Capítulo 36
2620palavras
2022-12-13 12:10
Os meses seguintes foram divididos entre lavagens de louça, passeios à praça com leitura de livros e faculdade. Passei a ocupar meu tempo e com isso, esquecer parte da dor e da saudade do meu passado.
Minha ligação com Melody sempre foi intensa, desde que a vi pela primeira vez, pela tela do aparelho de ultrassom. Eu fui capaz de abrir mão de tudo por ela e agora sabia o que era amor materno. E cheguei a me pegar pensando em como reagiria no lugar de minha mãe, quando J.R mandou-me embora. Teria eu reagido da mesma forma? Sequer tinha minha filha fora do útero e já não imaginava deixá-la partir, sem dinheiro, sem seus pertences, praticamente jogada para fora de casa, grávida.
Naqueles meses, não houve tentativa de aproximação por parte da minha família. Também não tive notícias de Charles. Ele simplesmente desapareceu, embora sua lembrança permanecesse dentro de mim. Não haviam mais fotos na internet, sequer postadas por fãs. Nem tentativas de um encontro através de uma música...
Melody nasceu alguns dias antes da data prevista, de parto normal.
A gravidez, assim como a vinda dela ao mundo, foi tranquila, dentro do possível. Estar na casa de Yuna e Do-Yoon me trouxe uma coisa que há muito eu não tinha: paz.
Jamais imaginei sentir tanta dor como a do nascimento dela. No entanto, assim que a vi sobre meu corpo, ainda com vestígios de sangue, o cordão umbilical ligado ao meu, não tive dúvidas de que minha filha era o que de mais importante existia na vida.
Depois que fui para o quarto, encontrei Do-Yoon e Yuna esperando por nós. Embora não entendessem muito bem o sentido de serem padrinhos, eles se importaram com Melody desde o início e me ajudaram em tudo que puderam. Certamente eu não optaria por batizar minha filha, visto que não frequentava a igreja e não era praticante de nenhuma religião. Yuna me fez perceber que não era necessário seguir esta tradição porque todo mundo fazia. Eu tinha opções e já sabia que seguir protocolos não fazia mais parte da minha vida atual.
Agora eu era Sabrina Rockfeller, porque não podia tirar o sobrenome com o qual nasci. Mas tinha uma filha, uma responsabilidade, um amor maior que tudo: Melody Rockfeller.
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- Você precisa conseguir um trabalho. – Do-Yoon disse enquanto balançava o carrinho, fazendo Melody dormir.
- Eu sei. E preciso começar a procurar imediatamente. A questão é... O que vou fazer com Melody?
- Poderíamos nos revezar. – Yuna sugeriu.
- Como assim? – Arqueei a sobrancelha, curiosa com a ideia dela.
- Eu posso reorganizar meus horários no hospital. E trocar meu turno para noite. Poderia ficar com ela durante o dia.
Se fosse a um tempo atrás eu diria que aquilo era impossível. Mas agora, olhando minha filha adormecida no carrinho, sabia que era necessário ter dinheiro.
- Eu estou em casa durante a noite. – Do-Yoon falou – Então, independente do horário que você conseguisse um trabalho, alguém estaria disponível para Melody.
- Acho que vou transferir o turno da faculdade para noite. Demoraria um tempo a mais para me formar, mas poderia trabalhar durante o dia. A questão é: isso é possível?
- Estudar à noite? Demorar para se formar? – Yuna questionou.
- Me refiro à trabalhar e estudar, concomitantemente.
Os dois riram:
- Sim, é possível – Do-Yoon respondeu – E saiba que muitas pessoas fazem isso.
- Certamente não tem filhos. Porque, pensando bem, eu não teria tempo livre para Melody.
- Teria os finais de semana. – Yuna lembrou.
- E os trabalhos e horários de estudo para as provas da faculdade?
- Pode fazer no intervalo do trabalho.
Suspirei:
- A vida não é fácil.
- Não mesmo – Do-Yoon disse – Mas você é um exemplo de superação.
- Como consigo um trabalho? – Perguntei, tentando imaginar.
