Capítulo 39
2602palavras
2022-12-13 12:16
Eu havia adquirido um carro há uns dois anos atrás. Ele vivia dando problemas e era velho. Mas ainda assim era melhor que usar o transporte público com Melody e as várias bolsas que eu carregava, junto com a mochila dela.
Melody passava o dia na escola e Yuna ou Do-Yoon a pegavam no final do dia. A partir de agora eu teria que buscá-la na casa deles, pois tínhamos nosso lar, finalmente.
A vida era uma correria sem fim. E eu não tinha tempo de pensar em nada a não ser trabalho e minha filha.
Charles se tornou um borrão nas minhas lembranças. Eu já não conseguia vê-lo quando fechava meus olhos... Nem sentia mais o seu cheiro. Só tinha certeza de que não era um sonho porque eu tinha uma filha que levava só meu sobrenome. E eu sequer tinha autorização para usá-lo, visto que um dia meu próprio pai me expulsou de casa, com a roupa do corpo, certamente na torcida de que eu me desse mal e voltasse, disposta a abortar o que hoje eu tinha de mais precioso na vida.
Eu era uma boa mãe. Eu superei cada percalço que a vida pôs no meu caminho, em nome da minha filha. Não tinha vontade de rever ninguém da minha família. Também não me importava em saber como estavam. E Min-Ji respeitava minha decisão. A parte boa é que os Rockfeller não sabiam que eu tinha qualquer tipo de relação com a funcionária da mansão. Eu fugia das notícias de Noriah Norte e jamais procurei na internet qualquer coisa que envolvesse o nome Rockfeller.
Sim, eu poderia ir atrás de mais notícias sobre Charles, já que ele tinha simplesmente sumido da internet. Mas estávamos tão distantes, certamente em países diferentes. E eu tinha tanta coisa para fazer, que quando deitava minha cabeça no travesseiro, simplesmente adormecia imediatamente.
Amor jamais foi um sentimento existente entre os Rockfeller. J.R foi capaz de fazer o que fez porque não sabia o que era amar um filho e ser capaz de tudo por ele. Eu vivi dezoito anos numa vida de luxo, onde dinheiro nunca foi problema, tendo tudo que queria, com pessoas me bajulando em tempo integral. E cinco anos da minha vida foram de choque de realidade, especialmente o primeiro deles. Eu fui jogada num mundo completamente diferente do meu, num país que nunca sonhei pisar, no centro de uma família que seguia tradições orientais. Misturamos nossas culturas e nos tornamos um trio cúmplice. Com Yuna e Do-Yoon eu aprendi a ser forte. Eu ouvi verdades que jamais ouviria da boca de outras pessoas, porque o mundo Rockfeller não era real, tampouco leal... Lá eu só ouvia o que eu queria. Ninguém me contestava, ninguém me dizia não, a não ser meu pai, é claro. Porque ninguém contestava ele, o todo poderoso CEO e dono da J.R Recording.
Sofri a dor de não saber trabalhar para arranjar dinheiro. Tive que dividir um quarto minúsculo com Yuna e depois ainda levar Melody para junto de nós. Recebi apoio financeiro e emocional dos meus dois novos amigos. E o que lhes ensinei foi que a vida não era feita só de trabalho e que poderiam ter momentos de lazer. O problema é que acabei me adaptando facilmente à vida deles: mergulhada no trabalho. E eles na minha: se dando ao luxo de se divertirem vez ou outra, fosse passeando num parque numa tarde de final de semana com nossa bebê, ou jantarmos fora, com direito a muita sobremesa.
Do-Yoon e Yuna receberam a minha menina como se fosse deles. E foi ali que criei uma gratidão e um amor sem tamanho por ambos. Ensinei a Yuna segredos sobre tornar o sexo mais prazerosos, mesmo ela tendo poucos parceiros. E quando me refiro a poucos, quero dizer quase nenhum. Mas ela não era virgem, o que já era um bom começo. E ensinei na prática beijo de língua em Do-Yoon, ainda que ele não tivesse coragem para beijar Lianna depois de tantos encontros.
