Capítulo 44
2346palavras
2023-02-08 10:03
Eu não tentei ser forte. Chorei, ali, na frente de Melody, pela primeira vez expondo minha maior fraqueza: a falta que o pai dela me fazia.
Yuna não fez nada. Nem tentou impedir meu choro. Ficou ao meu lado, esperando que eu me acalmasse.
Depois de alguns minutos, respirei fundo e preenchi meus pulmões com o ar, que parecia faltar. Peguei um lenço de papel no porta-luvas e limpei o rosto, depois assoando o nariz. Se fosse há anos atrás, jamais eu usaria o mesmo papel para ambas as coisas. Mas eu não era mais a mesma pessoa. Eu troquei fraldas e até hoje limpava minha filha depois que ela ia ao banheiro. Um mesmo papel para lágrimas e secreção nasal era das coisas menos piores que eu fazia.

Pus o papel no lixo e olhei para Melody, que estava sentada sem dizer nada, os olhinhos verdes arregalados, fixos nos meus:
- Me perdoe, Medy. Eu não deveria ter falado com você desta forma.
- Eu não devia ter me metido, mamãe. Não fique assim, vai ficar tudo bem.
- Por que você não é uma criança normal? Por que tem que ser tão linda e perfeita? Eu só posso ter errado nas contas... Porque minha Medy não parece ter cinco anos.
- Pode ter errado... – Yuna riu.
- Deus me livre! Se eu errasse as contas ela seria filha de Colin. E acredite, dentre as poucas certezas que eu tenho na vida, uma delas é que Medy é filha de Charles.

- E as outras certezas? Quais são?
- Que por mais que eu tente fingir que não... Eu tenho uma família. E me dói o fato de eles terem me enterrado viva. – Confessei pela primeira vez meus sentimentos com relação aos Rockfeller.
- Tem mais alguma?
- Que amigos de verdade não te abandonam nunca. E não falam o que você quer ouvir e sim o que “precisa ouvir”.

- E eles sempre estarão com você. Nas horas boas e ruins. – Ela tocou minha mão carinhosamente.
- Obrigada.
- Acho que está na hora de você viver, Sabrina. Muito tempo já se passou. Você se dedica em tempo integral ao trabalho e a sua filha.
- A mamãe precisa de um namorado. - Melody disse isso, aos cinco anos de idade, compreendendo exatamente o que se passava naquele momento.
A minha menina era inteligente e perspicaz. Tinha um vocabulário amplo e pronunciava corretamente as palavras. Às vezes ela me parecia uma mini adulta. Mas eu sabia que grande parte daquilo era porque Yuna e Do-Yoon também fizeram parte do crescimento dela. E ambos eram muito inteligentes e não infantilizavam muito as crianças, típico de sua cultura.
- Bem, vamos levar Yuna embora. – Olhei para trás e pisquei.
Melody piscou de volta. Eu adorava quando ela fazia aquilo, pois era uma das poucas coisas que ela não sabia. E acabava fechando os dois olhos juntos, com força, enrugando o nariz perfeitamente arrebitado.
Quando chegamos em casa, ela foi diretamente ao aquário e deitou-se de bruços sobre o sofá, com o rosto apoiado nas mãos enquanto observava o peixe nadando sozinho em sua água límpida.
- Vamos dar comida ao Solitário? – Sugeri.
- Pode ser. – Ela disse, sem levantar.
Peguei a comida que vinha num recipiente plástico e joguei um pouquinho na água. O peixe laranja subiu até a superfície para alimentar-se.
- Solitário parece estar feliz com a comida.
- Sim... Este peixe está feliz com a comida.
- Este peixe? – Questionei.
Melody estava quieta, somente a observar. Não parecia empolgada com seu peixe.
- Este não é o Solitário.
- Como assim? – Perguntei, perplexa.
- O que será que houve com ele? – Ela seguiu com os olhos fixos no aquário.
- Mas... É o Solitário, Medy.
- Não, não é. As nadadeiras do Solitário não eram laranjas. Eram escurecidas nas pontas. Este é todo laranja.
Olhei bem para o peixe, que parecia exatamente igual ao outro:
- Você... Talvez tenha visto errado a cor...
- Eu vou gostar deste peixe igual... Mas vou ter que escolher um nome para ele... Porque não é o meu Solitário.
Arqueei a sobrancelha, incapaz de dizer que o verdadeiro peixe foi comido pelo gato.
- Vai ser Solitário II. – Ela sorriu, sentando e tocando o aquário com o dedo indicador, de onde o peixe se aproximou.
- Seja bem-vindo, Solitário II – falei, me dando por vencida – Vou preparar algo para comermos.
- Eu... Não quero comer peixe.
- Eu não faria peixe para você comer.
- Eu nunca mais vou comer peixe na vida.