- Distribui currículos, procura vagas na internet... – Yuna pegou o celular – Olhe, vou fazer uma pesquisa de vagas de emprego nas redondezas... Já encontrei: vendedora de roupas.
- Isso não deve ser muito fácil.
- Quando você comprava roupas, alguém não lhe atendia?
- Geralmente eu solicitava por telefone... Ou as vendedoras iam até minha casa. Vez ou outra entrava numa boutique. Gostava, na verdade, de encomendar meus modelos já nos desfiles... – Suspirei, com um pouco de saudade daquela parte.
- Bem, esta aqui do anúncio não é numa boutique, como você está acostumada. É uma loja normal.
- Eu já sei o que é uma loja normal. – Lembrei, sorrindo.
- Inscrevi você para a vaga. – Yuna avisou.
- Trabalhar é bom... Poderá comprar o que desejar. – Do-Yoon me animou.
- Quero comprar um celular... E uma casa.
- Acho que inicialmente o celular. Depois parte para a questão da casa própria.
Fiquei empolgada em conseguir adquirir minhas coisas com meu próprio esforço.
No dia seguinte, ligaram para Yuna e fui chamada para uma entrevista. Foi a primeira vez que me candidatei a uma vaga e a dona da loja não escondeu a admiração pelo meu conhecimento em moda. Fui contratada para o primeiro emprego.
Acordei mais cedo que o normal, ansiosa para o primeiro dia. Yuna chegou quando eu e Do-Yoon saíamos.
- Não esqueça a mamadeira no horário – alertei – Ela se acalma e dorme quando canto para ela.
- Sou péssima em cantar.
- Ela não vai saber, não se preocupe. – Sorri, dando mais um beijo na bochecha macia e sensível da minha filha.
- Precisa encontrar logo o pai dela, para que ele assuma a responsabilidade da canção. – Do-Yoon brincou.
Suspirei, sorrindo tristemente. Mal ele sabia que tocar naquele assunto me destruía de uma forma inexplicável. Tudo que eu queria era a voz de Charles cantando para nossa filha dormir. Eu sequer conseguia lembrar com exatidão da música que ele havia feito para mim, pois não tinha mais celular. E inexplicavelmente ela foi apagada das redes pouco tempo depois.
Eu ainda me perguntava se Charles poderia ter achado que eu não apareci naquele dia porque não quis. E se isso passou pela cabeça dele, me entristecia, pois deveria estar magoado comigo, sendo que fiz o impossível para chegar ao meu destino... Mesmo com tudo indo contra. A questão é que cheguei... Mas tarde demais.
Onde estaria meu “el cantante” naquele momento?
Do-Yoon tocou meu ombro, com delicadeza:
- Me desculpe... Não queria fazê-la ir tão longe.
- Às vezes é impossível me manter aqui... Quando tudo que quero é estar no passado, junto dele. – Confessei.
- Você tem um pedaço dele. – Yuna olhou para Melody.
Sorri observando os olhos verdes e grandes dela fixos nos meus:
- Amo você, minha melodia preferida. – Dei-lhe outro beijo.
Sai antes que desistisse de ficar longe da minha filha por um longo período de tempo. Aquele era o sacrifício do emprego: afastar-me dela.
Fui bem recebida pelas vendedoras da loja. As roupas, embora tivessem grande quantidade, eram todas emboladas em cabides e prateleiras, várias peças iguais, do mesmo tamanho, cor ou estampa, eram de péssima qualidade. Tentei me convencer de que precisava vender aquele produto, mesmo achando ruim.
Apesar de ter comprado poucas roupas novas para mim, ainda priorizava a que havia trazido no corpo quando fui embora da mansão Rockfeller. Era um pedaço do que eu fui: alguém que teve tudo e precisou abrir mão, em nome de um amor maior.
A primeira cliente que chegou, as colegas deixaram para eu atender. Era uma senhora aparentando entre cinquenta e sessenta anos, bem acima do peso.
- Posso ajudá-la? – Tentei, com um sorriso simpático, mas forçado. Difícil parecer íntima sendo que nem a conhecia.
- Eu procuro um vestido.
- Um vestido para usar em casa, ir à praia?
- Comemoração do meu aniversário de casamento.
