Capítulo 22
2427palavras
2022-12-13 11:45
Enquanto dirigia, tentava em vão fazer com que Charles me atendesse. Mas a droga do celular dele seguia desligado.
Coloquei uma música em volume alto, tentando me distrair e conseguir não pensar tanto nele, a ponto de quase fundir o meu cérebro. Aquele homem tomava conta de todo meu ser. E o fato de saber que ele não tocava mais no Cálice Efervescente me preocupou.
O filho dele morava em Noriah Sul. E se algo o fizesse ficar lá para sempre? Se eu nunca mais o encontrasse?
Felizmente consegui avistar a casa onde ficamos, ao longe. Agora, prestando mais atenção no caminho, mesmo tensa por estar de carro e não na moto, vi que havia sim algumas casas pelas redondezas, embora não tão próximas.
Reduzi a velocidade e quando estacionei na estrada estreita e arenosa, percebi as luzes da casa acesas. Senti meu coração bater descompassadamente.
Estaria o “el cantante” ali, tendo planejado tudo que estava acontecendo naquele momento?
Mas não... Não tinha como ele saber que eu leria a carta e iria para a casa de praia, em busca de reviver nossas lembranças.
Ainda assim subi o caminho íngreme de pedra, com o salto fino quase quebrando a cada passo, até chegar no gramado, onde se enterrava. Já quase sem conseguir mover-me e com a pressa me consumindo, retirei-o e segui descalça, feito uma louca.
A brisa do mar era fresca e dei alguns passos de olhos fechados, aspirando o cheiro de maresia que vinha na minha direção, ouvindo as ondas quebrando na praia. Meus cabelos longos seguiam com o vento, tentando ter vida própria.
Subi os degraus até chegar na varanda e bati na porta. Embora as luzes estivessem acesas, não tinha nenhum som ou movimento vindo de dentro da casa.
Bati novamente, mais forte. Procurei por uma campainha, mas não encontrei.
Estava quase desistindo quando ouvi o som da maçaneta da porta. Dei de cara com um homem alto, aparentando uns cinquenta anos ou mais. Vestia um calção largo e camiseta branca. Os pés estavam descalços, como os meus.
Nos encaramos um tempo, certamente surpresos um com a presença do outro.
- O que deseja? – Ele perguntou.
- Eu... Acho que posso ter me engando de casa.
- Quem procura?
Pensei um pouco antes de responder:
- Charles...
- Charles? – ele ficou pensativo e respondeu em seguida – Sinto muito, não conheço ninguém com este nome.
- Devo ter me enganado mesmo... Desculpe incomodá-lo.
- Não por isso... Pode tentar a próxima casa. Fica a alguns quilômetros daqui.
Sorri e virei as costas, sentindo a grama debaixo dos meus pés.
Claro que Charles não estaria ali. Foi muita loucura da minha parte. A questão é que realmente a casa tinha dono e ele a frequentava, vez ou outra. Neste caso, foi logo depois que saímos que ele tomou posse de sua propriedade.
Parei quando alcancei o caminho pedregoso novamente e virei na direção da casa. Mal sabia o homem que aquele lugar havia sido onde eu fui mais feliz.
Desci pela lateral e logo encontrei a praia, iluminada pela luz da lua e contendo mais estrelas no céu do que quando eu o olhava da minha casa, no centro de Noriah Norte.
Joguei meu sapato na areia e molhei os pés. A água estava um pouco fria. Deus, será que eu conseguiria um dia esquecer tudo que vivi naquelas noites ao lado de Charles?
Sentei na areia úmida e fiquei ali, um tempo, olhando para o nada e tentando entender como nossos caminhos se cruzaram e se separaram em tão pouco tempo. Por que não fiquei mais tempo ali, com ele? Por que obedeci a meu pai?
Sim, eu tinha a opção de deixar minha casa. E isso implicava em crescer finalmente e assumir a responsabilidade sobre a minha própria vida. A questão é: meu pai me deixaria sair? E, caso deixasse, me ajudaria a ter meu próprio lugar para morar? Seguiria custeando meus estudos e patrocinando minha vida boa?
Porque se ele não fizesse isso, eu não tinha como deixar a mansão. Afinal, eu não sabia fazer nada que pudesse ganhar dinheiro para me manter sozinha.
Não tenho certeza de quanto tempo fiquei ali, pois não olhei o relógio e sequer me preocupei com os ponteiros se movendo. Foi um encontro comigo mesma, que eu estava precisando.
Quando voltei para o carro, retirei a concha do bolso e a olhei novamente, tocando nas letras ásperas dentro. Fechei meus olhos e vi perfeitamente os olhos verdes de Charles, o meio sorriso, as duas mãos na minha direção, para que eu pudesse escolher em qual estava a surpresa.
Me peguei sorrindo:
- Você merece ficar visível, conchinha. E não posso perdê-la nunca. Que acha de virar um colar ou uma pulseira?