- Medy... O que é isso?
- Solitário pode estar em algum prato neste momento.
- Isso faz parte, Medy.
- Acha que alguém levou ele para comer?
- Não... Eu... Acho que não... – Fiquei incerta do que dizer.
- Mãe, eu não quero ter o Solitário III.
- Então... Não terá o Solitário III.
Porque juro que vou fechar as janelas todos os dias quando sair, impedindo o gato de roubar seu peixe do aquário novamente; prometi para mim mesma.
Era final de outubro e Guilherme Bailey simplesmente ignorava minha presença por completo na sala. Completava um mês que sequer respondia a chamada. Nem olhava na minha direção.
Ele cumpriu o que prometeu: não se aproximou mais de mim.
Claro que eu deveria estar feliz com isso, afinal, tinha me livrado do garoto. Mas então por que aquilo me deixava inquieta e insatisfeita?
Eu senti falta dele e de toda sua ironia. Senti até saudade das cantadas infantis e dos olhos que pareciam me devorar.
Tentei sair uma única vez à noite, sozinha. Yuna não gostava da vida noturna e isso servia não só para danceterias, mas também para bares.
Do-Yoon estava namorando com Lianna, finalmente. E ele pediu a mão dela para os pais no segundo encontro. Tentei impedir, mas era tarde. E no fim, deu certo. Lianna, embora não tivesse nenhuma ligação com a cultura oriental, estava disposta a conhecer. Os dois haviam combinado de passarem o final do ano na China, junto da família dele.
Yuna, por sua vez, não iria. Estava cansada e torcendo para o ano virar logo e o movimento diminuir no Hospital. Ela dizia que as crianças ficavam mais doentes nos últimos meses do ano.
- Guilherme, eu poderia ver seu caderno com os exercícios resolvidos? – Pedi, quando percebi que ele estava fora do lugar, conversando com Rachel.
Ele levantou com calma e pegou o caderno, pondo sobre a minha mesa. Corrigi as questões, que estavam todas corretas. Olhei na direção dele e falei:
- Parabéns. Você é bom na Matemática. Já pensou no que vai fazer quando acabar o ano? Falo com respeito à escolha da Faculdade.
- Não lhe devo satisfações do que vou fazer depois que sair daqui. – Foram as palavras duras dele ao me encarar.
Alguns riram do comentário dele e outros me observaram, com um olhar de dó. Aquele garoto conseguia ser bem cruel quando queria.
Quando a aula acabou e todos se retiravam, chamei-o novamente:
- Guilherme, poderia vir até aqui, por favor?
Ele veio na minha direção, não demonstrando nada. Nossos olhos se encontraram e eu desviei, guardando meu material:
- Posso saber o que está acontecendo? Você está com algum problema? Posso ajudá-lo em algo?
- Não. Só estou fazendo o que você pediu: me mantendo afastado.
- Eu falei com relação a minha vida pessoal... Não de outra forma.
- Estou me mantendo longe, professora, exatamente como pediu. Caso mude de ideia com relação a isso, precisa me avisar.
- Como assim?
- Se o fato de eu estar afastado lhe incomoda, diga que quer que eu me aproxime – ele foi saindo vagarosamente. Antes de fechar a porta, concluiu: - Mas quando me pedir, não será só como aluno, pode ter certeza.
A porta se fechou e eu fiquei ali, olhando para ela, sem conseguiu me mover. Garoto atrevido... E lindo.
Eu pensava nele algumas vezes. E já o imaginei me tocando. O olhar de Guilherme era de completa luxúria. Mas eu era sua professora. E tínhamos cinco anos de diferença. Talvez agora representasse muito. Futuramente não.
Sério que eu estava pensando no futuro ao lado daquele garoto? Ele era inteligente, debochado, líder, popular, bem quisto por todos, fazia trabalho voluntário com crianças, jogava futebol muito bem... Mas tinha dezoito aninhos.
Com dezoito anos eu estava parindo a minha filha. E tinha sido fodida de todas as formas por um desconhecido numa casa de praia, depois de ter deixado meu noivo traidor no altar.
Yuna e Melody estavam certas. Talvez fosse hora de eu virar a página e esquecer Charles. Me convencer de que foi um final de semana perfeito e jamais voltaria a se repetir. Nunca mais o encontraria.
Estava na sala dos professores quando vi Sibila e a professora de Português falando sobre Guilherme. Me aproximei delas e ouvi a outra professora dizendo:
- Ele é inteligente, mas finge não ser. Eu sei que ele sabe, entende? Mas não sei como tirar isso dele.
- Com licença... Mas estão falando de Guilherme Bailey? – Me intrometi na conversa, recebendo os olhares das duas na minha direção.
- Sim. – Sibila confirmou.
