Capítulo 96
2534palavras
2022-12-27 10:59
Nas próximas duas semanas tudo que se fez na Coroa Quebrada se constituiu em organizar a invasão ao castelo de Avalon. Na noite anterior ao ataque, pensei que não conseguiria dormir pela excitação e preocupação de como seria o dia seguinte. Mas me enganei. Logo depois eu adormeci. Acordei no meio da noite e vi que Samuel não estava na cama. Fui até a cozinha e tomei um copo de água. Verifiquei o quarto de Emy e ela também não estava dormindo ali. Certamente estavam ainda acertando os últimos detalhes. Eu poderia ajudar... Eu gostaria de ajudar. Mas ao mesmo tempo ficar com a garota Emília também era uma forma de auxiliá-los. Exceto por Sam e Emy, eu não era bem recebida na Coroa Quebrada. A forma como todos me encaravam era de desconfiança e desgosto por eu estar ali. E aquilo não me fazia bem. Sim, eu estaria na invasão ao castelo de Avalon tentando tirar o insano Stepjan Beaumont do poder. Mas eu não precisava planejar como aquilo aconteceria. Eu já havia feito a minha parte, ao tentar desenvolver o plano, que ao ver foi um fracasso por Alexander ter morrido, por Isabella estar impune, por eu ter magoado as pessoas que eu mais amava e ser responsável pela morte de outra. No fim, Emy disse que graças a mim ela teve coragem. E eu fiquei feliz por ter ajudado de alguma forma, mesmo com tudo de ruim que aconteceu. Em pouco tempo, não haveria mais o rei Stepjan no poder e aquilo me trazia uma sensação de bem estar incrível. Eu gostaria muito de poder dizer na cara do rei que ele era impotente, que não podia ter filhos, que sua masculinidade estava com problemas. E que ele havia sido traído inúmeras vezes. Mas certamente eu não teria aquela oportunidade.
Tentei dormir, mas não consegui. Fiquei ali, abraçada à pequena Emília. No meio do caos, acho que ela sobreviveria. Ela tinha amor da sua família. E quando tudo aquilo acabasse, ela seria muito feliz ao lado deles.
Quando os primeiros raios de sol entraram pela janela, eu ainda estava agarrada à menina. Então Sam entrou. Ele me fitou e disse:

- Você devia estar dormindo.
- Você também. – rebati.
- Foi uma noite difícil.
Ele estava com uma cara péssima. Visivelmente cansado.
- Quer que eu prepare o café para vocês? – perguntei levantando.
- Não se preocupe com isso. – ele disse deitando na cama e olhando para o teto. – Duvido que eu vá conseguir colocar alguma coisa no meu estômago.

Eu sentei na cama, perto dele:
- Está com medo?
Ele me olhou e disse:
- Sim. Não há como não temer. É uma guerra. Eu me preparei a minha vida inteira para este momento. Mas agora que vai acontecer, eu sinto uma angústia aqui dentro. – ele colocou a mão no coração. - Não tenho medo por mim... Temo por minha mãe, por minha irmã... Por você.

Eu coloquei a cabeça dele sobre minhas pernas e alisei seus cabelos:
- Relaxe, vai dar tudo certo, Sam. Tente dormir um pouco.
Ele me olhou e percebi que de alguma forma a minha presença ali lhe deixou bem. Acariciei os cabelos dele até que ele adormecesse sobre mim.
