Capítulo 17
2627palavras
2022-12-11 07:00
Durante a semana eu me ocupava com outras coisas, como aulas em casa, especialmente aprimorando línguas estrangeiras. Os professores vinham dos países de origem das línguas ensinadas. Ninguém residente em Avalon era contratado para me dar aulas. Eu gostava muito desta parte de línguas estrangeiras e minhas pronúncias eram perfeitas. Em algumas eu até conseguia fazer os sotaques e era sempre muito elogiada pelos professores. Eu tinha muita vontade de saber de onde vinha meu futuro marido e a língua que ele falava, para poder estudá-la com mais dedicação. Mas isso era mantido a sete chaves.
Na tarde de quinta-feira eu fui até a Biblioteca no meu tempo livre. Sozinha. Eu confiava em Mia, ela era a minha melhor e única amiga. Mas havia coisas sobre o reino de Avalon que eu precisava saber sozinha. E uma delas era encontrar algo sobre minha tia, Emy Beaumont. A biblioteca do castelo não era muito ampla. Logo que se abria a porta principal viam-se dois grandes pilares redondos, um ao lado do outro, em madeira escura, que se alastrava da mesma forma na parte de cima, como entalhes no teto. O chão era em madeira extremamente brilhante e lustroso e fazia meus sapatos deslizarem se eu não cuidasse a forma de andar. Mas assim que se passava esta parte, havia um gigante tapete vermelho alaranjado, fino, confortável e de extrema qualidade, que cobria grande parte do ambiente. Os livros eram perfeitamente organizados em estantes da mesma cor de madeira, que combinava com as paredes no mesmo tom marrom escurecido. Dois lustres pendentes com luzes claras, mas que imitavam velas acesas davam um toque de conforto e aconchego. Uma espécie de imitação de globo terrestre, porém em dourado, usado como enfeite, ficava no meio do tapete. Tinha uma mesa grande para pesquisa, com poucas cadeiras e em cima delas dois abajures que clareavam muito bem. Duas poltronas antigas de madeira ficavam uma encostada em cada pilar, para o lado de dentro. Havia também uma lareira, que podia ser acesa em dias frios. E quatro corredores bem iluminados guardavam os livros mais importantes de Avalon. Tudo que precisasse e estivesse escrito num livro, estaria ali. Não... Não havia computadores para pesquisa. Eu já disse que meu pai era extremamente contra a tecnologia e apegado aos tempos medievais? Uma escada em semicírculo levava ao mezanino. Lá ficavam os livros raros e que não podiam ser manuseados por qualquer pessoa, somente pela realeza. A história dos Beaumont estava ali, toda escrita, desde o início da nossa geração. Eu subi e comecei a procurar algo sobre minha tia. Mas era tanta coisa que eu nem sabia por onde começar. Fui me embrenhando entre as estantes, passando meus dedos um a um, lendo os títulos e vendo o que poderia me atrair e me ser útil.
Ouvi a porta da Biblioteca se abrindo e me assustei, indo instintivamente um pouco para trás. Vozes adentraram no ambiente. E falavam baixo. Eu sabia que tinha alguém ali, mas não conseguia ouvir exatamente o que diziam. Fui lentamente e sem fazer ruídos um pouco para frente e vi lá embaixo meu pai... E Beatrice. O que meu pai fazia com aquela mulher na biblioteca àquela hora da tarde? Ele não deveria estar em sua sala, despachando documentos, falando ao telefone com grandes líderes de outros países... Ou simplesmente estar pensando em como alimentar o povo com fome da Coroa Quebrada?

Abaixei-me para não ser vista e consegui observá-los de cima. Meu pai a colocou na parede e começou a beijar o pescoço dela. Eu senti nojo. Ele poderia ter qualquer mulher... Por que escolher uma que tinha idade para ser sua filha? Ela era jovem... E provavelmente estava interessada em nada mais do que um lugar na realeza. Por que eu pensava isso? Eu simplesmente não gostei dela desde o momento em que a vi pela primeira vez. E eu sempre achei que meu pai devia refazer sua vida, conhecer alguém e talvez casar-se novamente. Mas Beatrice não era a pessoa certa para ele.
