Capítulo 33
2533palavras
2022-12-13 12:01
Claro que eu deveria ter ao menos tentado descansar. Tirando o fato de que não levantei da poltrona para nada e bebi água por todo o tempo, talvez possa definir isso como “descanso”... Caso esta palavra signifique pensar intensamente 60 minutos por hora, até a cabeça doer de tanto medo e ansiedade.
Assim que a porta do jato abriu-se, a comissária de bordo avisou:
- Estamos em Noriah Sul, senhora Monaghan.

Eu poderia corrigir e dizer que não era senhora Monaghan. Mas também não era mais uma Rockfeller. Teoricamente eu não tinha mais um sobrenome, já que meu pai me proibiu de usar o dele, mesmo isso sendo legalmente impossível.
- Obrigada. – Foi minha única palavra que disse enquanto pegava o dinheiro que Colin havia deixado para mim na poltrona.
Desci as escadas sem sequer uma sacola com roupas. Eu usava uma jaqueta de couro, com uma concha no bolso e dinheiro que ganhei por caridade do meu ex-noivo.
Quando cheguei a terra firme, pisando enfim em Noriah Sul, vi o homem magro, alto e com pele extremamente clara parado alguns metros adiante. Usava camisa e calça claros e as mãos estavam repousando nos bolsos. Tinha os olhos estreitos, como os da mãe. Cabelos negros, extremamente lisos e brilhantes, levemente crescidos e muito bem penteados. Os lábios eram grossos e carnudos e a íris escura. Ele cheirava bem e me recebeu com um belo sorriso.
Fiquei parada ao vê-lo, sem saber como agir. Ele veio até mim, pegou minhas duas mãos e disse:
- Seja bem-vinda à Noriah Sul, Sabrina.

- Obrigada. – O abracei, recebendo um toque de mãos leve sobre meus ombros.
- Sou Do-Yoon.
- É um prazer conhecê-lo. Eu... Sempre gostei muito da sua mãe.
Ele sorriu novamente, de forma simpática:

- Minha mãe realmente é uma pessoa maravilhosa.
- Não tenho bagagens... Vim exatamente como fui mandada embora... Sem nada. – Levantei as mãos para cima.
- Minha mãe também avisou que isso aconteceria.
- Mas tenho uma bagagem aqui – pus a mão no ventre – Onde tem um bebezinho se formando.
- Encontrará a paz que precisa aqui... Para você e ele. – Olhou na minha barriga.
- Ela. – Fiz questão de dizer.
- “Ele” eu quis me referir ao substantivo bebê e não ao gênero.
- Entendo...
- Mas não vamos ficar aqui esperando, não é mesmo? Você deve estar cansada.
- Não, não estou. A viagem foi rápida.
Ele foi andando e segui ao lado dele, tentando acompanhá-lo.
- Já deixei um táxi esperando por nós. Em breve estaremos na casa.
- Obrigada, Do- Yoon.
Chegamos no táxi e sentamos ambos atrás. Assim que o motorista começou a dirigir, tratei de dizer:
- Me desculpe por tê-lo feito vir até aqui tão tarde... Para me esperar. Mas não conheço nada aqui...
- Não se desculpe, Sabrina. Está tudo bem. Minha mãe gosta muito de você e farei tudo que estiver ao meu alcance para que fique bem acomodada o tempo que estiver conosco.
- E sua irmã?
- Está em nossa casa. A descansar.
Virei para a janela e observei a estrada iluminada. A temperatura era agradável, a noite estrelada e tinha uma lua minguante no céu. Eu gostaria de saber se aquela fase da lua significava sorte ou azar.
Nunca tive interesse em conhecer Noriah Sul, embora tivesse conhecimento da história dos príncipes Dereck e Magnus Chevalier, que creio que todo mundo soubesse. Os irmãos eram exemplo de força e determinação nos países próximos, especialmente os que ainda mantinham a monarquia. Sem contar o fato do irmão mais novo assumir o relacionamento com outro homem de forma segura e o mais velho ter casado com uma mulher que fazia parte de rebeliões anti monarquistas, havendo boatos inclusive de que ela havia matado a rainha Anne Marie Chevalier, embora nunca tenha sido confirmado.