E enquanto o tempo passava, Sabrina Rockfeller foi desaparecendo completamente e uma outra mulher foi surgindo. E ela era Sabrina... Só Sabrina... Simplesmente Sabrina.
Os cinco anos que vivi longe dos Rockfeller foram os melhores da minha vida. Mesmo eu tendo que tomar Vueve Cliqcuot escondido nas casas que limpava e dependendo de meus amigos até para comprar o leite da minha filha.
Melody me fortaleceu. Por ela eu fiz tudo. Por minha filha eu cresci e amadureci e me tornei a mulher que sempre desejei ser: independente e segura.
Descobri que para ser feliz eu não precisava de um carro de milhões, ou uma casa com mais de trinta cômodos. Eu não precisava de uma mesa onde houvesse tanta comida que eu não conseguia provar nem a metade. Eu não precisava de um closet cheio de coisas que eu não usaria nem que vivesse três vidas. Tampouco ir a eventos que eu não gostava para agradar aos outros.
Eu era feliz tomando chocolate quente todas as manhãs, olhando o sol brilhar pela janela, ao lado da garotinha mais linda do mundo inteiro.
Eu era feliz ensinando crianças e adolescentes que tinham dificuldades a entenderem que os números e as fórmulas não eram monstros de sete cabeças.
Eu era feliz tendo um carro velho, mas que me levasse onde eu precisasse.
Eu era feliz quando estava na cama brincando de fazer cócegas com minha filha.
Eu era feliz porque era dona do aroma mais perfeito do mundo e que não tinha preço: o cheiro de Medy.
Eu era feliz porque pela primeira vez tinha amigos de verdade. E eles não falavam o que eu queria ouvir. Ambos diziam verdades e me impulsionavam para frente.
Eu era feliz porque um dia conheci uma mulher forte e ao mesmo tempo dócil e gentil, chamada Min-Ji. E graças a ela eu conheci outra vida... E nesta vida que me encontrei.
Eu era feliz porque era capaz de não odiar todos que me magoaram. Eu sentia pena... E dó por eles não conhecerem tudo que eu conheci quando abandonei aquela vida falsa e de aparências.
E finalmente, eu era feliz porque sabia que um dia, não importava quanto tempo passasse, encontraria um certo cantor que cruzou meu caminho e me deixou a chave da felicidade, que se chamava MELODY.
Assim que pus o cinto em Melody, no banco traseiro, ela perguntou:
- Mamãe, quando vou poder sentar na frente?
- Falta alguns anos.
- Eu vou pensar positivo para você conseguir o emprego.
- Obrigada, meu docinho. – Observei os olhos verdes fixos nos meus, no retrovisor.
Nos encaminhávamos para a escola quando ela questionou:
- Por que você não tem um namorado, mamãe?
Arqueei a sobrancelha, pensando no que responder. Eu sequer sabia porque não tinha um namorado. Mal tinha tempo para ela, que dirá sair e arranjar alguém.
- Bem... Mamãe não tem muito tempo para dividir com outra pessoa. Só tenho tempo para você.
- Acha que se você encontrasse um namorado, meu pai ficaria bravo?
- Eu... Não sei. – Fiquei confusa.
- Eu conheci um Charles na escola.
- Como assim?
- Ele era o pai de uma colega da minha sala.
- Mas... Como soube o nome dele?
- Porque ele se apresentou. Era o dia de falar sobre profissões.
- E... O que ele fazia? – Já nem tinha certeza se questionava por curiosidade ou na esperança de ser “el cantante”.
- Médico, como tia Yuna.
Suspirei, aliviada.
- Não era o meu pai. Ele tinha olhos castanhos.
- Hum... Que bom que você levou isso com conta.
- Mas sempre que eu vejo um homem bonito, de olhos verdes, eu imagino que possa ser ele.
- Eu também. – Confessei.
- Porque ele pode estar diferente das fotos que temos, não é mesmo?
- Você... Olha as fotos?