Aquela história de assessora de imprensa estava muito mal contada desde o início. A única coisa positiva é que talvez ele ficasse ainda mais indiferente a mim, o que me deixaria livre para explorar Avalon como eu bem entendesse.
- E se alguém nos vir aqui, Stepjan? – ela disse com voz melosa enquanto ele passava a mão sob o seu vestido, apertando suas nádegas, imprensando-a contra a parede.
Céus, eu não queria ver aquilo. Deitei no chão bem devagar e fiquei olhando para o teto, onde eu só os escutaria.
- Ninguém vem aqui... Nunca. Não se preocupe.
- Isso quer dizer que não é sua intenção me assumir então? – ela perguntou. – Achei que diria que não se importava se alguém nos visse juntos.

- Por enquanto não, querida. – ele disse com a voz baixa.
- Assim vou achar que você pode estar brincando comigo, Majestade.
- Eu jamais faria isso com você, querida.
- E quando vai contar para sua filha?

- Eu vou contar... Se acalme. Mas Satini não tem nada a ver conosco. Ela não vai se opor, acredite.
- Por que acha isso?
- Eu a deixei explorar Avalon. Ela está completamente absorta nisso.
Ela riu:
- Bobinha... Já tive esta idade também.
- Espero que ela realmente não seja tão esperta mesmo.
- Por que, meu amor? Tem medo de sua filha?
- Não... Satini não me oferece perigo algum... Sempre foi uma garota obediente. E me ajudou muito quando decidiu esta loucura de andar por Avalon como se fosse uma pessoa normal e não fizesse parte da realeza.
- E por que você permitiu que ela ficasse nas ruas de Avalon, desprotegida? Sabe onde ela está indo, o que está fazendo?
- Claro que não... Nem quero saber. Só quero que ela continue com esta ideia de conhecer cada canto de reino e se perca num beco qualquer, de preferência da Coroa Quebrada, e nunca mais volte.
Houve um silêncio de alguns segundo que me pareceu uma eternidade. Senti meu coração batendo tão forte que eu conseguia escutá-lo pelo lado de fora do meu corpo.
- Isso seria por que não quer passar a coroa para ela? – ela perguntou.
- Não é que “não quero”, querida. Eu “não vou” passar a coroa para ela. Eu vou ter um filho homem com você. E eu terei tempo o bastante como rei de Avalon até ele crescer e tomar o meu lugar.
- Hum... Eu só quero logo receber minha tiara de rainha. – ela disse e ouvi ruídos de beijos estalados.
- Agora vamos esquecer a tola da minha filha e fazermos um filho aqui e agora.
Ouvir os gemidos de meu pai comendo a minha assessora de imprensa com o objetivo de fazer nela um filho homem não era nada comparado às palavras que eu escutei. Enquanto eles tentavam gerar um herdeiro homem para assumir o meu lugar, eu sentia as lágrimas quentes caindo pelo meu rosto. Eu não lembro a última vez que chorei. Achava que minha vida não poderia ficar pior: não conheci minha mãe, me sentia por vezes culpada pela morte dela, que me deu a vida e se foi, meu pai me ignorava, minha vida era como se não fosse minha... Eu só fazia o que todos queriam que eu fizesse. E achava que minha obrigação era ser a mulher perfeita para um dia ser digna de Avalon.
Eu ri, sentindo as lágrimas mornas e salgadas entrando na minha boca... Eu era mesmo uma tola. Meu pai era a pessoa mais imperfeita, horrível e governava Avalon. Ele só aceitou que eu saísse do castelo porque queria que eu morresse. Por isso eu tinha somente Alexander comigo. Será que ele fazia parte daquilo também? Ou também era uma vítima do meu pai?
Tive a sensação de que iria morrer sufocada e senti vontade de gritar. Coloquei minhas mãos com força na minha boca, sentindo só minha respiração ofegante e fraca. Eu não queria que ninguém me descobrisse ali.
