Capítulo 103
2237palavras
2023-02-08 10:37
- Confesso que estou curiosíssimo, senhora Rockfeller. – A fumaça do cigarro saía da boca dele como uma chaminé, querendo me contaminar de qualquer jeito.
Eu não sei se tinha como dar a notícia de forma lenta e verdadeira ou seria melhor inventar toda uma história bonita por trás. Não éramos nada íntimos para eu passar mais tempo ali e ele não era o tipo de pessoa que parecia ter sentimentos a ponto de eu precisar ter dó do que ele ouviria.
- Eu vim lhe contar algo sobre seu passado com Mariane.
Hardlles riu, sem retirar a porra do cigarro da boca, como se aquilo tivesse nascido com ele:
- Jura? Veio me contar algo sobre “meu” passado que eu não saiba? Deixe-me ver... Talvez eu não tenha sabido que sua irmã era uma vadia covarde... Ou quem sabe tenha ficado dúvidas sobre seu pai ser a porra de um filho da puta desgraçado?
- Pelo visto você conhece muito bem a minha família, Hardlles. Então vamos direto ao ponto que você não sabe: você e Mariane tiveram um filho.
Ele me encarou... Os olhos sombrios, o cigarro sem mexer-se no canto dos lábios, os dedos permanecendo exatamente como estavam na corda da guitarra. Depois de um tempo, virou-se novamente para o instrumento, tocando-o acoplado à uma caixa acústica, o som estrondando nos meus ouvidos.
- Mentirosa! – Foi o que saiu da boca dele, sem sequer olhar na minha direção.
Que cara filho da puta! Como Mariane teve a capacidade de se envolver com um homem daquele tipo? Parecia pouco se importar para o mundo que girava à sua volta, como se ele fosse a única coisa que realmente valesse a pena.
Eu detestava admitir, mas talvez meu pai tivesse razão em separá-los. Eu detestava julgar as pessoas, mas naquele caso parecia tão claro e cristalino quanto água.
Virei as costas e estava me dirigindo para a porta quando ele parou de tocar os acordes desarmonizados e disse:
- Me diga que está mentindo...
Virei na direção dele e repeti:
- Vocês tiveram um filho. Eu não estou mentindo.
Ele pegou finalmente o cigarro que pareceu nascer com ele e amassou no cinzeiro, que repousava sobre o braço do sofá. A guitarra foi para o chão e levantou, vindo na minha direção:
- Por que está me dizendo isso agora?
- Porque eu soube agora... Para ser exata, ontem. Eu estou com sérios problemas com minha família. Mas não estamos aqui para discutir isso, não é mesmo? Achei justo que você soubesse. Porque se depender de Mariane, você morrerá sem saber que é pai de um menino, que ela deu para adoção, anos atrás.
Ele seguiu me encarando, a boca semicerrada, sem sair uma palavra.
- Meu pai também tentou me separar de Charles, que você deve conhecer como Charlie B. A diferença é que eu não aceitei a opção que ele me deu, que era o aborto. Hoje tenho minha filha, ou melhor, filhas... – pus a mão sobre a barriga, crescida o suficiente para ele ver que havia um bebê dentro dela – Minha irmã não teve a mesma coragem... Ou talvez tenha sempre sido uma pessoa fria e sem coração. Eu não sei se você conseguirá conhecer seu filho... Sequer tenho certeza se esta notícia fará diferença na sua vida – observei a zona naquele cômodo – Mas fiz meu papel: dizer a verdade. O que você vai fazer com isso já não é problema meu.
Pus a mão na maçaneta e abri a porta. Saí para o corredor e ouvi o som fraco da voz dele:
- Obrigado.
Não olhei para trás. Simplesmente fechei a porta e saí. Porque eu não tinha certeza se tive raiva ou dó do que restou daquele homem.
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Cheguei em casa e fechei a porta, encontrando minha mãe sentada no sofá. Gelei por dentro, procurando J.R em qualquer canto. Mas não o encontrei.
- O que você está fazendo aqui? – Perguntei.
- Eu... Posso ficar por um tempo? – Ela levantou, o semblante triste.
Olhei para o lado e vi uma mala, próximo dela.
- Charlie B. precisou resolver umas coisas. Me deixou ficar. – Ela disse, sem jeito.
- Por que da mala?
- Deixei a mansão... E seu pai.
Balancei a cabeça, aturdida, confusa:
- Como assim? Eu não creio que você faria isso. Certamente há algo por trás, algum outro plano sórdido dele para...
Ela se aproximou e me abraçou, fazendo as palavras morrerem na minha boca. Percebi o choro contido e retribui o abraço, sentindo o coração acelerar.
