinhos úmidos do pescoço dela se eriçarem. Cristina ficou toda arrepiada e quase pulou do sofá com Yuri no colo. Girou e encarou Miguel.
- Você não tem vergonha não?
Ele deu um sorriso matreiro.
- Você não pode falar nada. Não é minha culpa se tem é um pescoço danado de sensível.
Cristina engoliu em seco, lembrando-se daquele dia longínquo de novembro.
Foi quando eles ouviram a porta abrir. Mal dera tempo para Miguel se afastar e eles viram Maurício. Teresa vinha logo atrás.
- Oi, Cristina. Já entrando no papel de madrinha?
Ela sorriu e esticou o bebê para ele.
- Quer?
Maurício hesitou um pouco e, depois que pareceu lembrar que o menino seria em breve seu afilhado também, o pegou e, pouco tempo depois, já brincava com ele, andando pela sala fazendo cócegas no capetinha e rindo. Maurício dificilmente ficava relaxado daquela forma com Cristina, parecendo tão livre, tão criança. Ele gostava de bebês. Se continuassem juntos, e se Deus quisesse continuariam, ele fatalmente insistiria para que Cristina engravidasse.
A ideia não parecia mais tão ruim, não realmente.
Mas poderia ficar para muitos anos à frente.
-
Era meio de setembro.
E James estava fugindo dela.
Cristina amassou uma apostila qualquer de tanta raiva. Estava sentada na entrada da faculdade, bem debaixo de um buraco de bala, herança do já tão longínquo confronto Assaltantes de Banco Azarados vs. Polícia Matadora do Rio de Janeiro, Capital.
Ela queria rosnar de ódio. Gente que não sabia perder era foda.
Cristina achava que ele tinha entendido, de verdade, que, às vezes, perder não era ruim. Mas ainda existiam resquícios daquele conceito imbecil nele.
Certo que ele não pegara aquela pneumonia de propósito, que o fizera não dar aulas por quase um mês. Mas Cristina bem sabia, graças aos seus contatos (podia-se ler contatos como Bruno, o monitor de James, que era um cara muito gracinha, mas tinha marcas de acne e não valia tanto a pena, embora fosse importante que ele achasse que valia para ser o espião de Cristina em linhas inimigas), que ele já voltara há uma semana. E nada de falar com ela. Ou seja, fugindo.
Ela tinha todas as provas de que sua média, depois de tanto estudo, tanto esforço, tantas matérias puxadas – 32 créditos, o máximo permitido -, era agora 9,1. Um salto bem considerável depois de ter terminado o primeiro período com a média 7,0 graças àquele babaca. Mais alguns décimos e ela poderia obter o mais alto grau de dignidade acadêmica quando se formasse, se conseguisse manter a média. Não que ela quisesse. Só correra como uma desesperada atrás de média porque contava com um prêmio no final. Depois que o tivesse conseguido, ia se lixar para aquela merda toda. E ela ia consegui-lo.
Era por isso que ela o esperava na entrada da faculdade, para garantir que, naquele dia, ele não escaparia. Ainda não sabia bem o que aconteceria depois que o tivesse encurralado, mas isso não importava naquele momento. O importante era esfregar o boletim na cara dele e mostrar que vencera, cobrando depois seu prêmio. E esperar que ele tivesse alguma honra e alguma inteligência para ceder.
Só esperar, claro.
Eram 8:50 da manhã, e nada de James.
8:51.
8:52.
Cristina esperaria o tempo que fosse necessário. Ele teria que aparecer naquele dia. Não podia ficar fugindo ad eternum dela.
8:53.
8:54.
Eram 8:55 quando ele deu o ar de sua graça.
Cristina se levantou assim que o olhou. Um instante depois, James a viu. Eles ficaram se encarando por uns segundos, separados por um metro e meio, dois, de escadaria. Então, James recuou e começou a andar bem apressadinho em outra direção.
Fugindo de mulher. Covarde. Cristina pensou de novo que ele talvez fosse um belo de um enrustido. Mas não importava. Era um enrustido gostoso. Ela respirou fundo, desceu as escadas e começou a correr na direção oposta. Deu a volta no prédio como se corresse por sua vida, e passou pela porta dos fundos muito antes que James tivesse sequer virado a esquina. Naquelas horas, os dez anos ou mais que os separavam faziam uma bela diferença. Cristina agradeceu a Deus pela inspiração de colocar tênis naquela manhã.
Ela checara os horários dele. Ele agora daria aula no quarto andar. O que significava que iria de elevador, se não fosse totalmente louco. Como estava dando a volta, pegaria o elevador de carga, pouco usado e desconhecido da grande maioria dos estudantes daquele prédio. Ele devia estar apostando que ela também não o conhecia. Uma ideia começou a tomar forma na cabecinha de Cristina enquanto ela disparava para o lugar onde ficava o elevador, atraindo alguns olhares sonados.
Chegou lá. Olhou para um lado para o outro, finalmente achando o nicho que era fundamental para sua ideia, seu pequeno plano. Se enfiou nele e, recuperando o ar em grandes sorvos, começou a esperar.