Algum tempo depois, não sei exatamente quanto, eles se foram. E eu fiquei ali, olhando para o teto e me perguntando por que ele me odiava tanto. Eu era sangue de seu sangue... E ele preferia a coroa do que eu. O que um filho homem faria diferença na vida dele? Aquilo tudo era pelo poder absoluto, pela coroa de ouro que ele ostentava na cabeça em momentos especiais? Ou simplesmente para ele mulheres não eram capazes.
Agora mais do que nunca eu buscaria a história de minha tia Emy Beaumont... E descobriria se sua morte foi realmente acidental ou não. E se houvessem culpados pela morte dela, seriam punidos. E não... Eu não morreria nas ruas de Avalon. Eu sobreviveria, assim como fiz até agora. E tomaria o trono, com a coroa na minha cabeça, sendo a primeira rainha de Avalon. E não sei o que eu faria com meu pai e Beatrice depois disso.
Despertei e meus olhos encontraram o teto da biblioteca. Fui levantar e senti uma forte dor nas costas. Eu havia adormecido ali... Chorando feito uma criança. Enfim, as lágrimas haviam ido embora e provavelmente só restou olhos vermelhos e inchados. Eu detestava a sensação que dava depois de chorar... Por isso eu evitava fazer isso. A quem eu estava tentando enganar? Eu evitava chorar porque aquilo me fazia fraca e eu não queria ser fraca. Eu queria ser forte e agora eu precisava ser... Ou não sairia viva.
Os livros sobre Emy teriam que esperar. Eu precisava de ar fresco depois de passar tanto tempo naquele lugar fechado e com pouco ar. E tinha cheiro de livros... Velhos. Desci as escadas lentamente e saí, procurando um dos jardins para tomar ar puro. Já estava escuro e eu nem vi no relógio que horas eram. Escolhi o jardim dos fundos, que tinha um pergolado grande com uma espreguiçadeira debaixo dele. Era todo gramado verdejante e tinha flores coloridas e de vários tipos plantadas ao redor do muro, contrastando com a construção sem vida. Deitei e olhei para o céu estrelado com uma linda lua brilhante e cheia. As cortinas em voal branco balançavam ao sopro do vento fraco.
Eu não sabia exatamente o que fazer. Precisava de tempo para pensar. Mas eu tinha pouco... Pouquíssimo tempo.
- Admirando a noite, Alteza?
Não precisei me direcionar a ele... Eu conhecia a voz de Alexander. Continuei a contemplar a linda noite, não respondendo nada.
Ele parou ao meu lado:
- Está tudo bem, Satini?
- Sim... Tudo bem.
- Se importa se eu ficar aqui com você um pouco?
- Tanto faz, Alexander.
- Ainda está brava comigo?
- Deveria?
Eu não estava brava com Alexander. Depois de tudo que eu tinha ouvido naquela tarde, a forma como ele me tratava era absolutamente insignificante frente a todo o resto.
- Você não gosta de ser meu guarda-costas, não é mesmo? – perguntei.
- Eu... Não disse isso.
- Sim, você disse.
- Me desculpe, eu...
Olhei na direção dele, parado ao meu lado, de pé, me observando:
- Não... Chega de desculpas. Foi só uma pergunta. Se não quiser, não responda.
- Não... Não me sinto a vontade.
- O que exatamente meu pai pediu que você fizesse?
- Ajudasse você a fingir que era uma pessoa normal e cuidasse para que nada nem ninguém lhe fizesse mal.
- E o que acha que alguém poderia me fazer de mal, Alexander?
Ele pensou um pouco e respondeu:
- Tocá-la... Aproveitar-se de você... Tentar... Dormir com você.
- Já pensou em algo de mal que alguém poderia realmente tentar me fazer a não ser me foder?