Noriah Sul era um país de histórias bonitas sobre reis e rainhas e o fim da monarquia. Mas ainda havia a questão das lutas de classes, que seguiam firmes e resistentes, tentando dissolver uma nomenclatura e desigualdade que vinha desde sempre.
Eu estava num país desconhecido e ao lado de uma pessoa que jamais vi na vida. Só tinha ouvido falar de Do-Yoon. Ainda assim, pouco. E dividiria praticamente minha vida com ele a sua irmã a partir daquele momento.
Embora eu sempre soube que os coreanos eram um tanto quanto reservados, Min-Ji não seguia a tradição. Mas não tinha ideia de como eram os filhos dela.
Nascidos na Coréia do Sul, deixaram o país ainda crianças. Eu não imaginava quais hábitos culturais faziam parte da vida deles, se é que cultivavam algum.
- Quantos anos você tem? – Do Yoon me perguntou.
- Dezoito e você?
- Vinte e três.
- Eu soube que é professor.
- Sim. Leciono Literatura para o Ensino Médio.
- Eu... Iniciei a faculdade de Matemática na área na Educação. Mas tive que abandonar no início... Depois de tudo que houve.
- Pode estudar aqui se quiser. Não precisa abandonar tudo.
Eu sorri, sem dizer nada. Não sabia o que faria, não tinha planos, não conseguia sequer ver meu futuro. Estava perdida, completamente perdida.
Em menos de quarenta minutos, o táxi estacionou em frente a uma casa branca, térrea, singela, mas agradável. O telhado era de telhas de barro esmaltadas e as únicas duas janelas que havia na parte frontal eram de vidro, sem venezianas.
Todas as casas da rua eram praticamente grudadas umas nas outras. Algumas não tinham sequer um muro dividindo os espaços. Era estranho.
Do-Yoon pagou o taxista e segui atrás dele pelo caminho de cimento cinza cru, com gramado bonito e algumas folhagens que compunham um pequeno jardim.
Ele abriu a porta cinza escura, em madeira e retirou o calçado, pondo num armário ao lado.
Observei o gesto dele e fiz o mesmo, tentando não ser deselegante ou não seguir as tradições daquele lugar.
- Seja bem-vinda, Sabrina. – Ele fez um gesto com a cabeça, na minha direção, educadamente.
- Não tenho como agradecer, Do-Yoon. E não quero ser um incômodo. Prometo procurar um lugar para mim o mais rápido possível.
- Poderá ficar nesta casa o tempo que quiser. Se minha mãe pediu, obedecemos. – Sorriu.
Deus, estavam me aceitando porque queriam ou porque Min-Jin obrigou-os?
Logo veio a mulher, que imaginei ser Yuna. Ela era da altura do irmão, extremamente magra, pele clara, cabelos tão escuros e lisos que chegavam a cintilar sob a luz da lâmpada. Olhos mais claros que os de Do-Yoon e lábios finos.
- Sou Sabrina. Você deve ser Yuna.
- Sou Yuna, dona da casa – ela fez questão de dizer – E filha mais velha.
- Eu... Sou a filha mais nova. – Sorri.
- Está com fome? – Do-Yoon perguntou-me.
Se eu estava com fome? Pensei que não estava, mas quando ouvi aquela frase percebi que sim, estava morta de fome.
E não tinha como tentar ser educada e dizer que não, pois corria o risco de desmaiar ali mesmo.
- Sim, estou com fome. – Falei.
- Vou preparar algo. – Ele disse.
- Não quero dar trabalho... Mas realmente estou com muita fome. E... Tem o bebê. – Tentei justificar.
