Capítulo 43
2198palavras
2023-02-08 10:02
- Vinte e dois? – Ele perguntou.
Enruguei a testa, não entendendo.
- Ou vinte e três?
- Vinte e três. Completados há pouco. – Me ouvi dizendo, como se os meses fizessem toda a diferença.
- Tenho dezoito. Mas pode considerar 19 no ano novo chinês. – Sorriu de forma encantadora.
Eu ri e ele tocou meu colo, pegando a concha que adornava meu pescoço. Leu as iniciais e disse:
- O que quer dizer?
Eu retirei a concha dos dedos dele e dei um passo para trás, arredia. Ele havia tocado num assunto extremamente proibido e que me deixava fora daquele mundo, longe do presente.
Eu pude ver Charles na minha frente, as mãos fechadas, me mandando escolher.
Pus a mão direita para frente, não encontrando as dele. Fechei os olhos e balancei a cabeça, tentando dissipar aquela lembrança que me consumia e acabava comigo. Senti a mão quente na minha, que já não tocava mais o ar.
Abri os olhos e me deparei com os olhos cor de mel e não aqueles de um verde indescritível.
- Você é linda! – Guilherme disse seriamente.
Eu deveria me afastar e dizer qualquer coisa. No entanto eu aceitei as mãos dele na minha. O que aquele garoto tinha que me deixava tão confusa física e emocionalmente? Eu não era assim.
Fiquei por mais de cinco anos sem sequer olhar na direção de nenhum homem. E agora encontrava um aluno, de dezoito anos, que me fazia desejá-lo ardentemente, como aconteceu no passado com “el cantante”, onde fui tomada de um sentimento indescritível, tão forte que foi capaz de me fazer abandonar tudo.
A porta se abriu e Do-Yoon apareceu. Eu e Guilherme afastamos nossas mãos imediatamente. Senti o rubor tomando conta do meu rosto enquanto o olhar do meu amigo era sério e confuso:
- Rachel já está na sala. Os pais dela foram avisados. E a vó de Guilherme também.
- Não precisava avisar minha avó, professor. Se bem conheço ela...
- Sim, está vindo para cá. – Do-Yoon confirmou.
- Eu quero permanecer na aula. – Ele disse firmemente.
- Eu... Passei um antisséptico, mas ainda está sangrando... – Falei.
- Pode ir para sua sala, senhorita Rockfeller. Eu termino por aqui. – Do-Yoon foi na direção do garoto.
Quando voltei para a sala, o silêncio reinava entre os alunos. Rachel parecia querer me matar com os olhos e por incrível que pareça, não era bom dar aulas para o terceiro ano sem Guilherme Bailey presente.
Quando deu o sinal, antes de eu descer, fui interceptada por Rachel:
- Acha mesmo que ele pode se interessar por você?
- Garota, você me respeite. Eu fui legal com você hoje, pois poderia ter exigido que seus pais fossem chamados na escola e ter feito algo a respeito do que houve. Você agrediu um colega, dentro de sala. Poderia tê-lo deixado cego se a régua tivesse pego mais abaixo.
- Gui gosta disso. Ele sempre achou legal nossa relação exatamente como é.
- Não acho o que você chama de “relação” algo saudável. E quer saber? Se você fizesse isso com a minha filha na escola, eu não aceitaria de forma alguma.
- Mas eu não fiz com a sua filha. Foi com o “meu” namorado.
- Eu não tenho tempo a perder com uma adolescente mimada que só pensa no próprio umbigo e agride os outros quando se sente ameaçada. Se você gostasse dele de verdade, não teria coragem de feri-lo. O amor não é isso...
- Eu gosto dele há quatro anos.
- Como se o tempo fosse o que contasse para definir o amor! Fiquei quatro anos com um otário que dormiu com a minha irmã. E conheci o amor em menos de 48 horas, com um homem que nunca tinha visto antes. Do nada você pode conhecer outra pessoa e perceber que nunca gostou de verdade de Guilherme.
- Então eu fico fora da jogada e ele com você, não é mesmo? – Ela riu debochadamente.
- Eu não disse isso! Mas não vou me preocupar, pois sou responsável pelo que eu digo, não pelo que você entende.
- Saiba que nossos pais são favoráveis ao nosso relacionamento.
- Pior ainda... Um relacionamento ajeitado pela família. Talvez nenhum dos dois realmente queira estar nisso... Ou pelo menos não seja mútuo, como você imagina. Não deve ser relacionar com alguém porque a sua família quer e sim porque é do seu desejo, da sua vontade.