Ele me olhou atônito. Sim, princesa usa o termo “foder”. E se ele soubesse o quanto eu queria “foder”... E podia ser com qualquer um que cruzasse meu caminho. Meus hormônios começavam a pedir por isso, meu corpo começava a implorar por toques que eu não mais conseguia satisfazer sozinha.
- Par mim a única coisa horrível que poderiam querer fazer é “fodê-la”, Alteza. E eu foderia, literalmente, qualquer um que fizesse isso com você.
Eu balancei minha cabeça. Droga, acho que ele estava sentindo algo por mim... Ou pelo menos desejava “foder” comigo. Ou será que Alexander fazia amor? Não... Ele tinha jeito que fodia as mulheres. E se não bastasse isso, ele tinha sentimento de posse com relação a mim, talvez por tudo que vivemos juntos... Ou pelo beijo que trocamos há anos atrás.
- E se alguém quisesse me matar? Você acha que isso poderia acontecer?
- Não... Ninguém sabe que você é a princesa Satini Beaumont.
- E se soubesse, Alexander?
- Então eu precisaria de um exército ao meu lado para defendê-la.
- Por que quereriam me matar? Por causa de meu pai?
- Sim...
- Pois afinal, nem sabem que eu existo, não é mesmo? Como podem desejar a morte de uma pessoa que sequer conhecem, só pelo sobrenome dela?
- Por que estamos tendo esta conversa mesmo?
- Eu passei a vida inteira dentro deste castelo. Pelas minhas lembranças saí daqui onze vezes em toda a minha vida, sempre na mesma rua, para fazer compras. Tudo isso pela minha segurança. Nunca se perguntou por qual motivo meu pai teria deixado eu sair do castelo de uma hora para outra, sendo que falta alguns meses para o meu casamento e eu ser coroada como a princesa de Avalon, futura rainha? E o pior, com apenas uma pessoa para me defender?
- Eu... Pergunto-me sim sobre isso... Na verdade todos os dias. E nunca entendi o real motivo.
Eu sorri:
- Isso demonstra que você é esperto, Alexander.
- Alteza, eu estou sozinho para defendê-la de qualquer coisa... Mas posso garantir que daria minha própria vida por você.
- Obrigada pelas suas palavras, Alexander. É bom saber que alguém se importa comigo.
- Muitas pessoas se importam com você, Alteza.
Eu ri alto:
- Quem? Você, sua irmã e sua mãe?
Ele ficou calado. Depois de um tempo disse:
- Ficar pensando e olhando para a lua não faz muito bem às vezes.
- Sábado eu quero ir num lugar que ainda não fomos. – falei.
- Onde?
- O nome do lugar é Rock Night. Fica neste endereço.
Entreguei o papel que estava comigo o tempo inteiro, desde que o recebi de Samuel na casa noturna.
- Este lugar é bem longe daqui, princesa. O que você quer lá?
- Preciso lhe dizer mesmo?
- Foi o homem do bar. – ele disse mais que depressa. – Não posso levar você até lá. Não é seguro.
- Fica na Coroa Quebrada?
-Não... Mas próximo. Chama-se Travessia. É longe dos lugares seguros para você.
- E o que seria um lugar seguro para mim, Alexander? Sempre perto de pessoas como eu: ricas, que não tem problemas, que tem tudo que querem e precisam... Não acha mesmo que eu deveria conhecer Avalon como um todo se um dia vou governá-la?
- Eu...
- Ou acha que eu vou governá-la só para a burguesia, como faz meu pai?
Ele me olhou e ficou sem palavras.
- Eu não vou governar só para uma metade de Avalon. Eu serei a rainha de todos... E também da Coroa Quebrada.
Ele riu:
- Você é muito pretensiosa, Alteza.
- Devo receber sua observação como um elogio, Alexander?
- Creio que sim.
- Isso quer dizer que você vai me levar sem problemas onde eu quero ir?
- Não... Eu não disse isso.
Eu ri. Era sempre difícil lidar com ele. Mas eu já havia decido que iria da mesma forma. E se precisasse, usaria dos meus meios para que ele não me trouxesse problemas.