- Às vezes eu pego no seu celular. Eu acho que sinto saudade dele.
Deu um nó na minha garganta. Segurei as lágrimas antes de dizer:
- Eu não sabia que era possível sentir saudades de alguém que a gente não conhece.
- Mas é, mamãe. – Ela disse seriamente.
- Eu já lhe disse que a gente ainda vai encontrá-lo, não é mesmo?
- Já... Mas eu não vou me importar se você arranjar um namorado antes de nós o encontramos.
- Mas o que eu vou fazer com o namorado, se isso acontecer? – Comecei a rir, limpando disfarçadamente a lágrima que caiu.
- Você vai dizer para ele que o amor da sua vida apareceu. E que ele precisa ir embora.
- Mas isso vai magoá-lo.
- Mas você pode dizer para ele quando começarem a namorar que vão ficar juntos só até meu pai aparecer.
- Eu acho que daí ele não vai querer me namorar.
- Mãe, acho que não vamos mais falar sobre isso.
- Ah... Ótimo. – Balancei a cabeça.
- Mãe, o que é gás?
Como assim? Depois de me fazer chorar falando sobre Charles agora Melody queria saber sobre gás?
- Quer falar sobre gás? – Arqueei a sobrancelha, encarando-a pelo espelho.
- Sim... O que é?
- Gás... É um estado físico da matéria. Ele existe em vários tipos... Mas eu confesso que não sei muito sobre isso. Um exemplo é o gás de cozinha... Usamos no fogão para cozinhar. E ele é extremamente inflamável. Se, por exemplo, riscarmos um fósforo nele, explode.
- Eu nunca mais vou beber água com gás na minha vida.
Sim, aquela era a minha menina, cheia de dúvidas dentro da cabecinha, com tantos “porquês” que chegavam a me tirar da realidade. Melody era gentil, carinhosa, inteligente, ativa e se preocupava com todos ao seu redor. Ela herdou não só os meus ensinamentos, mas também os de Yuna e Do-Yoon. E assim se tornou aquela criança com cinco anos de idade que algumas vezes parecia ser a minha mãe e outras ser só mesmo uma menina de cinco anos, que não sabia o que era gás no contexto da água gaseificada.
Deixei-a na escola, recebendo um beijo gostoso que me faria aguentar até o final do dia, torcendo para chegar a noite e nosso reencontro, onde poderia ter mais outros deles, que me impulsionavam a ser quem eu era e onde eu queria chegar.
Quando estacionei na estrada, em frente à Escola Progresso, senti meu coração bater mais forte. Embora tentasse me convencer de que era só mais uma entrevista e que não daria certo, porque eu era péssima nisso, no fundo tinha sim um pingo de esperanças, pois aquele emprego mudaria minha vida... Para melhor.
A Escola Progresso tomava conta de um bom espaço da quadra, ficando numa esquina. Não havia estacionamento interno, nem muros ou grades que a cercassem. O prédio era de dois andares e o terreno mais alto que a rua, o que a deixava ainda mais imponente e levemente assustadora.
Com a fachada externa pintada de claro, que eu não identificava se era um branco/gelo, ao mesmo tempo lembrando um leve amarelo, podendo também ser um bege maltratado pelo tempo, tinha janelas em vidro quadriculados por todos os lugares. A porta principal era enorme e abria como uma veneziana.
A aparência era de um prédio histórico, tamanhos detalhes mínimos que não passavam despercebidos, muitos deles parecendo antigos e restaurados, como a estátua na frente ou os detalhes em torno das portas e janelas.
Olhei para cima, respirando fundo, ouvindo o agito das crianças e adolescentes, já no período de aula.
Passei pelo zelador, que ficava à porta e fui encaminhada para a Secretaria, que seguia por um longo corredor, onde ficava toda a área Pedagógica e da Direção.
Da Secretaria, me levaram para a sala da Diretora, que me recebeu imediatamente, já que eu tinha horário agendado e havia chegado no tempo exato que ela marcou.