Ele chegou só andando rápido, meramente como se estivesse atrasado para a aula, não correndo para despistar uma aluna obcecada. Olhou de um lado para o outro exatamente como Cristina o fizera, mas não a viu, pois ela estava bem no fundo do nicho paralelo ao elevador e, portanto, não visível aos que apertassem o botão e ficassem esperando o negócio chegar, calmamente, como James fez.
Como ela contava que ele fizesse.
Cristina não entendia porque era obcecada por ele, de todos os homens que conhecia. Podia bem ser obcecada por Miguel, por exemplo. Ele seria bem mais fácil, já que estava absolutamente disposto a fazer tudo o que ela quisesse. Por que não ser obsessiva em relação a ele, então? Todos os outros aspectos de sua vida, afinal, eram regidos pela lei do menor esforço.
Mas aquela suposta contradição era fácil de responder: porque ele era seu cunhado, e, portanto vedado. Porque ele era marido de Olga, que mataria ambos tranquilamente se aquilo acontecesse, e pai de seu afilhado (não que isso significasse muito) então duas vezes vedado. Porque, por mais que ela fosse boa de manter segredos, a ideia de ser assassinada por Maurício, provavelmente seu futuro marido, não a agradava nem um pouco.
Ah, ah. Praticamente uma história de amor proibido.
Isso convenceria Cristina se ela não fosse tão descrente em amor, se por acaso atração mortal e irresistível tivesse mudado de nome e se ela não soubesse que Miguel fazia muito bem o tipo de cara que se apaixonava por qualquer par de peitos bonitos que visse. E se não soubesse que convencê-la a transar era uma espécie de questão de honra para ele.
Portanto, por mais que ele fosse gostoso, Cristina se contentava a flertar com ele de vez em quando. Porque, como ele mesmo dissera, era preciso viver perigosamente de vez em quando.
James era diferente. A situação dela com ele era mais como uma obsessão, explicada principalmente pelo fato dele ser bonito - ah, bonito demais para o seu próprio bem. Portanto, ela o quisera quase desde o primeiro instante que o vira. Um troço fulminante. Cristina às vezes pendia para a explicação de que já tinham se encontrado outras vezes, em outras vidas, por isso aquilo. Porque estavam destinados a se encontrarem. Mas depois ela descartava a explicação. Era uma pessoa profana demais para aquilo, quase pagã. A explicação devia ser mesmo que se tratava de uma simples atração fatal, mais ou menos como a que levava os animais a se reproduzirem daquele jeito.
O elevador chegou e James entrou, assoviando. Cristina esperou. Quando o elevador ameaçou fechar, ela correu para dentro. James quase morreu de susto. As portas se fecharam de verdade no instante seguinte e o elevador começou a subir, vazio com exceção dos dois.
- Eu consegui – disse Cristina, rompendo o silêncio enquanto pegava o boletim do bolso e jogava para ele – Agora, você me deve algo.
James olhou o papel. Enquanto isso, o elevador subia lentamente.
- Verdade, conseguiu – admitiu ele, mas antes que ela pudesse comemorar – Mas eu disse que ia pensar, lembra? Ainda estou pensando se vale a pena.
O sorriso nascente dela desapareceu, dando lugar a uma irritação sem tamanho.
- Pensando porra nenhuma! Você não quer é admitir que estava errado no fato que eu era burra e que perdeu essa bosta de aposta! Deus! Como você pode ser tão idiota e não querer transar com uma mulher que quer tanto dar para você?
Terceiro andar. Cristina deu um passo para trás, um pouco sem fôlego de tanto gritar com ele, e apertou um botão. O elevador parou.
James não falou nada. Só estava encostado na parede olhando Cristina.
- Tanto? – perguntou baixinho, desencostando-se da parede.
Cristina resolveu parar com as gracinhas. Se adiantou, o empurrou de volta para a parede e beijou James.
No início, ele parecia surpreso demais para fazer algo decente, mas depois, uh lá lá. O homem sabia beijar. Não só enfiava a língua como se quisesse deixá-la na garganta dela, ou injetava um litro de saliva em sua boca. Ambas essas coisas muitos garotos faziam. Não. Era diferente, talvez porque ele fosse o homem mais velho que Cristina já beijara. Mais como se ele a quisesse comer com os lábios. Ele se desgrudou da parede e trocou as posições deles. Foi a vez de Cristina ficar prensada.
Não era improvável esse lance de comer, na verdade. Os dois sozinhos ali, o elevador parado, o ambiente quente... coisas podiam acontecer.
Cristina desgrudou os lábios dos dele e o encarou. Sem olhar, localizou o botão de parada e o apertou de novo. O elevador voltou a se mexer. Cristina empurrou James e apertou o botão do quarto andar, onde sua aula estava ocorrendo. Passou a mão pelos cabelos e ajeitou as roupas quase sem pensar, não olhando para James.
- Acabou aqui? – perguntou ele às costas dela, parecendo meio engasgado de frustração.
Cristina virou a cabeça para ele, sorrindo com cinismo. O homem parecia que ia explodir, parecendo bem Cristina nos últimos meses, quando sentia que podia virar um montinho de cinzas a qualquer momento.
- Se você quiser, não – falou no momento em que as portas se abriram - Tem sua mão, não tem?
E saiu morrendo de rir, tendo certeza de que não se concentraria em nada nas próximas horas.