- Eu sempre estive ao lado dele quando precisou.
- Que ótimo! Eu não sou sua inimiga, tampouco sua rival. Sou só a sua professora. Não estou aqui para roubar o seu namorado, ou seu amigo... Mas também não vou aceitar que machuque pessoas sem motivo, neste caso, meu aluno. Eu faria o mesmo se ele fizesse isso com você.
- É proibido falar da sua vida pessoal com os alunos.
- E creio que não seja permitido machucar os colegas deliberadamente, sem motivo.
- Nesta escola os alunos podem tudo.
- Desde que isso não atinja a integridade física ou moral de alguém.
- Leu todo o manual da escola?
- Eu não tenho dezoito anos, Rachel. Desça e aproveite o restante do seu tempo livre antes da próxima aula. E talvez deva pedir desculpas ao seu colega.
Falando isso eu saí, não disposta a continuar a conversa.
Rachel Roberts era atrevida e debochada. E eu fiquei me perguntando se já fui aquele tipo de pessoa no passado, agindo daquela forma com os meus professores. Sim, pois também tive uma fase da vida onde achava que tudo era como eu quisesse e nada poderia sair fora dos meus planos. E isso incluía também pessoas.
Como sair da casa dos Rockfeller me fez crescer. Sim, amadureci talvez cedo demais e da pior forma possível: sofrendo e passando todo tipo de dificuldade. Mas eu era uma vencedora. Não pelo conquistei, mas pela pessoa que me tornei.
Fui mãe aos dezoito anos, sem saber nem o que era um bebê. Lembrei da história de Charles, que foi pai aos dezesseis anos e pensei na situação difícil e completamente inesperada pela qual ele também passou.
Eu abdiquei de tudo e fiquei com a minha filha. Ele não pôde. Teve que abrir mão do filho. E eu imaginava o sentimento que havia dentro dele, de ter o que tinha de mais precioso tirado dos seus braços.
Antes de buscar Melody na praça, fui em casa e pus o peixe novo dentro do aquário. Me certifiquei de que todas as janelas estavam fechadas antes de sair.
Quando cheguei no parque, vi Yuna sentada num banco, debaixo de uma árvore. Fui até ela e sentei-me ao seu lado:
- Bela sombra.
- Perfeita. – Ela sorriu.
- E Medy?
- Jogando com as crianças. – Ela apontou para frente.
Vi o gramado cheio de crianças e alguns adultos. Medy corria atrás da bola, sorrindo alegremente. Percebi que ela tentou chutar a bola e não a atingiu, caindo para trás. Saí correndo, sem pensar em mais nada a não ser levantá-la e me certificar de que tudo estava bem.
Quando cheguei perto, ela já havia sido socorrida.
- Mamãe! – Ela sorriu e me estendeu os braços.
Peguei-a no colo e a enchi de beijos, me certificando de que ela estava bem.
- Obrigada. – Agradeci ao homem, que levantou.
- Sabrina?
- Guilherme?
- Mãe, você conhece o Gui? – Melody perguntou.
Olhei para os dois, confusa.
- Medy é sua filha?
- De onde... Você a conhece?
- Eu sou voluntário na escola dela... Ensino futebol.
- Gui me ensinou a jogar bola.
- Não tão bem pelo visto... Você caiu. – Observei.
Ele riu:
- Eu ensinei também como cair, não é mesmo, Medy?
- Sim... – ela riu – Eu caí bem?
- Muito bem. – Ele disse.
Segui andando com Melody no colo. Ele seguiu ao meu lado.
- Está monitorando minha vida? – Perguntei.
- Não. É coincidência, acredite.
- Bem estranha.
- Conheci Medy antes de imaginar que você existia.
- Mamãe, você conhece Gui de onde?
- Ele... É meu aluno.
Paramos em frente à Yuna, que ficou a me observar.
- Yuna, este é Guilherme... Meu aluno da Escola Progresso.
- Olá. – Ela cumprimentou-o.
- Oi.
- Vamos continuar o jogo, garotinha? – Ele olhou para Melody.
Garotinha? Não!
Minhas pernas fraquejarem e sentei no banco, sentindo o sangue subir ao meu rosto. Cada ato daquele garoto me levava ao passado de forma cruel, fazendo-me lembrar de detalhes que até então estavam adormecidos dentro de mim. E por estarem tão escondidos, eles não doíam tanto.
Mas agora estavam aflorando... Na concha, na pronúncia da palavra “garotinha”...