- Espero encontrar algo aqui para este tipo de ocasião. – Falei, incerta se encontraria um vestido adequado, bem como algo que ficasse bem nela ali naquela loja, onde o tamanho máximo me parecia ser um M, ainda assim com forma pequena.
Comecei a mostrar alguns, certa de que nenhum deles era propício para um evento como o que ela queria.
Foi então que ela se agradou de um longo, em malha, vermelho, sem bojo. Quem usava um vestido de malha para uma comemoração tão importante? E só de olhar me parecia óbvio que não era para o tamanho dela.
Encaminhei-a ao provador e enquanto se vestia, aguardei, observando ao redor se encontrava algo mais adequado para ela, sem sucesso.
Quando ela abriu a cortina, vi seu corpo de frente e de trás, pelo espelho. O vestido ficou justo demais, mostrando cada dobra de pele. Sem um sutiã adequado, ficava ainda pior.
- Pode ser sincera, garota. O que acha? – Ela mirou-se novamente no espelho, querendo a minha opinião.
- Quer sinceridade? – Perguntei.
- Sim, por favor.
- Ficou horrível. O tamanho é pequeno demais para o seu corpo. Malha, definitivamente, não é adequado para um evento social. É tipo usar para lavar louça em casa. Marca absolutamente todas as gordurinhas do seu corpo. O ideal seria algo menos apertado e que valorizasse o seu busto, no caso um decote mais fechado, quem sabe em formato quadrado. Um cinto, no mesmo tom da peça, realçaria bem sua cintura, que é bonita.
Ela me olhava, sem dizer nada. Continuei:
- Não há nada nesta loja que possa usar num aniversário de casamento. Sugiro que vá a uma boutique plus size e pegue algo de marca, visto a importância do evento no qual é protagonista. Aqui vende-se roupas para o dia a dia... – me aproximei dela e disse, baixinho – Nem eu compro nesta loja. As roupas daqui, além de serem pequena demais, tem péssimos tecidos.
- Sempre comprei aqui... – ela me encarou – E nunca fui tão maltratada assim. Sabia que me aceito do jeito que sou e você, garota, deve respeitar as escolhas e gostos das pessoas, que são diversificados.
Assim perdi meu primeiro emprego, no mesmo dia que comecei. Cheguei em casa antes do meio-dia, carregando um peso nas costas e a tristeza por ter sido chamada de louca pela dona da loja.
No segundo emprego, observei os outros vendedores atenderem antes de me arriscar. Mas como dependia das vendas, por ser comissionada, não pude demorar muito a escolher meus primeiros clientes: um casal jovem.
- No que posso ajudá-los hoje? – Perguntei, com um belo sorriso no rosto, mesmo sem vontade, pois não tinha dormido a noite inteira com Melody chorando de cólicas.
- Vamos nos casar... E precisamos de um fogão.
Quem precisa de um fogão para casar?
- Procuram algum em especial?
- Não precisa ser de seis queimadores. Quatro é suficiente. – Disse a garota.
Levei-os até os fogões em exposição, em busca do de quatro queimadores.
- Quatro queimadores seria este? – Perguntei-lhes, contando os círculos sobre a parte metalizada.
- Sim... – ela começou a analisar os fogões – Gostei deste.
- É bonito. – Concordou o rapaz.
Desde quando fogão tinha que ser bonito? Precisava cozinhar e ser fácil de limpar. O da casa onde eu morava era horrível, pois sujava facilmente e impregnava gordura nas laterais.
- Quanto custa? – A garota perguntou.
Li o cartaz, a frente do forno, colado, com os números grandes, em caneta hidrocor colorida:
- Custa mil norians.
- Vamos levar, amor? – Ela pediu.
- Ok, vamos levar. Queremos parcelar.
- Parcelar? Quem parcelaria um fogão? – Arqueei a sobrancelha.
Os dois riram, achando engraçado meu comentário.
- Quantas vezes é possível parcelar sem juros? – Ele perguntou.
Olhei na minha tabela e expliquei:
- Cinco vezes sem juros e até dez... Com juros. – Tentei entender porque pagar em tantas vezes um único item.
