Capítulo 6
1420palavras
2023-01-05 06:05
Era preciso que se dissesse:
Teresa podia ser uma megera, mas sabia dar uma festa de arromba.
Cristina estava andando meio a esmo pelas varandas, depois de sair do salão que esvaziava pouco a pouco. Estavam no final de um casamento que, apesar de estar mais bem frequentado do que qualquer festa que ela costumava ir, acabara exatamente como todas: com todo mundo bêbado, trocando as pernas e, em alguns casos, dançando de forma constrangedora.
Deprimente.
Pelo menos, lembrou-se Cristina, ela conseguira chamar mais a atenção do que a noiva.
Isso já era esperado. Cristina era muito mais bonita. Não bonitinha, que era um mero eufemismo para feia arrumadinha, mas bonita. Tinha algo nela que chamava a atenção das pessoas. Claro que sua comissão de frente ajudava, mas o rosto, marcante sem ser bruto como o de certas garotas, bem tinha seu quinhão.
Mas a diferença fundamental era o estilo. Era esse estilo que, naquela noite, fizera com que ela e seu vestido vermelho se destacassem diante da grávida Olga e seu vestido caro, mas apenas passável, num altar de uma igreja católica da parte sul da cidade.
Mas não havia estilo que a salvasse da chatice que era ser madrinha. E ouvir aquela baboseira toda. A coisa toda era um negócio nauseante de promessas, compromisso e lealdade. O amor eterno subentendido. Todo aquele papo de união. E fidelidade – naquela parte, Cristina quase riu. Duvidava muito que Miguel fosse respeitar aquela parte.
Mas finalmente estava terminado, e Cristina aproveitava a ausência de Maurício para ficar pensando um pouco na vida. Embora fosse algo que ela fizesse pouco. Ou talvez exatamente por causa daquilo.
- Oi, Cristina.
Ela estremeceu. Colocou o copo de vinho na bancada e se voltou. Era Miguel.
Muito lhe admirara o fato que ele, depois de dois anos de agradável vagabundagem, fosse trabalhar nas empresas do pai. Depois entendeu. Não podia afirmar a respeito do pai (aquele dia era a exata quinta vez que o via), mas Teresa não parecia muito o tipo que fosse dar uma mesada para o sustento do filho, nora e neto. Sem contar que uma hora todo rebelde se convertia definitivamente ao sistema.
- Olá, Miguel – o observou melhor e continuou – Nem no seu casamento você para de beber?
Ele fez um gesto vago e tipicamente etílico com as mãos.
- Só estou aproveitando meu último dia de liberdade.
- Você já é um homem amarrado. Até que a morte os separe, lembra?
- Não, não quanto a isso, quanto ao negócio de ser chefe de família e tal.
Cristina deu uma risadinha.
- O que foi? – questionou ele.
- É que você não parece ser nem um pouco o tipo que se torna o chefe de sua família.
- Só por que a Olga é geniosa?
- É – disse ela, admirada pela clareza do pensamento.
- Acontece, Cristina, que eu tenho uma vantagem fundamental.
- Qual?
- O dinheiro.
Ela ficou em silêncio. Tinha que reconhecer que ele tinha a razão. Dinheiro era poder. E era o poder que deixava ela, Cristina, bem boazinha perto daquele núcleo endinheirado.
- Mas isso não importa – acrescentou ele, aproximando-se dela – Vou aproveitar minha liberdade por enquanto. Vamos dançar.
- O quê?
Ele a enlaçou ao mesmo tempo em que a música mudava para uma um pouquinho mais lenta. Que adequado.
- Estamos no seu casamento, não acredito que você vai fazer isso – comentou ela, nervosa, olhando para todos os lados e temendo encarar Maurício a todo instante.
Miguel olhou para ela bem-humorado.
- Que mente suja você tem, Cristina. Só estou dançando com a madrinha do meu casamento. O que você achava que eu iria fazer?
- Conhecendo você? Me alisar, claro.
Enquanto os dois dançavam meio desajeitados de um lado para o outro, Miguel ficou pensando, com um sorrisinho nada tranquilizador no rosto.
- Pegar nos seus peitos, por exemplo, seria uma tremenda cara de pau.
- Como se você fosse muito respeitoso.
Miguel concordou.
- Mas posso alisar outro lugar. E de uma forma mais discreta.
E desceu a mão que estava nas costas dela.
Não se poderia dizer que Cristina ficou boquiaberta de horror porque não esperava. Não realmente. Ficou de boca caída porque não acreditava na existência de uma pessoa tão temerária que quase chegava a ser suicida. Quase porque, do salão, ninguém podia ver aquilo.