Sibila era uma mulher de uns quarenta anos. Era bonita e bem vestida. Os óculos combinavam com a roupa clássica cinza claro. Era negra e os cabelos soltos emolduravam o rosto firme e a expressão séria. Os adornos dourados eram em ouro de verdade, que eu sabia identificar.
- Seja bem-vinda, Sabrina... – ela olhou na folha de papel que tinha à sua frente, tentando lembrar o sobrenome – Rockfeller. – Sorriu.
- Obrigada.
- Sente-se, por favor. – Me cumprimentou com um aperto do mãos, atrás de sua enorme e organizada mesa, me oferecendo a cadeira à sua frente.
Fiz como ela solicitou e sentei-me, tentando não ficar tão tensa. Atrás do espaço onde ela ficava, a janela grande mostrava toda a rua, pouco movimentada.
- Rockfeller? Você é parente dos Rockfeller de Noriah Norte? Os da gravadora?
- Quem me dera! – Brinquei com minha própria verdade guardada em segredo.
Ela riu:
- Desde quando um Rockfeller, da parte de J.R, procuraria emprego numa escola em Noriah Sul, não é mesmo?
- Exato. Se eu fosse uma herdeira Rockfeller certamente esta hora estaria ainda deitada na minha cama, esperando panquecas de chocolate com calda quente, preocupada se encontraria um sapato que combinasse com a minha roupa e pensando em onde eu iria usar meu tempo gastando dinheiro no dia de hoje.
Ambas rimos da minha resposta.
- Bem, vamos deixar os Rockfeller em paz e falar do emprego, que você deve estar ansiosa, não é mesmo?
- Ansiosa? Imagina? Só não dormi a noite inteira... – Me ouvi confessando.
- Sei bem como é. A questão é que o sonho de todo professor é conseguir uma vaga aqui. A Escola Progresso não só paga bem, como valoriza cada profissional que faz parte dela. Temos um ótimo plano de saúde, extensivo aos familiares e um grupo de trabalho excelente. Por isso mesmo que raramente abrimos vagas: ninguém quer deixar este trabalho, entende?
- Sim, entendo.
- Mas tivemos algumas promoções. E Do-Yoon indicou você para uma das vagas que sobrou. Ele é um dos nossos melhores professores e claro que levaremos em conta tudo que ele mencionou sobre sua capacidade profissional.
- Gentileza de Do-Yoon.
- Sim, ele é muito gentil. Neste caso, você é nossa primeira opção para a vaga. Vi que suas notas na faculdade sempre foram excelentes e precisaria de alguns contatos de familiares de seus alunos particulares. Gostaria de verificar o desempenho deles após seu reforço escolar.
- Claro, sem problemas.
- Os professores geralmente se adaptam nesta escola. Mas é preciso ter fixo na sua cabeça e aceitar desde sempre uma afirmação...
- Qual?
- Os alunos e familiares sempre vão ter a razão.
Arqueei a sobrancelha. Mesmo sabendo que era assim que funcionava, já prevenida por Do-Yoon, achei ela bem direta.
- O valor pago por eles à nossa escola é bem alto. Eles não buscam só qualidade, mas acolhimento e compreensão com relação aos filhos. Não impomos limites, pois isso é papel da família. Nossa missão é ensiná-los e prepará-los para serem os melhores em qualquer situação da vida.
- Entendo...
- Isso faz alguns casos serem um pouco complicados. Por isso temos uma grande rede de apoio aos professores... Seja psicológico, psiquiátrico ou mesmo uma mão amiga e conselhos de colegas, que valem muito.
Sorri, um pouco amedrontada, tentando não transparecer.
- É extremamente proibido qualquer tipo de envolvimento com alunos ou familiares fora do âmbito escolar. Ou seja, não pode manter vínculos afetivos ou por exemplo, ajudar com aulas particulares.
- Sim, isso me parece óbvio.
- Não tão óbvio quando falo que alguns adolescentes ricos e sem limites se acham “donos” também dos professores.
Como assim? Estávamos falando do que exatamente?