Capítulo 38
2084palavras
2022-12-13 12:16
Mil quatrocentos e sessenta e seis dias depois, eu pus a chave na fechadura da minha casa própria.
Antes que eu entrasse, Melody passou por entre minhas pernas, correndo pelo espaço vazio do cômodo da sala e cozinha, que eram conjugados.
- E então? – Perguntei-lhe.

- Eu amei... – ela sorriu, os dentes branquinhos brilhando e parte da gengiva aparecendo, de tanto que abriu os lábios – Amei! – Gritou.
- Não grite, Medy.
- Mas faz eco, mamãe... Tente também.
- Não.
- Ah, mamãe...
Deu um grito estridente, que ecoou pelo vazio da casa. Começamos a rir. Peguei-a por trás e comecei a fazer-lhe cócegas, enquanto ela tentava se desvencilhar, embora estivesse gostando.

Ela jogou-se no chão e eu ajoelhei-me sobre ela, seguindo com as cócegas e depois a enchendo de beijos na bochecha e pescoço.
Eu sempre achei que nenhum aroma fosse melhor do que certos perfumes importados. Estava enganada. Cheiro de filho era a melhor essência do mundo. Se pudesse, eu guardava num frasco e usaria sem moderação, diariamente.
- Eu já disse que amo você hoje? – Perguntei.
- Eu acho que... – ela fez um mistério – Só umas vinte vezes.

Levantei e a ajudei a ficar de pé também:
- Vamos lá, garotinha. Temos que desembalar tudo... E... – olhei no relógio – Dentro de duas horas tenho aula marcada. Sabe que não posso atrasar.
- Por que você trabalha tanto, mamãe?
- Sabe que já me fiz esta pergunta? – peguei-a no colo novamente, encarando-a – E a resposta é: infelizmente os adultos precisam fazer isso.
- Mas... Por que os adultos precisam fazer isso?
- Para adquirir coisas, comprar comida, sobreviver... E se der tempo, viver de vez em quanto ou comprar uma casa, parcelada, que talvez você nem estará viva quando chegar o dia da última prestação.
- O que é prestação?
- Ah, Deus... Quem sabe você vai lá ver se o seu quarto já chegou e começa a abrir as embalagens?
- Vamos reciclar?
- Ok, vamos reciclar. – Revirei os olhos.
A campainha tocou e eu ri:
- Nossa primeira visita.
- Eu abro. – Ela correu na frente, abrindo a porta e jogando-se nos braços de Yuna.
Do-Yoon estava junto.
- Entrem, visitas. Sejam bem-vindos. – Fiz uma reverência.
Eles retiraram os sapatos na porta. Percebi que eu não havia retirado os meus.
- Mamãe, esquecemos os sapatos! – Melody retirou os dela, pondo na porta.
- Bem, a casa é de vocês. Então, teoricamente, estão livres de retirar os sapatos. – Do-Yoon observou.
- Mas se fizermos isso não estaremos protegendo nosso lar da possível contaminação da rua. – Melody falou rapidamente.
- Foram cinco anos que vocês me obrigaram a retirar os calçados. Agora querem que eu volte ao hábito antigo? Nem pensar. Entrem.
- Trouxemos um presente para a casa nova. – Do-Yoon me entregou um rolo de papel higiênico branquinho, envolto numa fita vermelha brilhante.
Abracei-o e disse:
- Obrigada, Do-Yoon. Vocês dois sabem que eu não teria conseguido sem vocês.
- Bem, viemos ajudar a organizar tudo. Porque sabemos que você é o caos em pessoa... Ao menos para limpar. – Yuna largou Melody no chão.
- Por que minha mãe é o caos, tia Yuna?
- Eu quis me referir ao fato de ela não ser boa em limpeza de casas.
- Isso também por que ela lavou minhas calças com os cintos?
- Também... E porque pôs seus tênis na máquina de lavar.
- Os cintos eu assumo a culpa... Mas os tênis seguirão na máquina. – Confirmei.
- Também trouxemos um presente para Medy. – Do-Yoon tirou uma sacola escondida de trás de seu corpo.
Melody correu até ele, pegando e abrindo. Ela deu um grito antes de retirar de dentro uma tartaruga minúscula, abrigada dentro de um quadrado de vidro.
Arqueei a sobrancelha, confusa:
- É uma... Tartaruga.