Pensei em Estevan. Será que ele também se sentia inseguro ou com medo? Ele era tão diferente do que eu imaginei... No início me parecia tão tímido, inseguro e amedrontado. Agora o que eu via era um homem seguro, corajoso e em nada tímido. Ele sempre sabia exatamente o que fazer. E o tempo parece que me deixou mais frágil e sensível. Eu já fui mais forte. E achei que tinha sofrido tudo que podia na minha infância e que minha vida acabaria sendo como o planejado: conhecer Avalon por seis meses, realizar meus desejos, casar e ser feliz para sempre. Ironia do destino. Sorri sozinha e deixei uma lágrima escapar pelos meus olhos. Conhecer Avalon foi a melhor coisa que me aconteceu. Quando eu vi Estevan pela primeira vez e meus olhos encontraram os dele, eu sabia que ele seria o fim de todos os meus planos. Apaixonei-me perdidamente. Depois dos nossos encontros perfeitos e desencontros dolorosos, eu senti sofrimento e agonia... De amor, que eu nunca sentira antes. Então conheci Samuel e gostei dele de imediato. Senti desejo por ele. Eu era uma adolescente em ponto de ebulição, querendo sair por aí transando com todo mundo. E eu quis muito me entregar a ele. Mas o fato de ele me lembrar que Estevan existia em algum lugar fez com que eu desistisse. Estevan apagou o fogo que me consumia, o desejo de conhecer o sexo. Mas meu sangue ainda fervia e eu entrava em chama quando ele me tocava. No entanto eu só sentia isso por ele agora. E então conheci Emy, minha tia que sempre tive curiosidade de saber sobre sua vida. E descobri que ela não era minha tia. E que o homem que me apoiava em todos os momentos e que eu mal conhecia era o meu pai. Então eu senti um amor que eu ainda não havia sentido: o amor parental, o amor de pai. E fui tão grata por ele ser o meu progenitor. Neste meio tempo, Alexander, que viveu a vida inteira como meu irmão, mas que quando criança e na pré-adolescência achei sentir algo a mais por ele, passou a ser horrível e desprezível. Ele fazia questão de me machucar com suas palavras e seus atos. Ainda assim sempre se desculpava, mas voltava a fazer as mesmas coisas. E dizia que me amava. E eu não acreditava que o amor podia ser daquela forma: possessiva, dura, capaz de magoar, de fazer doer... Mas quem poderia definir o que era o amor, afinal? Ninguém. Alexander me amou à sua maneira. E deu sua vida por mim. E eu seria grata eternamente a ele e sua família. E eu perdi Mia, minha única amiga. Pensar nela sempre me fazia sorrir. Tínhamos tantas histórias juntas. Eu a obrigava a entrar nos corredores do castelo para que eu pudesse beijar os guardas. E ela me criticava. Realmente, eu era muito louca. Com qual intenção eu fazia aquilo? Eu achava que era para adquirir experiência. Mas não... Era uma forma de tentar me rebelar de algum jeito contra meu até então pai, Stepjan. Mia era a razão... Eu a emoção. E eu tive o perdão de Léia, a mulher que me cuidou a vida inteira me tratando como se eu fosse a sua filha. Então eu fui raptada pelo meu próprio plano. Quando encontrei meu futuro marido, percebi que ele era o amor da minha vida e me arrependi do que havia feito. Mas não houve como voltar atrás. E cá estava eu, com Samuel deitado nas minhas pernas, cochilando. Um homem lindo, perfeito, corajoso... E que de alguma forma, mesmo gostando de mim, havia aceitado que eu pertencia a outro. E que o amor que eu e Estevan sentíamos, ninguém poderia diminuir ou apagar. Era para sempre.
Retirei cuidadosamente a cabeça dele e coloquei no travesseiro. Ele não acordou. Realmente estava cansado. Olhei-o dormindo e alisei seu rosto. Certamente aquele era nosso último dia juntos. Não nos veríamos novamente. Fui até a cozinha e encontrei Emy tomando um café puro. Ela me olhou e sorriu:
- Não lhe ofereço porque isso não faz bem. Mas preciso me manter forte e de pé.
Sentei à mesa na frente dela e disse:
- Desculpe por eu não ter ajudado.
