Capítulo 64
2058palavras
2023-02-08 10:16
Saí, quase sendo empurrada de volta para dentro da casa com a ventania. Estava escuro, nuvens pretas encobriam o céu e trovões ecoavam para todos os lados, seguidos de relâmpagos. E embora eu não tivesse visto, sabia que minha pequena estava na rua, fugindo, de toda situação na qual a pus.
Deus, em que direção ela teria ido?
Retirei meu calçado, jogando longe e saí para o lado esquerdo, sem ter certeza se ela tinha tomado aquele caminho. Ouvi gritos chamando por mim e Medy, mas não voltei.

Meus pés afundavam na areia e eu lutava contra a dificuldade que era correr naquele chão. Não tinha sinal de Melody em lugar algum.
Eu queria que chovesse, pois desta forma a areia abaixaria e seria mais fácil para visualizá-la caso estivesse na beira da praia.
As lágrimas tomaram conta dos meus olhos, misturando-se com a areia fina que castigava meu rosto. E se ela tivesse entrado no mar? Ela não conhecia a praia... Nunca tocou os pés no mar... Poderia ter se empolgado e... Não, eu não queria pensar nisso.
Precisava focar que era Melody, minha filha inteligente e madura. Eu sabia que ela ficou nervosa com tudo que estava acontecendo naquela porra de casa. Se eu soubesse que a estaria expondo daquela forma, não teria vindo.
Éramos nós duas e nosso mundinho perfeito. Eu a joguei aos leões... E o pai dela estava entre eles. Claro que ela o reconheceu. Ainda assim não falou nada. E por que? Como ela conseguiu se conter quando tudo que desejou a vida inteira foi conhecê-lo?
Deus, por que és tão cruel comigo? Por quantas provações ainda terei que passar? O que fiz de tão ruim nesta vida?

Senti alguém puxar meu braço e acabei desequilibrando-me e caindo. Vi Charles ao meu lado, no chão, tombando ao tropeçar em mim.
Meu coração quase parou. Ficamos nos olhando por alguns segundos. Tentei falar, mas as palavras não vieram.
Ele limpou meu rosto e levantou, puxando-me pela mão:
- Vamos encontrá-la. – Disse, correndo comigo pela mão, me incentivando a continuar.

Charles, é a nossa filha! É a sua filha! Você está aqui comigo e nem sabe a verdade. Ainda assim, veio.
A chuva começou a cair. Não veio aos poucos. Já começou como jogada de balde, nos encharcando. A areia parou de correr com o vento e a dor no rosto passou, melhorando de certa forma a visibilidade.
- Medy! – Gritei, parando, não aguentando mais correr.
- Medy, cadê você? – Charles gritou, girando o corpo enquanto olhava ao redor.
Como num sonho, a vi ao longe, andando na nossa direção, lentamente.
Parei, sentindo ainda as lágrimas, misturadas com a chuva gelada. O mar bravio estava a um passo de nós. Os trovões continuavam a ecoar, mas o céu já não estava mais tão escuro.
Minha filha foi se aproximando, o vestido grudado ao corpo. Estava descalça e os cabelos claros completamente molhados. Os olhos dela estavam fixos em Charles.
Ele não sabia quem ela era. Mas Melody sabia que era seu pai... Que esperou por cinco longos anos, sempre com a certeza de que um dia aquele encontro ocorreria.
Tudo estava errado naquela casa, naquela família, naquele dia. Tudo... Exceto aquele encontro.
Eu não podia esperar, porque sabia que para nós dois poderia não haver um amanhã. Ou mesmo um depois.
Nos encontrávamos, mas o destino parecia não nos querer juntos. Desta forma, eu não poderia desperdiçar um minuto sequer. Logo todas as demais pessoas estariam ali e tudo destruído, completamente... Inclusive “nós três”.
Charles ajoelhou-se no chão e eu fiquei ali, imóvel, acompanhando nossa Melody ficar a um passo dele.
Até hoje não sei como sobrevivi àquele momento, certamente o mais emocionante da minha vida inteira. Porque se eu morresse ali, eletrocutada por um raio, sabia que minha pequena estaria segura.
Porque eu queria odiar o pai dela... Mas eu não conseguia. Porque o amei desde o primeiro momento que o vi, naquele palco, segurando-me pelo braço, evitando a minha queda. Quando meus olhos pousaram sobre aquele verde-esmeralda dos dele, eu sabia que era para sempre.