- Me perdoe por ser tão omissa. Mas... Eu sempre fui fraca.
A apertei com força entre meus braços. Acho que no fundo, eu sempre esperei que um dia ela acordasse para a vida, fugindo do pesadelo de viver ao lado de Jordan Rockfeller. Não tenho certeza de quanto tempo ela ficou ali, chorando baixinho, parecendo com medo de ser ouvida por si própria.
Calissa se afastou e encarou-me, com seus olhos avermelhados e ainda tomados de lágrimas:
- Eu deveria ter feito isso quando você foi posta para fora de casa... Ou mesmo quando ele não aceitou o filho da sua irmã... – sim, certamente ela havia falado com Min-ji e estava ciente que eu sabia – Mas me faltou coragem. E também tive medo. Mas agora nada mais importa... Não há ameaças que me farão ficar ao lado dele... Porque eu sei que você é forte o suficiente para me proteger.
- Sou? – Senti as lágrimas invadindo meus olhos, deixando a visão embaçada e turva.
- A única pessoa que o enfrentou até hoje... Em nome do amor. O sentimento gigantesco que sentiu pela sua filha... E o pai dela.
- Jamais me passou pela cabeça não lutar pela minha felicidade.
- Abri mão da minha... Por toda uma vida. Mas nunca é tarde... Eu creio que eu ainda possa tentar ser só um pouquinho feliz.
- Nunca é tarde... E não pode tentar ser “só um pouquinho” feliz. Porque você merece ser muito feliz. Alguém que viveu tantos anos ao lado daquele monstro merece o mundo.
- Eu sofri ameaças a minha vida inteira. Eu não era esta pessoa que você está vendo agora... Fraca, sem opinião, submissa. Ele me destruiu aos poucos, fazendo eu não reconhecer a mim mesma quando me olhava no espelho. Fui perdendo cada um de uma vez... Mariane, você... Agora Min-ji, que era a única coisa que me restava naquela casa. Talvez eu não mereça o seu perdão, pois virei as costas quando mais precisou. Ainda assim lutarei para fazer parte da sua vida e da sua família... Não importa o tempo que levar.
- Mãe, eu desejei imensamente que sua atitude tivesse sido diferente não só naquele dia, mas em tantos outros. E... Bem, estou feliz que esteja aqui. E acredite, vou protegê-la.
Calissa tocou minha barriga e sorriu, limpando as lágrimas com o próprio ombro:
- Quero fazer parte da vida desta menininha... Desde o nascimento. Desejo que ela cresça sabendo quem eu sou e não precise implorar por amor quando ela sequer sabe que faço parte da sua família.
- Seja bem-vinda, mamãe! Fique o tempo que precisar. E se este tempo for “para sempre”, estarei feliz.
Ela riu:
- Será que há espaço para mais uma fugitiva?
- Bem... Yuna está num quarto com Min-ji. Tem o do bebê, que ainda não está completamente pronto.
- Posso ficar com Melody. – Ela sorriu, parecendo querer imensamente dividir o quarto com a neta.
- Pode sim. – Retribui o sorriso.
- Não vou ficar aqui para sempre. Talvez espere o bebê nascer, para ajudá-la no que for preciso. Depois vou procurar um espaço para mim.
- Pode ficar aqui, sem problemas.
- Eu já dependi demais de outra pessoa. Preciso da minha independência de volta. Necessito resgatar a antiga Calissa... Que era uma mulher de verdade.
- Ele... Alguma vez bateu em você?
- Não. As agressões sempre foram verbais e psicológicas.
- Como aceitou viver assim tanto tempo?
- Medo... Covardia... Eu não sei explicar. Mas quando vi que todos partiram e só restamos nós dois naquela casa enorme, me dei conta que acabou. Que eu não precisava mais ficar ali por motivo algum. Que tudo que eu amava ou precisava estava fora daquelas paredes erguidas de ambição e ostentação.
Então eu acolhi também minha mãe na casa que Charles havia comprado para nós três, que agora era de nós sete, se contasse a bebê junto.
Min-ji e Yuna chegaram logo depois e eu preparei o almoço, orgulhosa, para mostrar a minha mãe que, embora minha comida fosse horrível, eu sabia cozinhar.
Melody ficou feliz com a chegada da avó. Porque minha filha era inteligente o suficiente para perceber em mim as pessoas que nos faziam bem e as que faziam mal.
Naquela noite, eu e Charles estávamos deitados na cama, com a porta da sacada aberta, as cortinas esvoaçantes com a brisa fresca vinda do mar.
Ele repousava a cabeça na mão, apoiada pelo cotovelo no travesseiro, enquanto me fitava ternamente.