Liguei o carro e voltei para a estrada. Senti um pouco de fome e decidi ir ao Posto de combustível que havia estado com Charles algumas noites atrás para pegar algo... Talvez uns chocolates. Quando eu ficava nervosa, tinha vontade de devorar chocolates.
Aquela cidade era minúscula e mesmo próximo da área central, era difícil encontrar alguém na rua. Talvez devesse levar em conta que era um dia de semana.
Parei no semáforo e peguei o celular, a fim de verificar se Charles havia retornado a ligação.
Ouvi um som no vidro no carro, na porta do motorista e deparei-me com uma arma apontada na minha direção.
Antes que pudesse fazer ou pensar qualquer coisa, o homem desceu da motocicleta, onde estava na carona e bateu de novo no vidro.
- Abre a porta, gatinha.
Fiz o que ele mandou: toquei o botão e liberei as portas. Ele sentou ao meu lado e pôs a arma na minha cabeça:
- Desce, devagar e deita na calçada. Conta até 50 e depois pode levantar. Nós vamos levar sua nave. E seu celular. – Pegou o aparelho da minha mão.
Desci com as mãos para cima e ele tomou meu lugar no banco, acelerando sem se preocupar com o sinal do semáforo em vermelho. O motociclista seguiu atrás dele.
Duvido que ele tenha saído a menos de 150 km/h em um minuto com a minha Ferrari.
Não vi se tinha alguém próximo. Simplesmente deitei na calçada, de bruços e descalça e pus a cabeça sobre meus braços, contando em ordem decrescente de 50 até 1.
Quando finalmente terminei a contagem, levantei, sentindo as lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Realmente não tinha ninguém por perto. E a rua tinha praticamente só alguns comércios, todos fechados, em função do horário. Na verdade, nem sei se em algum momento do dia aquela cidade funcionava.
Roubaram o celular e a carteira de Charles dias atrás e agora levaram meu carro... E o celular contendo o número dele atrás, na capa.
Tirando a casa de praia, aquele lugar era horrível e extremamente perigoso. Fui andando, sentindo meus pés doerem nas fissuras da calçada.
Não encontrava ninguém para pedir ajuda. Até que, duas quadras adiante, vi o posto de combustível, sentindo-me mais tranquila.
Quase corri até chegar lá. Assim que vi o frentista, que coincidentemente era o mesmo que havia me atendido quando queimei a perna na moto, falei:
- Senhor, eu fui assaltada. Acabaram de levar meu carro... Bolsa e celular.
- Isso é bem comum por aqui.
- Infelizmente eu soube tarde demais. Não sei se lembra de mim... – levantei parte da calça e mostrei a queimadura recente – Você me ajudou com este ferimento dias atrás.
- Eu... Talvez lembre. – Ele disse, incerto.
- Poderia chamar a Polícia para mim?
- Não tem polícia aqui na cidade... Mas pode ligar para a cidade vizinha.
- Como assim não tem Polícia?
- Temos menos de três mil habitantes...
- E quantos roubos por dia?
- Creio que exatamente pelo fato de não haver policiamento aconteçam os roubos e furtos.
- Eu... Não achei que fosse tão perigoso... Um lugar lindo, com uma praia perfeita...
- Para os lados da praia não tem isso... Não se preocupe. Geralmente seguranças privados fazem vigilância em tempo integral.
- Pode me emprestar um telefone?
Ele apontou para a loja de conveniência. Fui me encaminhando para lá:
- Obrigada!
Peguei o telefone na mão e olhei-o. Eu só sabia dois números de cabeça: os do meu pai e de Colin. Neste caso, não sabia para quem era pior ligar naquele momento.
- Sabrina? – Ouvi a voz masculina do outro lado da linha.
- Pai... Como sabe que sou eu?
- Porque registrei o número do qual você me ligou da outra vez. O que faz ai, garota?
- Pai... Eu fui roubada.
- Roubada? Como assim? – Percebi o nervosismo dele.
- Roubaram meu carro... E levaram junto a bolsa e o celular. Eu preciso de você.
- Estou indo... Fique onde está... Tente manter a calma. Chego o mais rápido que puder.
Pus o fone no gancho e olhei para o atendente, creio que mais jovem do que eu, prestando atenção no que passava na televisão ligada e não em mim. Talvez tenha sido daquela forma que o casal levou a carteira e o celular de Charles naquela noite, sem que ele percebesse.
Recostei a cabeça na parede e senti meu coração bater mais forte. J.R faria picadinho de mim... Não tinha dúvidas.
Peguei uma água gelada com gás e sentei num canto da loja, no chão. Quando o rapaz olhou para mim, finalmente, eu disse:
- Fui assaltada. Não tenho dinheiro para pagar a água... Mas meu pai está vindo. Então... Talvez ele queira pagar a água. Ou tirar esta porra de cidade do mapa. – Ri, nervosamente.