- Agora me responde... Sem medo... Estamos só nós... – ele disse para ela, de forma clara, os olhos nos dela, a cabeça exatamente na mesma altura que a filha – Você sabe quem eu sou?
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça e a mãozinha foi aos olhos e tenho certeza que, misturado aos pingos da chuva, estavam as lágrimas dela.
- Então me diz... Por favor... Me diz com palavras... – Ele sentou-se, a voz fraca, parecendo cansado.
- Você é o meu papai. – Ela disse com a voz fina, embargada e eu sabia o quanto ela esperou por dizer aquelas palavras.
Ele abriu os braços e ela jogou-se neles, sentindo o pai pela primeira vez. E eu? Ainda tentava entender como sobrevivi... Porque lágrimas eu já não tinha mais para derramar.
Olhei para o céu, sentindo os pingos fortes me maltratarem e implorei: “Deus, faça com que ninguém chegue neste momento.”
Não tenho certeza de quanto tempo eles ficaram ali. Mas eu ouvi o choro de Charles. Não eram só lágrimas... Era o amor da minha vida, chorando feito uma criança.
Se ele me culparia por não ter dito? Se passava pela cabeça dele que tentei escondê-la? Nada me importava. Porque o que eu mais queria estava acontecendo naquele momento: o encontro dos dois.
Eu estava com medo de alguém aparecer. Não queria ser encontrada... Precisava que os dois tivessem o tempo deles.
Achei ter visto um vulto próximo. Meu coração disparou:
- Acho que estão vindo... – Falei, amedrontada.
Charles levantou-se e pegou Melody nos braços. Me olhou e, parecendo adivinhar meus pensamentos, disse:
- Vamos, corra.
Seguimos o caminho em direção ao desconhecido, correndo contra a chuva que vinha jogada na nossa direção com o vento. Senti a mão dele na minha e a apertei.
Melody grudou-se ao pescoço dele, as pernas enganchadas em seus quadris.
Quando percebi, ele me puxou para a esquerda, entrando na mata. Não pensei duas vezes, segui ao lado dele, segurando firmemente sua mão.
Sob as árvores a chuva era mais fraca. A areia, molhada, estava misturada à galhos e folhas.
- Cuide os pés... Está descalça.
- Vou cuidar. – Garanti.
Ele parou:
- Espere, vou lhe dar meu tênis.
- Não, Charles, não precisa.
- Sim, precisa. Vai machucar os pés.
- Não quero parar... Por favor. Vamos rápido. – Segui, puxando-o, a contragosto.
- Nós vamos dormir na floresta? – Melody perguntou, com um sorriso no rosto.
- Se você quiser, podemos dormir na floresta. – Charles disse, sorrindo.
- Eu quero, papai.
- Quer? – O sorriso dele era radiante. E eu parecia uma boba, olhando os dois e querendo que aquele momento não acabasse nunca mais.
- Quero muito... Só nós três. Medy não quer ninguém mais... Só o papai e a mamãe.
- Seremos só nós três, eu prometo – ele me olhou – Para sempre... Posso prometer que será para sempre?
- Pode. – Falei, sentindo-o me puxando para seu corpo, o braço me envolvendo pela cintura.
Relaxei e pus meu braço em torno do corpo dele, sentindo seu calor sob a jaqueta fina num tecido levemente brilhoso, que imitava couro. A sola dos meus pés doía, mas eu pouco me importava. Poderia andar até sangrar ao lado dele.
Não tenho certeza de quanto tempo andamos pela mata, nos escondendo de não sei o que ou quem. Talvez do mundo... Ou do destino... Acho que Charles também tinha medo da falta de sorte nos encontrar de novo.
As pessoas era o que eu menos temia naquele momento. Queria só que o destino não nos encontrasse e novamente nos desse uma rasteira.
Não sei se a chuva diminuiu ou as árvores impediam as gotas de caírem de forma tão intensa. Olhei para os meus pés e vi que não tinha mais areia ali e sim raízes, um mato fino e baixo e galhos cortantes. Percebi um pouco de sangue na minha perna e no dedo.
- Nós vamos ficar aqui... Parece um lugar mais abrigado. – Ele disse, indo em direção a uma árvore não tão alta quanto as outras, com galhos mais compridos.