- Ela é linda... E de verdade, mamãe. – Melody sorria encantada – Posso pegar na mão?
- Pode sim. – Yuna confirmou.
- Mas... Continua sendo uma tartaruga. – Olhei-o.
- Sei que ela ama animais. E lembrei que você sempre disse que quando tivessem a casa de vocês ela poderia ter. – Do-Yoon explicou.
- Mas é uma tartaruga. Poderia ser um gato... Ou cachorro.
- É um animal dócil e dá pouco trabalho. Vocês têm um belo quintal na frente e nos fundos. Ela pode ficar livre.
Meneei a cabeça, pensativa:
- Eu não sou muito boa em cuidar de animais. Quando era pequena tive um peixe... E matei ele.
- Posso apostar que foi sem querer.
- Sim, foi. Mas sofri a morte dele como se fosse uma pessoa.
- A tartaruga não vai morrer, não se preocupe. – Yuna me tranquilizou.
- Mamãe, o que acha de chamarmos ela de Tuga?
- Tuga? Eu acho... Criativo.
Mal tinha tempo para cuidar de Melody. Agora teria que cuidar da tartaruga também. Mas ver a felicidade dos olhos da minha menina fez minha resistência ir embora em segundos.
- Ela precisa de sol diariamente. – Do-Yoon explicou – Aqui na sacola já tem comida. Água precisam encher sempre que necessário esta tigela que fica no ambiente dela.
- Ok. Mamãe vai me ajudar, Tuga e você será feliz na nossa casa. – Melody saiu com o animal para o quintal dos fundos.
- Do-Yoon, preciso que instalem os ares condicionados imediatamente. O calor está insuportável e dormir nestas noites quentes será difícil.
- Já vou ligar para o instalador. Se ele não conseguir colocar todos, pelo menos os dos dormitórios.
- Sim, me ajudaria.
- Vamos desembalar os móveis... Depois passamos para os objetos pessoais de vocês. – Yuna sugeriu.
- Nossos objetos pessoais são poucos... Ainda não acredito que depois de cinco anos eu consegui deixar a casa de vocês. – Dei um pulo de alegria.
- Feliz em se livrar da gente? – Yuna reclamou.
- Um pouquinho. – Brinquei.
- Achei que você não fosse comprar a casa... – Do-Yoon observou.
- Foi quase um ano para aceitar parcelar. – Yuna riu.
- Esta parte ainda me perturba. Tenho medo de deixar a dívida para minha filha.
- Não exagere. – Yuna subiu a escada estreita, que levava para o segundo andar.
- Eu... Estou pensando em comprar um imóvel para mim também. – Do-Yoon falou baixo.
- Eu... Não sei se o parabenizo ou dou os pêsames. – Fui sincera.
- Por quê?
- Primeiro, porque a dívida será eterna. Segundo, porque Yuna vai matar você.
- Acho que ela vai permitir.
- Permitir?
- Ela é a mais velha. – Ele sorriu de forma tímida.
- Que se foda essa parte da tradição, Do-Yoon. Vocês moram em Noriah Sul. Visitam seu país de origem uma vez no ano.
- Você é muito desbocada.
- E você medroso. E não falo só da compra da casa. Falo de Lianna também.
- Falando nisso... – ele sorriu, fazendo com que eu me abanasse com a própria mão, não só pelo calor, mas também pelo belo homem que ele era – Eu vou assumir um novo cargo na escola.
- Promoção?
- Mais ou menos. Vou ir para a parte de supervisão escolar.
- Do-Yoon, que notícia boa. Você merece, pelo tempo que dedica a esta escola, os alunos, os seus colegas de profissão.
- Eu vou assumir este cargo junto com a professora de Matemática.
- Legal. Melhor seria se fosse com Lianna, não acha?
- Também... Mas a questão é que vai abrir uma vaga para professor de Matemática.
Olhei-o, enrugando a testa:
- Deus, eu gritaria neste momento. Mas não vou criar falsas expectativas, afinal, eu sou Sabrina.
- Acho que a Sabrina azarada ficou lá atrás. Você se ergueu, dona madame. Tem uma casa própria, uma filha linda, um emprego...
- Não posso reclamar da vida... Nem do emprego. Me formei, graças às aulas particulares... E a sua ajuda. E também o emprego noturno. E fora a elaboração de provas para concursos, que também gera uma renda extra.