Do-Yoon saiu por uma porta. Observei a sala pequena, com uma única janela de vidro. Tudo era branco, o que dava a impressão de ser mais amplo do que realmente era. Havia um sofá marrom num material que eu não conhecia, que era pequeno demais para duas pessoas, mas ao mesmo tempo grande para só uma. De frente para ele, um painel minimalista com uma televisão grande. A janela em vidro era coberta por cortinas bege com um voal claro por cima. Não eram blackout. Um móvel em madeira, que comportava uma espécie de sofá, ficava na outra parede. Era coberto por uma almofada que ocupava exatamente o espaço feito para ela, ornamentado por quatro almofadas, duas azuis turquesa e duas rosas chiclete. Uma mesa de centro baixa, da mesma cor dos móveis, completava a decoração. Não havia nada sobre ela e me intrigou o motivo de ficar ali, no caminho, sendo que não tinha utilidade.
- Vou lhe mostrar o seu quarto. – Disse Yuna enquanto se dirigia para uma porta fechada, branca.
A segui. Quando ela abriu, percebi duas camas de solteiro, uma ao lado da outra. Uma janela minúscula, coberta também por cortinas que não tapavam a claridade. Um roupeiro com quatro portas e uma mesa com um computador era o que tinha no espaço que era menor que o meu closet.
- Não tem banheiro? – Arqueei a sobrancelha.
Ela deu um meio sorriso:
- No corredor. Banheiro coletivo. Sabe o que é?
- No caso... Dividiremos?
- Não exatamente... No caso, “nós” dividiremos com você.
- Bem, você disse que era o “meu” quarto... Mas tem duas mini camas.
- Não são mini camas. São camas, porém em tamanho “solteiro”. Eu divido este quarto com minha mãe quando ela vem nos finais de semana que sua família a liberta da escravidão. Você tem a opção de dormir no sofá, caso esta cama não lhe agrade.
- Não... Não me entenda mal. Não quero fazer desfeita. Só... Nunca vi uma cama deste tamanho. Eu... Costumo ocupar um grande espaço no colchão.
- Em que mundo você vive, garota?
- Num mundo de ilusões... Mas acho que estou saindo dele. – Olhei tudo ao redor, tentando entender como sobreviveria com tão pouco espaço.
- Do-Yoon dorme no segundo quarto. O banheiro é no corredor. Passando ele tem a cozinha. Nos fundos, área de serviço e quintal. Poderá lavar suas roupas lá e estendê-las também, caso prefira secá-las o sol.
- Lavar roupas? – Estreitei os olhos, pensando em como se fazia aquilo.
Ela suspirou e olhou no relógio:
- Já é tarde. Você toma banho à noite?
Olhei-a sem entender ser era um convite, um pedido ou uma ordem.
- Eu... Bem... Poderia me mostrar onde fica o banheiro?
Ela passou pela porta e acompanhei-a, tentando imaginar como seria tomar um banho naquele lugar.
Assim que entrei no espaço que eles chamavam de banheiro, ela avisou:
- Toalhas limpas e secas ali – apontou – Deixei uma roupa para você dormir... Emprestada.
- Obrigada.
Assim que ela saiu, fechei a porta, me sentindo claustrofóbica num espaço tão pequeno e pouco arejado. Não era branco e sim em tons beges. O meu box era maior que o cômodo todo. Ou melhor, eu não tinha mais um box com chuveiro na casa Rockfeller. Então aquela era minha realidade.
Senti as lágrimas escorrendo dos meus olhos enquanto retirava a roupa e me dirigia para o chuveiro. Que vontade de gritar pela minha casa, pelas minhas coisas, por Charles.
Abri o registro e a água começou a descer em pequenos pingos, mais quente do que morna. Não tinha misturador, então certamente não havia possibilidade de controlar a temperatura. Olhei para cima e tentei entender como funcionava aquele pequeno chuveiro.
Meu coração batia intensamente e escorei-me na parede, espalhando sabonete líquido pelo meu corpo, as lágrimas misturando-se com os pingos de água. Toquei meu ventre e tentei tirar forças dali. Eu precisava superar tudo e vencer cada obstáculo. Por mim e principalmente por ela.
- Prometo que vai dar tudo certo, Melody. Vou me reerguer e quando você nascer, tudo estará no seu devido lugar. E serei uma boa mãe... Eu juro.