Meu pai chegou mais rápido do que o tempo que levei para encontrar a cidade. Estava no carro com o motorista, dois seguranças no outro carro e acompanhado de um homem, que eu não conhecia.
Assim que o avistei, levantei, amedrontada. Mas ele abriu os braços e corri até ele, sentindo o abraço forte:
- Não fizeram nada com você? – Ele me afastou, olhando meu rosto e corpo.
- Não... – Senti as lágrimas novamente.
Ele me abraçou de novo. Envolvi os braços no seu corpo magro, sentindo a maciez de sua roupa.
Por um tempo, chorei e ele não fez perguntas. Esperou eu me acalmar. E quando isso aconteceu, perguntou, os olhos dentro dos meus:
- O que você faz de novo neste lugar?
Havia explicação? Não, não havia. Como dizer que eu conheci um homem na noite antes do casamento, deixei meu ex noivo traidor no altar e corri para os braços do desconhecido, que me trouxe para uma casa naquela cidade onde vivi as horas mais felizes da minha vida? Então tive que voltar para casa... E o número que dei do meu telefone para ele ficou na jaqueta, que por azar parou no meu próprio corpo. E que ele não trabalhava mais no bar... Mas havia me deixado um bilhete com seu número. E agora eu havia perdido tudo... Tanto o bilhete quanto número... E ele... Para sempre.
- Responda, Sabrina!
- Eu... Não sei. – Falei, sem intenção de contar a verdade.
- Inspetor, esta é a minha filha, Sabrina.
O homem que estava junto de J.R e dos seguranças veio até mim e apertou-me a mão:
- Sou da Polícia. Não há Delegacia nesta cidade e a mais próxima é na outra região, longe daqui.
- Eu... Soube há pouco que não havia Polícia neste lugar.
- Uma cidade conhecida por seus perigos com relação a furtos e roubos, por isso os comércios fechados cedo e as poucas pessoas na rua. Gostaria de me falar o que faz aqui, senhorita Rockfeller?
- Não tenho ideia... – Segui a omissão.
- Rapaz, quero as filmagens das câmeras. – Ele olhou para o atendente, que estava com os olhos arregalados.
- Quero a imagem da pessoa que estava com ela da primeira vez que Sabrina me ligou deste lugar. – Meu pai avisou.
Como assim? Ele encontraria eu e Charles e saberia rapidamente quem ele era. Eu não poderia deixá-lo prejudicar Charles... Por minha causa.
- Pai... Não...
- Encontrarei a pessoa, senhor Rockfeller. Bem como o carro de sua filha. – Garantiu o inspetor.
- Venha, Sabrina, vamos para casa. – Meu pai pegou-me pelo braço.
- Pai, não pode fazer isso.
- Encontrar os ladrões que roubaram seu carro? Ou o homem que queimou sua perna e encheu-a de hematomas?
- Não eram hematomas... – Contestei, enquanto ia com ele para o carro.
- Era o que, exatamente? – Ele me desafiou.
Entramos no carro. O motorista estava nos esperando. No carro de trás foram os seguranças. O inspetor ficou dentro do posto, certamente disposto a qualquer coisa para ver o rosto de Charles.
- Pai, foi consensual... Por Deus... Não pode prejudicá-lo.
- Então me diga o nome e sobrenome dele. E eu posso ser um pouco piedoso, em função da sua sinceridade.
- Eu... Não sei o sobrenome dele. Juro. – Confessei.
- E o nome?
- Não tenho certeza.
- Dormiu com um homem que não sabe sequer o nome, Sabrina? E o deixou fazer isso tudo com você?
- Pai...
- Eu não a reconheço... E tenho vergonha de ser seu pai. Não criei minhas filhas para caírem nas mãos de vermes como o que você conheceu.
- Mas... Nem o conhece para falar assim dele.
- Me diga o sobrenome dele e digo se ele merece minha consideração.
- Eu não sei. – Falei, na certeza de que ele não acreditava em mim.
Meu pai suspirou e senti sua indignação:
- Nunca mais vai pisar seus pés nesta cidade novamente, Sabrina. Era para você estar na faculdade. Como veio parar aqui?
Abaixei os olhos. Eu não tinha como explicar. Pagaria o que tivesse que pagar, mas manteria meu silêncio.
- Você está de castigo. Irá de casa para faculdade e vice-versa. Mandarei um dos seguranças acompanhá-la e nenhum desconhecido se aproximará de você.
- Eu já tenho dezoito anos... Não pode me manter prisioneira.
- Posso... Você é minha filha.
- Sua filha, não sua propriedade. Tenho o direito de me envolver com quem quiser e o fato de bater na minha cara não vai mudar em nada meus sentimentos.
- Eu jamais baterei em você de novo, Sabrina. Mas lhe dou o direito de escolha: continuar a viver sua vida, com tudo que sempre amou, no conforto da sua casa. Ou ir embora... Abrindo mão de sua herança. Pode fazer a escolha... Afinal, já tem dezoito anos.