- Trabalhar na Escola Progresso é um privilégio de poucos. O salário é altíssimo e você não encontrará nada melhor... Ao menos em Noriah Sul.
- Acha que não sei? Exatamente por isso que não quero me empolgar. E, antes de chegar lá, perder o táxi, ou derrubar café na diretora, ou dizer uma bobagem sem intenção... Quem sabe rasgar a calça na bunda ao sentar. – Comecei a rir.
Ele balançou a cabeça e riu:
- Posso indicar seu nome?
- Pode sim.
- A entrevista é amanhã.
- Já? Eu sequer estudei antes.
- Não há prova. É entrevista.
- Por isso mesmo. Eu sou péssima nisso e você sabe muito bem.
- Só não seja sincera. Fale tudo exatamente diferente do que pensa e tudo vai dar certo.
- Vou fazer o possível para conseguir. Sei que este emprego me tiraria da vida louca que é só trabalhar. Teria mais tempo com minha menina... – Sorri.
- Você é competente para o cargo.
- Obrigada, Do-Yoon. Agora pegue este telefone e ligue para o instalador do ar. Ou vou morrer de calor... Isso inclui Medy, hein.
- Ok, Medy não vai morrer de calor. Nem que eu tenha que instalar o ar condicionado do quarto dela.
- Ei, vocês dois vão ficar aí fofocando ou vamos começar a arrumar esta casa? – Yuna gritou.
- Vamos lá, Do-Yoon... Ela continua sendo a mais velha e manda em mim, mesmo eu não seguindo a tradição do seu país. – Pisquei.
No dia seguinte, levantei mais cedo. Embora não quisesse, estava muito ansiosa com a entrevista na Escola Progresso.
Quando cheguei no quarto me Melody, ela já estava de pé, olhando pela janela, ainda vestindo pijama.
- Não acredito que já está acordada e não veio me dar bom-dia! – Fui até ela, erguendo-a nos meus braços, para que pudesse ver melhor a vista que a janela nos proporcionava.
- Eu já estava indo. – Ela me olhou e deu-me um beijo.
- Por que eu sou tão louca por você?
- Porque eu sou o seu docinho... E tenho olhos lindos, como os do meu pai. – Ela sorriu.
Toquei seu nariz arrebitado:
- Sim, tudo isso. E porque você é a minha vida todinha... Eu amo tanto você que este sentimento quase não cabe no meu coração.
- Isso conta como o “eu te amo” do dia? – Ela enrugou a testa.
- Sim, conta. Agora vamos nos arrumar porque a mamãe tem uma entrevista de emprego.
- Mas você não vai dar conta de trabalhar em outro emprego. – Ela subiu na cama de novo.
- Se eu conseguir este emprego, em especial, vou deixar todos os outros. Então teremos as noites livres, só você e eu.
- E Do-Yoon e tia Yuna também podem participar das nossas noites?
- Podem... Mas já vou adiantando que nem sempre vou querer dividir você.
As camas haviam sido montadas, mas as roupas seguiam em caixas, pois não demos conta de arrumar tudo e eu ainda tive aulas para dar naquela tarde. Quando olhava para o estado de tudo, imaginava que levaria meses para organizar o nosso espaço.
Separei a roupa e vi o vidro com a “casa” da tartaruga ao lado do travesseiro:
- Medy, você não pode dormir com a tartaruga.
- Por quê?
- Porque é uma tartaruga.
- Por que não posso dormir com ela por ser uma tartaruga?
- Ah, Medy, não sei explicar. Mas não pode.
- Mas tem que haver uma explicação.
- Eu acho que você é superdotada, só pode.
- O que é superdotada?
- Preciso aprofundar meus estudos sobre isso. Mas igual, você não pode dormir com a tartaruga – Falei, enquanto trocava a roupa dela.
- Antes de sairmos, precisamos colocá-la um pouquinho no sol, porque você chega tarde e então não haverá mais sol para ela.
- Ok, vou colocar ela no sol enquanto você escova os dentes. Vou deixar seu chocolate pronto e espero você lá embaixo. Verifica se está tudo na mochila antes de descer.
- Posso não escovar os dentes... Só hoje?
- Não... Deve escovar os dentes, todos os dias.
Desci com a tartaruga e sua casa de vidro. Abri a porta dos fundos e a pus diretamente no sol. Aliás, seria um dia daqueles: no mínimo uns quarenta graus. Estávamos no auge do verão em Noriah Sul.