- Você ajudou, querida. Se não fosse você ter aparecido com sua ideia louca, jamais teríamos iniciado isso. E confesso que deveria ter acontecido há muito tempo. Mas parece que eu simplesmente travei, temi... Sim, a ideia era esperar, mas não tanto tempo. Então, graças a você, isso aconteceu.
- Obrigada...
- E ficar com Emília foi a melhor coisa que pôde ter feito. Ela precisava de alguém. E eu não poderia estar ali com ela. Obrigada.
Eu abaixei minha cabeça.
- Querida, está triste?
- Não... Eu só sou grata por ter conhecido vocês.
- Nos veremos novamente. – ela afirmou.
- Talvez...
Emy levantou meu rosto e fitou nos olhos:
- Ei, você não precisa partir se não quiser.
- Eu sei disto... Mas meu lugar é junto de Estevan, onde ele estiver. Não temo sair de Avalon com ele. Sei que minha escolha é certeira.
- Mas...
- Definitivamente, eu não queria magoar Samuel.
Ela riu:
- Ele vai ficar bem, querida. Não se preocupe. Talvez no início sofra um pouco, mas vai passar.
- Você acha?
- Eu tenho certeza. Ele é jovem. E já gostou de outras garotas antes. Talvez você foi o primeiro amor de verdade dele. Mas um pouco disso se deve ao fato de ser um tanto quanto proibida.
- Mas... Nos envolvemos antes de saber que éramos da mesma família. – falei um pouco chateada de mentir um pouco para ela.
- Ainda assim você disse alguns “nãos” para ele, não é mesmo?
- Sim...
- E ele nunca foi rejeitado, entende? As garotas sempre se jogavam aos seus pés.
- E Isabella?
- Eles tiveram um longo relacionamento. E eu tive um pouco de culpa de não deixar ele se desvencilhar dela quando foi preciso. Eu sentia pena dela... Ele também. Mas depois de um tempo ele viu que ficar com ela por dó era muito pior que dizer-lhe que não gostava dela. Ele sempre teve qualquer mulher que quisesse...
- Fico feliz de ouvir isso... Que ele vai ficar bem.
- Sim, vai. Não se preocupe. Mudando de assunto... Já escolheu sua roupa para o grande momento?
Eu ri:
- Bem se vê que você é uma futura rainha. Quem se preocupa com a roupa que vai usar na guerra?
- As mulheres, claro. – ela riu. – Vamos lá, precisamos escolher algo confortável e bonito. Não vai querer que seu príncipe a veja de qualquer jeito, não é mesmo?
- Não, claro que não. – falei imediatamente.
Ela foi até o seu armário e disse:
- Todos usamos preto... Sempre.
- Algum significado especial?
- Uma cor forte, neutra. Representa a força.
- Interessante...
Ela pegou uma calça preta fosca, uma blusa simples e sem detalhes e uma jaqueta de couro da mesma cor.
- Vista isso. E lembre-se de usar calcinha. – ela brincou.
- Eu... Uso sempre. – falei hesitante.
Ela riu:
- Desde que você apareceu por aqui, eu tenho uma gaveta de calcinhas novas. Culpei-me muito por não ter enviado naquela mochila quando você deixou o castelo.
Eu ri:
- Não se preocupe... Você não tinha que adivinhar, não é mesmo?
- Não mesmo... Mas ainda me pergunto por que uma princesa, com um vestido espetacular daqueles e perfeitamente arrumada não estaria usando uma calcinha no seu primeiro encontro com o futuro marido. – ela sorriu debochadamente.
- Na verdade, quando encontrei com ele eu estava usando. – confessei um pouco sem jeito.
Ela riu alto:
- Eu não queria constrangê-la, querida. Mas achei isso divertido, acredite. Fez-me lembrar das coisas loucas que eu e Leeter fazíamos escondidos.
Olhei-a confusa.
- Eu também já tive a sua idade. – ela deu um tapinha no meu ombro. – E uma princesa presa por tanto tempo quando fica livre tudo que quer é fazer sexo. E eu fiz isso com o primeiro homem que encontrei quando saí daquele lugar. E me apaixonei perdidamente por ele.