- Poderia calcular para nós o valor em seis, sete, oito, nove e dez vezes? – Pediram.
- Dez vezes? Estão loucos de parcelar um fogão em dez vezes? É quase um ano pagando. Sem contar o juro absurdo, quase abusivo – fiz os cálculos – Em dez vezes vocês pagarão quase dois fogões. Talvez nem esteja funcionando quando pagarem a última parcela. Sugiro que procurem os direitos do consumidor, que deve haver. Acho que até podem procurar judicialmente o motivo pelo qual aumenta tanto o valor parcelado. E digo mais... Como vão casar se não tem dinheiro nem para comprar um fogão?
Os dois me olharam, seriamente. Continuei:
- Sinceramente, nem acredito no casamento. Sabiam que namorei quatro anos com um homem que me traiu com minha própria irmã na noite da despedida de solteiro? Gente, vocês estão comprando um fogão que pagarão mensalmente... Certamente terão outras contas. Se eu fosse vocês, ficava como estão. Ou juntam dinheiro e compram tudo quando realmente tiverem condições... E à vista. Eu sei do que falo... Além de ter sido traída, faço faculdade de Matemática. Sou boa em contas e o juro, neste caso, é abusivo.
Assim perdi meu segundo emprego.
O terceiro emprego foi Yuna que conseguiu para mim. Era limpar a casa da mãe de uma colega dela, médica.
A casa era grande, mas nem próxima do que a que eu morei em Noriah Norte.
A dona estava no trabalho e fiquei sozinha, com a chave. Prendi meus cabelos, pus luvas e fiquei a olhar para aquilo tudo, sem ter noção de por onde começar. Tinha tantos móveis, utensílio e enfeites naquela casa que chegava a me deixar tonta.
Olhei a cama desfeita e respirei fundo. Eu não fazia nem a minha cama... Como faria a de outra pessoa? Me recusava.
Lavei a pouca louça que tinha na pia. Havia dois banheiros. Limpei as pias, mas em hipótese alguma colocaria minhas mãos naqueles vasos sanitários.
Já era meio-dia e eu praticamente nem tinha começado. E estava cansada. Melody havia me premiado com a melodia do seu choro praticamente a noite toda.
Sentei no sofá, respirando fundo:
- Deus, está ficando difícil. Me sinto uma inútil. Limpar uma casa é mais difícil que vender roupas sem ser sincera com as clientes ou fogões sem cálculos de preço final.
Olhei para o bar, próximo da porta de vidro. E sorri quando vi um Vueve Cliqcuot. Fui até lá e peguei a garrafa, sentindo uma certa nostalgia. Não lembrava a última vez que saboreei aquela que foi, por muitos anos, minha bebida preferida.
Pus na geladeira e peguei um balde de bebidas, enchendo de gelo, com uma taça de cristal. Tilintei a unha no cristal, ouvindo o som perfeito.
Enquanto esperava a Champagne gelar, fui terminar o dormitório. Abri o armário, por curiosidade, e eis que encontrei perfumes importados.
Sempre fui louca por perfumes, inclusive tendo na bolsa para borrifar por todos os lugares. Nunca me importei com preço, sempre com a qualidade e o aroma perfeito.
A dona da casa tinha um Chanel nº 5. Nunca foi meu perfume favorito, mas eu dava valor àquela preciosidade. Borrifei no ar, passando por baixo, sentindo o leve toque úmido na minha pele. Eu precisava urgentemente comprar um perfume... Eu merecia.
Borrifei todos pelo quarto, deixando o cheiro no ar, cada um trazendo uma lembrança olfativa diferente.
Voltei para o refrigerador, abri o Champagne e servi lentamente na taça, observando as bolhas se formando no líquido levemente dourado. Achei que nunca mais provaria aquilo novamente. Fechei os olhos e sorvi tudo de uma vez, sentindo a leve cócega no nariz, o gosto perfeito descendo pela minha garganta.
Peguei a garrafa e deitei-me sobre o sofá, servindo-me da segunda taça. Saboreava a terceira quando a porta se abriu e a dona da casa apareceu, me mandando embora do que tinha sido minha terceira experiência de emprego.