Charles, onde você está? O que houve com você, “el cantante”? Chegou a me passar pela cabeça que ele pudesse ter morrido, pois nunca mais, em todos aqueles anos, eu vi sequer uma notícia sobre ele. O mais estranho é que ele era conhecido no Cálice Efervescente, tinha inclusive fãs de outros países. Embora seu nome na internet fosse pouco conhecido e tivesse quase nada de conteúdo, de uma hora para outro nada mais apareceu. Ele cantava bem. Eu apostei que não demoraria muito para ele ser encontrado e explodir nas mídias digitais. No entanto foi exatamente ao contrário: ele se apagou por completo. A luz dele simplesmente se apagou, assim como a minha, quando a dele parou de brilhar.
- Mamãe, eu posso ir? – Melody me olhou.
- Não... Precisamos ir embora. Já é tarde.
- Mas... Você acabou de chegar. – A menina reclamou.
Levantei, com ela no colo:
- Como está seu ferimento? – Olhei o pequeno adesivo branco cobrindo o corte.
- Tudo certo... A pessoa que cuidou de mim era muito habilidosa. Faltou eu pagar pelos serviços prestados. – Ele disse atrevidamente.
Arqueei a sobrancelha e disse rapidamente, enquanto andava:
- Preciso ir.
Saí quase correndo dali. Yuna tentava me acompanhar, sem sucesso, enquanto Melody se divertia, abrindo os braços e sentindo o vento com a rapidez que eu a levava.
Assim que pus o cinto em volta dela e fechei a porta do carro, Guilherme estava na minha frente.
- O que você quer?
- Está fugindo de mim?
- Eu não estou fugindo de você. Por que eu faria isso?
- Porque eu mexo com você e isso a perturba e a deixa insegura.
- Você é um garoto... Por Deus!
- Eu não sou um garoto. E posso provar.
Escorei-me no carro com a leve tontura que tomou conta de mim. Eu já havia dito aquela frase. Que porra estava acontecendo entre mim e aquele garoto? Dejavu?
- Guilherme, me deixe em paz. E não procure a minha filha.
- Eu nunca procurei Medy, Sabrina. Mas desde que nos cruzamos no pátio da escola primária tivemos uma forte ligação.
- Sim, eu sei. Assim como você tem com a mãe dela – eu ri ironicamente – Acha que eu sou idiota?
- Do que você tem medo?
- Eu preciso daquele trabalho. Eu tenho uma filha para sustentar. Me deixe em paz, por favor. Não quero ter que deixar a escola por sua causa.
- Ok... Eu vou me afastar completamente. Vou deixar de ir até a escola de Medy, que é o que eu mais gosto de fazer... E vou fingir que você não existe. Até mais, “professora”.
Ele virou as costas e se foi. Sentei nervosamente no carro e Yuna perguntou:
- O que rola entre vocês?
- Nada, absolutamente nada.
- Não é o que seus olhos disseram.
- Como assim?
- Você ficou muito nervosa ao lado dele.
- Ele me irrita. E... Traz lembranças do passado.
- Ele é parecido com o pai de Medy?
- Não... Mas fala coisas que fazem voltar no tempo... Lembranças que estavam guardadas num lugar tão profundo dentro de mim que eu não conseguia mais achar. E quando tudo volta... Eu sinto a falta dele... – Senti uma lágrima escorrendo pela minha face e limpei, tentando disfarçar.
- Muito tempo passou. Você merece se feliz. Não pode se guardar a vida inteira por uma esperança. Sabe que há possibilidade de nunca mais encontrá-lo. Ele pode estar casado... E com outros filhos.
- Acha que eu não sei disto? O problema é meu coração aceitar que acabou.
- Mas não acabou – Melody interferiu – Porque eu pedi para o Papai Noel e então nós vamos passar o Natal com o meu pai.
- Medy, quantas vezes eu pedi que você não se meta nos assuntos dos adultos? – Gritei, perdendo a paciência.
Ela e Yuna se calaram. Eu parei o carro no acostamento e deitei a cabeça no volante, não me controlando mais:
- Eu preciso saber dele... Não aguento mais este sentimento dentro de mim... Que me destrói aos poucos, que faz eu não ter vida... Longe de “el cantante” eu não vivo... Eu sobrevivo. E... Eu só tenho certeza de que ele não foi um sonho porque olho para nossa filha e vejo os olhos dele. Mas eu não aguento mais. É como se eu não tivesse mais forças.