- Você é louco?
- Só um pouquinho – confessou ele – Mas até parece que você não está gostando.
- Ah, é?
- Se não tivesse, já teria me empurrado.
Cristina não respondeu. Ela sequer tinha colocado aquilo em questão.
Os dois continuaram dançando, cada vez mais próximos. O coração de Cristina acelerava e ela respirava com dificuldade, sabendo que o momento que ele a beijaria se aproximava. E que depois daquilo talvez não houvesse volta.
Foi quando Cristina viu o vulto branco dentro do salão se aproximando deles.
Ela empurrou Miguel.
- Mas o quê... – começou ele, frustrado, sem entender.
- A Olga!
Como se tivesse sido chamada, a noiva abriu a porta.
Olga olhou primeiro para Miguel. Depois para Cristina.
- O que vocês estavam fazendo? – perguntou ela numa voz que pareceu muito fatal.
Cristina teria que calcular com cuidado seu próximo movimento. Grávidas hormonais podiam ser muito perigosas.
- Conversando – disse Miguel antes que Cristina pudesse abrir a boca.
Ele não era tão burramente temerário quanto parecia.
Olga riu de uma forma meio descrente. Sinal amarelo de perigo.
- E vocês lá têm assunto?
- Você ficaria surpresa – comentou Cristina.
Olga continuava meio cética, passando o olhar de Miguel para Cristina, mas depois de um tempo deu de ombros. Graças a Deus, ela não percebera nada.
Um vento anormalmente frio para aquela época do ano começou a soprar.
- Vamos entrar – sugeriu Miguel, tomando o caminho da porta.
Cristina fez que não com a cabeça.
- Gosto de vento.
Miguel deu de ombros e então olhou diretamente para Olga.
- Vamos?
Foi quando Cristina teve uma ideia. Afinal, ela tinha que deixar sua marca naquele casamento.
- Espera – disse ela rápido.
Os recém-casados a encararam em dúvida.
- É com a Olga – esclareceu ela – Você pode ir, Miguel.
Ele não pareceu entender, mas entrou no salão mesmo assim.
Cristina e Olga, sozinhas com aquele vento.
Cristina pigarreou e começou.
- Então, você está casada.
Olga, calada.
- E vai ter um bebê.
- Brilhante dedução, Miss Marple. Percebeu como?
- Já descobriu o sexo? – perguntou ela, ignorando o sarcasmo anterior. Aliás, ela não tinha a menor noção de quem era Miss Marple.
- É um menino.
Cristina tinha a forte impressão de ter ouvido Maurício falar que, apesar de ser meio paradoxal, Miguel queria uma menina.
- Parabéns - falou ela.
- Onde você está querendo chegar, Cristina?
- Estou querendo dizer que essa nossa inimizade não é mais importante.
- Incrível, não achei que você perceberia sozinha.
Cristina engoliu o sapo de novo. Era por um bem maior.
- Vamos acabar com isso com um abraço – propôs ela, pegando discretamente seu copo de vinho um quarto cheio.
- Você está falando sério?
- Muito sério.
Olga a avaliou de cima a baixo. Depois de um minuto, pareceu se convencer. Foi andando na direção dela daquela forma particular que as muito grávidas caminham.
Cristina quase sorriu, mas se controlou. Ela era mesmo uma excelente atriz. No segundo antes do abraço, ela atirou o vinho. O líquido se espalhou pelo vestido inteiro e escorreu até a cauda.
- Sua vaca! – exclamou Olga, olhando seu vestido – Você fez isso de propósito!
Cristina abriu o maior sorrisão.
- É, fiz.
- E aquele papo – prosseguiu Olga, em fúria – da nossa inimizade não ser mais importante?
Cristina alargou o sorriso.
- “Qualquer operação militar tem na dissimulação sua qualidade básica.”
Olga só olhou para ela.
- Sun Tzu, A Arte da Guerra – esclareceu Cristina.
Olga suspirou. Depois respirou fundo e tentou se acalmar.
- Suas operações militares são falhas.
- São?
- Sim – confirmou Olga – Você é falha, infantil e primária. Se quiser continuar essa guerra sem sentido – começou ela, com um breve sorriso superficial no rosto – pelo menos a torne mais inteligente. Essas técnicas baratas de sabotagem estão me cansando.
E, no alto de sua superioridade, deu as costas e saiu da varanda, deixando Cristina sozinha.
Mas ainda estava com vestido de casamento manchado de vermelho.