Não tinha como ser um banho demorado, pois eu não me sentia em casa ainda. Sequei-me e pus a roupa confortável que Yuna deixou-me.
Eu não tinha escova de cabelos, escova de dentes, calcinha... Não sei se algum dia seria capaz de perdoar Jordan Rockfeller por tudo que havia feito.
Quando saí do banho, senti cheiro de comida vindo da cozinha. Fui até lá, sem ser convidada. O espaço era o mais amplo da casa. Tinham vários armários que ocupavam duas paredes e uma mesa para quatro pessoas que ficava próximo da outra parede. A geladeira, por sua vez, era gigante.
Observei tudo enquanto Do-Yoon disse:
- Achou que comíamos em mesas baixas, próximas do chão?
- Mais ou menos. – Confessei.
- Uma mistura de hábitos coreanos com Norianos. Acho que viermos para a parte Sul porque pensamos que nos identificaríamos mais com a Coreia do Sul. – Sorriu divertidamente, mostrando os belos dentes tão brancos que nem pareciam reais.
A mesa tinha tanta comida que fiquei confusa:
- Você fez tudo isso... Em tão pouco tempo? – Impressionei-me.
- A cozinha é a parte da casa que mais me identifico. – Explicou.
- Parece-me que é bom nisso.
- Sente-se, por favor. Vou acompanhá-la.
Ele puxou a cadeira e sentei. Do-Yoon me apresentou cada prato:
- Arroz, tofu, vegetais, peixe e macarrão.
- Muita comida... Mas parece maravilhosa.
Eis uma coisa que eu não tinha habilidade: comer com hashi. Parecendo decifrar meus pensamentos, Do-Yoon levantou-se e trouxe garfo, faca e colher.
- Você pode comer da forma que achar melhor, Sabrina. Queremos que se sinta em casa.
- Do-Yoon... Você é tão gentil. Mas não sei se “queremos” refere-se também à sua irmã. Não me parece que Yuna ficou muito feliz com a minha presença.
- Yuna é reservada. Trabalha bastante e o tempo livre usa para estudar. Ela também sempre teve um pouco de ciúme por nossa mãe estar tão presente na sua vida e pouco na nossa.
- Eu sinto muito... Mas não sou culpada por isso.
- Ambos sabemos. E ela também. Mas isso não significa que ela não sinta o ciúme.
- Entendo...
O mundo estava caindo sobre a minha cabeça. Mas eu estava de banho tomado e com uma mesa farta. E tudo que eu precisava naquele momento era comer. Mesmo que não tivesse uma calcinha para botar por baixo da calça larga e sequer uma escova de dentes que pudesse usar depois.
Comi tanto que não conversei durante o tempo que fiquei à mesa. Só me dei por satisfeita quando senti a barriga inchar.
- Há quanto tempo não come? – Ele brincou.
- Não lembro quando foi minha última refeição. E você cozinha maravilhosamente bem, Do-Yoon.
- Obrigado. Às vezes sou convidado para alguns eventos para cozinhar.
- Como chef?
- Não... Como amigo mesmo. – Ele respondeu, acho que não entendendo a pergunta.
- É muita gentileza sua aceitar e dar a oportunidade de as pessoas provarem sua comida.
- Agora acho que você precisa descansar. É tarde e teve um dia cheio.
- Sim. Obrigada por tudo. – Dei um beijo no rosto dele, que ficou imediatamente ruborizado.
Sorri e saí, me dirigindo para o quarto. Bati na porta antes de entrar. Yuna estava deitada, lendo um livro na cama, com uma luz fraca ao lado.
- Eu... Vou deitar. – Expliquei, sem jeito.
Ela não disse nada. Acomodei-me e pedi:
- Poderia... Me emprestar seu celular? Eu... Gostaria de avisar Min-Ji que cheguei bem.
- Eu já fiz isso.
- Obrigada.
Pensei em pedir para ela desligar a luz, mas não o fiz. Virei para o lado, tentando relaxar. Imaginei que não conseguiria pegar no sono, mas não foi o que aconteceu. Apaguei em minutos.