Charles pôs Melody no chão e disse:
- Você vai sentar aqui. E eu vou cuidar da mamãe, ok?
Ela assentiu com a cabeça, sentando. Charles pegou-me no colo, sem cerimônia, pondo-me sobre um tronco da árvore que estava saliente no chão:
- Eu mandei você colocar meus tênis. Sabia que isso ia acontecer. – Reclamou, olhando meus ferimentos.
- Está tudo bem – garanti – São só alguns arranhões.
- Como este? – Sorriu, tocando minha cicatriz no tornozelo.
- Sim... – Eu ri.
- Deste jeito vou me culpar por todas as suas cicatrizes.
- Não houve cicatriz dela. – Olhei para Melody.
- Imaginei... Não vi nenhuma cicatriz no seu corpo naquela noite... No camarim.
- Não ficaram no corpo, só na alma. – Confessei.
Ele tirou os tênis e pôs as próprias meias úmidas nos meus pés, de forma carinhosa, enquanto disse:
- No meu caso, também no corpo... No coração.
- Podemos... Falar disso depois? – Olhei para Melody.
- Claro. Até porque, não sairemos daqui até tudo ser dito. Concorda?
Assenti, com a cabeça. Era o que eu mais queria.
Charles retirou do bolso da jaqueta uma caneta e um pequeno bloquinho de anotações, seco. Entregou-me.
- O que é isso? – Perguntei, arqueando a sobrancelha.
- É algo que trago comigo desde o nosso último encontro. Por favor, anote seu telefone, de todos os seus amigos mais próximos, o número do seu documento, seu endereço e nome completo. É para caso um raio caia sobre esta árvore e a parta no meio, nos deixando um de cada lado. – Ele riu, balançando a cabeça.
- Seu bobo! – comecei a rir – Mas por via das dúvidas, eu vou anotar. Só para o caso de surgir uma barreira entre nós, ou um muro de concreto, do nada...
Anotei meu telefone, endereço e por fim: Charles, Sabrina e Melody, desenhando um coração.
- Eu posso escreve também? – Melody pediu.
- Claro! – Charles arrancou a folha que escrevi e guardou no bolso da jaqueta, entregando o bloco para Melody, junto da caneta.
- Só para deixar claro: pode morrer de frio, eu não lhe darei minha jaqueta. – Falou.
Arqueei a sobrancelha:
- Saiba que concordo com você, “el cantante”.
- Papai, eu tenho um presente para você. – Melody disse, levantando e vindo na nossa direção.
Charles estava sentado ao meu lado. Ela abriu os joelhos dele e se pôs no meio, retirando do pescoço o cordão com a concha que lhe dei.
Ele segurou a concha e tocou as letras, me olhando. Melody pôs no pescoço dele e eu fechei.
- A gente guardou para você. – Ela disse, orgulhosa.
Ele a abraçou com força, envolvendo-a com suas pernas:
- Obrigada, minha menina. Você é a coisa mais linda que já vi em toda a minha vida, sabia?
- Mamãe também diz isso. E que meus olhos são iguais aos seus. Eu vi a sua foto, no celular dela. E descobri sozinha que você tocava a minha música da “Garota riquinha”.
- Pelo visto você é tão inteligente quanto a sua mãe.
- Sim – ela disse – E agora você precisa escrever a letra M na concha. M de Melody. Melody vem de Melodia. – Explicou.
- Nossa Melodia. – Ele me olhou, os lábios trêmulos ao pronunciar aquelas palavras.
- Isso... Você já sabe, papai. – Ela sorriu de forma encantadora.
- Nunca vou esquecer. – Ele a puxou para si, aconchegando-a em seu colo.
Melody sorria sem parar, enquanto os olhos ficavam a analisar o pai minuciosamente:
- Você é bonito. – Falou, enquanto tocava seu rosto com os dedinhos macios.
- Não... Já estou velho... E sem conserto. Você que é linda... Como a sua mãe. E eu vou fazer o M aqui mesmo, pode ser? Vou encontrar algo para conseguir escrever na concha...
- Por favor, faça bem pequeno o M. – Pedi.
- Por quê? – Ele me olhou.
- Porque acho que dentro de uns sete meses vai ter que fazer mais uma letra na concha.