- Ele vai muito bem na Matemática. Acerta tudo. Mas tem estado muito calado nas últimas aulas. Ainda assim não deixa nada por fazer. Mas não participa mais oralmente, como fazia.
- Gui é um menino com inúmeros problemas – Sibila nos explicou – Ele tenta chamar a atenção... Só não sei exatamente de quem. Há um tempo atrás ele fazia acompanhamento na escola com a Psicóloga, pois vivia metido em encrencas, tanto com os alunos quanto com os professores.
- E ele parou o acompanhamento? – Perguntei, interessada.
- Sim. A avó achou melhor ele fazer isso fora da escola. Ele faz terapia, atividade física...
- Futebol. – Lembrei imediatamente.
- Sim... Por ordem da Psicóloga, que solicitou que ele encontrasse coisas que gostasse de fazer e ocupassem seu tempo.
- Eu soube que ele faz voluntariado também. – A outra professora comentou.
- Sim... Então ele não é de um todo ruim, entendem? – Sibila tentou defendê-lo.
- Ele definitivamente não é um garoto ruim. Mas o que o perturba? Por que você só menciona a avó quando fala dele? E os pais?
- Ele foi criado pela avó. São só os dois. Ela tem boas condições financeiras, mas ouvi dizer que a filha gastou boa parte das economias da família.
- A filha... Seria a mãe de Guilherme?
- Sim... Mas isso são boatos. A avó é bem discreta e nunca comentou nada sobre isso. Mas só conhecemos ela aqui na Escola Progresso. A mãe nunca apareceu. E a avó é superprotetora.
- E o pai?
- Eis a questão. O garoto passou a vida sendo disputado pelos pais na Justiça. Ano passado o pai e a mãe perderam definitivamente a guarda, que ficou com a avó, por escolha dele próprio.
- E... Por que o disputavam judicialmente?
- Dinheiro? – Perguntou a outra professora.
- Já me fiz esta pergunta. Talvez ambos quisessem o filho por ele ser o único herdeiro da família.
- Isso é triste. – Falei.
- Sim... Então, eu tento sempre entrar na mente e no coração dele e entender o seu lado. – Sibila disse.
- Talvez neste momento esteja tendo problemas de disputa entre os pais. – A outra professora afirmou.
- Creio que não. Ele já tem dezoito anos. – Me ouvi dizendo.
- Exato. Hoje ele mora com quem quiser e não há mais disputas judiciais.
- Pode morar até sozinho. – Observei.
- Sim... – Sibila arqueou a sobrancelha, me encarando.
- Estou querendo dizer que... Vou tentar ser mais flexível com ele. – Falei qualquer coisa que me veio à cabeça.
- Eu também. – Disse a outra professora.
Desci do carro e entrei na escola de Melody, me dirigindo para a sala dela. Quando abri a porta, dei de cara com Guilherme sentado no chão, com uma espécie de gaiola e todas as crianças ao redor dele.
- Boa tarde, senhora Rockfeller. – A professora me cumprimentou.
- Eu... Vim pegar a Medy. – Meus olhos encontraram os dele, que desviei rapidamente.
Melody levantou e pegou a gaiola rosa com branco, todas as criança vindo junto dela:
- Mamãe, o Gui me deu um hamster. – Levantou o objeto e vi uma espécie de rato branco correndo entre a serragem.
- Isso... É um rato? – Dei um passo para trás.
- Não... Não é um rato – ele levantou e veio na minha direção, explicando – Embora seja um roedor. A diferença é que ele não tem cauda, enquanto os ratos têm.
- Entendi... – Olhei o animalzinho que até que era fofo.
Percebi os olhos de Melody encantados com o tal hamster.
- Por que será que todo mundo acha que você precisa de um animal, docinho? – Sorri para ela, enquanto perguntava.
- Porque eu gosto de animais, mamãe.
- Ela me contou sobre o Solitário, que foi substituído misteriosamente – ele sorriu – Então, me senti um pouco culpado. E resolvi presenteá-la... Hoje é meu último dia aqui.
- Por quê?
- Vou trocar a escola para fazer o voluntariado.
- Não... Não é por minha culpa, não é mesmo? Ou por Medy?
- Se importa com isso?
Olhei para a professora, que nos observava atentamente.
- Medy, pegue sua mochila, por favor.
Ela me entregou a gaiola, que segurei desajeitadamente.
- O fato de ele não ter cauda o deixa mais vulnerável com relação a variações de temperatura, já que o rabo controlaria esta função. Então sugiro que não o ponha no sol, por favor... Ou teremos outro assassinato a sangue frio.
Eu comecei a rir e ele retribuiu o sorriso.
- Quem sabe... Você nos acompanha num sorvete e explica melhor sobre os cuidados que precisamos ter com o hamster? – Sugeri, sentindo meu coração bater descompassadamente.