- Sei bem do que se trata.
- Nunca se perguntou se você tivesse encontrado primeiro outro e não ele, como seria?
Eu ri:
- Não sei... Eu sempre soube que era ele.
- Eu também. – ela disse. – Leeter e eu tínhamos uma conexão que eu nunca pude explicar. Eu tentei cumprir as regras, me casei com o príncipe que havia sido prometido a mim desde que nasci. E ele era um bom homem. Mas meu coração sempre pertenceu a Leeter.
- Eu tive sorte de me apaixonar pelo homem que foi prometido a vida inteira. – sorri.
- Agora vamos lá... Porque falar de amor me dói um pouco às vezes.
- Sim, vamos. Mas antes posso fazer uma última pergunta?
- Claro, querida.
- Você se relacionou com outro homem depois que ele morreu?
- Não. – ela disse firmemente. – Acho que isso nunca mais vai acontecer. Eu falei sobre amor e conexão... E acho que você entende disso, não é mesmo?
- Sim. – confirmei.
Quando chegou a hora meu coração palpitava fortemente dentro de mim. Eu estava ansiosa. Assim que vi Sean junto de todos os demais fui até ele.
- Se sinta abraçado. – eu disse no ouvido dele.
- Querida, estava com saudades.
- Me prometa que vai tomar cuidado. – eu pedi.
- Vou sim. Mas estarei junto de você. Não vou deixá-la um minuto sequer.
- Estou orgulhosa de lutar ao seu lado... Pai. – falei baixinho no ouvido dele.
- E eu de você. – ele me olhou ternamente.
O dia estava findando. A noite chegando.
- Espero que seu noivo não nos decepcione. – disse Sam se aproximando de nós.
- Não decepcionará. – eu falei certa do que dizia.
Foi estranho ver todos de preto e armados. Eu teria uma arma? Antes que eu perguntasse, Samuel me entregou um revólver. Olhei para ele confusa.
- Está carregado. Não tenho tempo de explicar como usar... Mas seu pai pode fazer isso. – ele disse saindo rapidamente.
Sean me olhou preocupado e eu confessei:
- Falei sem querer. Mas ele foi legal. Prometeu não contar.
- Depois da invasão, quero que você conte a Emy a verdade.
- Farei isso.
- Não quero que ela saiba por outra pessoa não ser você.
- Eu confio em Sam. Ele não contará.
Atravessamos a ponte e havia vários carros esperando. Eu soube que eles tinham vários automóveis e que os demais haviam sido emprestados por quem apoiava o movimento de fora da Coroa Quebrada. Alguns caminhões também levariam algumas pessoas. Uns poucos iriam em barcos improvisados pelo rio. Eram tantas pessoas que fiquei ali olhando para tudo como uma idiota, sem saber o que fazer.
- Eu levo isto e lhe entrego lá. – disse Sean pegando o revólver da minha mão.
Antes que eu pudesse contestar ouvi o motor da moto. E todos os olhares se voltaram para ele. Eu sorri. Não podia ser diferente. Meu príncipe não me deixaria ir sem sua presença.
Ele parou ao meu lado e me entregou o capacete:
- Não tinha que ser num cavalo branco, você usando uma armadura e com uma espada erguida? – perguntei enquanto me agarrava a ele.
Ele se voltou para mim e disse, sem levantar o visor:
- Posso ser cavalgado quando você quiser. Eu tenho uma espada comigo e juro que minha calça é a mais horrível armadura quando estou com você.
- Não se fazem mais príncipes como antigamente. – fingi decepção.
Ouvi o riso dele abafado dentro do capacete e podia imaginar o sorriso lindo dele, mesmo não conseguindo ver. Estevan era minha perdição.
Ele acelerou repetidamente antes de sairmos em alta velocidade.