- Como você consegue ficar cada dia mais linda? – Tocou meu rosto.
Eu ri:
- Cada dia mais gorda, está querendo dizer?
A mão repousou sobre a minha barriga:
- Esta barriga a deixa ainda mais perfeita, meu amor. Porque aqui dentro tem uma pessoinha feita com muito carinho... Certa noite, num camarim.
- Se eu fechar os olhos, lembro de cada detalhe. – Confessei, sorrindo.
- Eu não preciso fechar os olhos para lembrar.
- Imaginou depois daquela foda perfeita que poderíamos ter feito um bebê?
- Bem, sempre que não há uso de camisinha, tem a possibilidade, não é mesmo? – Riu.
- Creio que somos muito férteis... Talvez nem nossas cuecas e calcinhas devam ficar muito próximas.
Ele deitou no travesseiro e riu divertidamente:
- Talvez você deva usar anticoncepcional.
- Sim, acho que está na hora. Depois do nascimento da bebê, vou ver isso.
- Acha que sua mãe vai ficar bem?
- Eu acho que sim. Talvez demore um pouco, mas vai dar tudo certo.
- Amanhã eu vou na Delegacia levar a gravação. Colin vai comigo.
- Vocês são amigos agora? – Comecei a rir.
- Não! Claro que não! Mas também não somos inimigos.
- Ah, Charles... Como você consegue ser tão...
- Tão? – Ele me olhou, curioso.
- Tão “el cantante”? – Comecei a rir, abraçando-me nele.
- Sim, eu sei que sou gentil, bondoso, ótimo pai, amante perfeito, dono de lindos olhos verdes... E com uma voz simplesmente espetacular.
Encarei-o seriamente:
- Só isso?
- Posso ter esquecido de mais alguns detalhes.
- Convencido? Seria esta a parte que esqueceu? – Tapei os olhos com as mãos, rindo.
- Só um pouquinho.
Deitei a cabeça no braço dele, sentindo-me amada, protegida e segura. Agora eu já entendia que não era um sonho. Que era real: eu, ele, nossas filhas...
- Sua mãe quer ir junto na Delegacia. – Afirmou.
- Quer? – Arqueei a sobrancelha.
- Colin acha que ela deve falar sobre o que viveu ao lado de seu pai.
- E ela quis fazer isso?
- Sim.
- Ela... Não me contou nada.
- Talvez não tenha dado tempo.
- Eu acho que faz bem... E sinto orgulho dela em aceitar contar a verdade e esperar pela punição dele.
- Acho que em breve Yuna e Min-ji deixarão a casa.
- Acha?
- Colin disse que estão escolhendo um lugar para morar... Ele e Yuna.
- Mas... Já? Não é rápido demais?
- Acho que eles querem um espaço mais reservado, entende?
- Bem, eu gosto do nosso espaço. – Confessei.
- Sim. Só que ele foi pensado para nós... E não para todos eles.
Encarei-o:
- Amo todos eles aqui... Mas sinto falta de nós três.
- Sim, precisamos viver isso, pois nunca tivemos.
Voltei a abraçá-lo, aconchegando-me em seu corpo quente. Entendia que os hóspedes eram temporários e sentiria falta quando partissem. Mas não via a hora de curtir nossa família.
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Naquele dia Charles foi com minha mãe e Colin para capital, onde fariam as denúncias formais contra Jordan Rockfeller.
Eu entreguei os documentos com relação à desvio de impostos da empresa, por parte da minha irmã, para que fossem entregues juntos. Não cheguei a falar com minha mãe a respeito do que estava a fazer, até porque era uma decisão que já estava tomada e eu não voltaria atrás. Mariane precisava sofrer as consequências de seus atos, assim como me fez sofrer as dos meus, como quando optou por mostrar o vídeo na noite de Natal, havendo o risco de Charles não me perdoar.
Min-ji e Yuna saíram também. Elas passavam mais tempo fora do que em casa, sempre resolvendo alguma coisa. Yuna parecia estar feliz com a relação que estava tendo com Colin.
Melody não foi à escola. Eu queria aproveitar a saída de todos e curtir um dia com minha filha, só nós duas, como fazíamos antes de voltar para Noriah Norte.
Pela manhã teve chocolate quente. Depois fomos para praia. O almoço foi pizza, nosso prato preferido. À tarde, cansadas, deitamos no sofá para assistir televisão e acabamos adormecendo, esgotadas.
Ouvi batidas na porta e despertei. Retirei Melody, que deitava no meu braço, cuidadosamente, tentando não a acordar.
Fui até a porta e abri:
- Gui? Kelly?