Capítulo 59
2064palavras
2022-07-15 20:00
Jamais na minha vida imaginei, aos vinte anos de idade, perder minha mãe e estar sentada numa cadeira ouvindo “Meus pêsames” das pessoas. Eu sequer via quem estava ali. Minha cabeça dava voltas e voltas e ainda parecia que nada daquilo era real... Que eu acordaria no dia seguinte e tudo estaria bem e minha mãe comigo.
Desisti de Nicolas. Ele não dava retorno. E eu percebi que naquele momento ele não importava. Se achava que devia me ignorar e não estar comigo no momento que eu mais precisava dele, ele não me merecia.
Pedi para Lorraine avisar meu pai no hotel e ela o fez. Eu tinha esperanças de que ele aparecesse para se desculpar com minha mãe e se despedir. Mas ele não veio.
Quando vi Alissa, Val e Dani, senti meu coração bater tão forte e não resisti às lágrimas. Elas não disseram nada... Só me abraçaram, num “abraço quádruplo”, como costumávamos chamar. Senti-las junto de mim no momento que meu coração queria tanto aconchego era a melhor coisa que poderia acontecer. Não importava quanto tempo passasse ou não nos víssemos, ou até mesmo brigássemos... Ainda assim seríamos amigas. E estaríamos uma ao lado da outra nos apoiando quando fosse preciso.
- Tudo vai ficar bem. – disse Dani.
- E estaremos aqui sempre que você precisar. Sabe que pode confiar na gente. – disse Valquíria.
- Mesmo que seja para te encher a cara de pina colada quando estiver deprimida. Porque somos loucas, imperfeitas, mas amamos você. – completou Alissa.
Eu ri e elas também. Só elas conseguiam fazer tudo parecer mais leve e tirarem um sorriso de mim no pior dia da minha vida.
Foram as horas mais longas da minha existência. Ver o corpo de minha mãe sem vida num caixão e esperar o momento de me despedir para sempre era a coisa mais sem sentido que eu já vi. Velórios e enterros deveriam ser proibidos. Eu via como um prolongamento da dor da perda. E não pensei que pudesse ficar pior o que eu sentia... Até ver o caixão baixando e as pedras cobrirem o que um dia foi minha mãe, a pessoa mais amada e perfeita do mundo. Quando a última pedra foi colocada no lugar, a sensação que ficou foi: “Ela se foi para sempre. Acabou”. E era como se parte da minha vida tivesse se acabado ali, junto dela. Juliet Dawson estava incompleta para sempre... Porque o pedaço mais importante da vida dela, a razão de tudo, não existia mais.
Se eu me lamentava pelas brigas desnecessárias e minhas rebeldias sem causa? Sempre. Ainda assim eu tinha certeza de que estava perdoada. Porque ela tinha o coração mais puro e bondoso de todos. Ela sempre me perdoava, mesmo quando eu não merecia. No que eu errei? Deveria ter dito mais “eu te amo”. Eu dizia, mas faltou mais... Muito mais. Só para ela ter certeza de que era o que eu tinha de mais importante. Mil anos poderiam passar e eu nunca esqueceria o cheiro dela ou o seu toque no meu rosto ou nos meus cabelos.
Quando saímos, fui levada para casa de minha avó. Ela sofreu tanto quanto eu... Mas sempre foi uma mulher forte. E em vez de eu apoiá-la, era ela que estava lá comigo, assim como toda a família. Brigávamos, nos desentendíamos, mas estávamos sempre juntos e um levantando o outro. Mas isso porque ela sempre esteve ali. Agora parecia que nada mais fazia sentido.
- Quero que Juliet venha morar comigo. – disse minha vó.
- Ela pode ficar conosco também. – disse minha tia. – Ela e Lorraine são amigas. Sempre fui a melhor amiga de Olga. Creio que ela se sentiria bem na nossa casa.
Olhei para Otto, que disse:
- A casa dela é onde sempre morou. E lá que ela tem que ficar.
Respirei fundo e disse:
- Obrigada por tudo... Por estarem comigo, por me amarem, por amarem minha mãe, por me oferecerem seus lares para tentar amenizar a minha dor. Mas eu já tenho 20 anos. E minha decisão por hora está tomada: vou passar uns tempos em Paraíso, com meu pai.
Todos me olharam surpresos. Minha vó foi a primeira a dizer:
- Você não pode fazer isso conosco, Juliet.
Fiquei olhando-a, sentindo uma dor horrível dentro de mim. Não queria decepcioná-los... Eu os amava, eu era grata. Mas eu tinha uma família nova e eu queria conhecer. Certamente eu não ficaria lá para sempre, mas por hora, achava que era o melhor a fazer.
- Ela pode. – falou Otto.
Todos olharam confusos para ele, que continuou:
- Eu e Olga já havíamos conversado. Ela é adulta. Tem direito a fazer escolhas. E também a obrigação de arcar com as consequências destas escolhas.
- Sim. – concordei.
- O que houve com Nicolas? – minha tia perguntou.
- Acho que Nicolas não está presente por consequência de uma das escolhas dela. – Otto disse me olhando.
- Não, Otto... Eu não escolhi Tom. Foi um mal entendido... Nicolas não veio porque...
Eu não terminei a frase. Por que Nicolas não foi? Nem eu conseguia entender direito o que havia acontecido. Na minha opinião foi só uma briga. Não era motivo para ele simplesmente desaparecer. Nem por causa de Tom. Ele tinha que me ouvir... Não podia me julgar sem ter certeza do que houve. Ainda assim ele se foi sem sequer me deixar explicar.
Todos ainda me olhavam. Abaixei minha cabeça, encerrando o assunto sobre Nicolas com meu silêncio.
- Não podemos deixar você partir assim... Ainda mais para junto de Simon. – disse minha tia.
- A decisão é dela, mãe. – falou Lorraine.
Fui até minha prima e perguntei:
- Conseguiu dar o recado para meu pai? Ele não foi...
- Não estava no hotel. Não consegui encontrá-lo.
- Quando você pretende nos deixar? – perguntou minha avó.
- Eu... Vou hoje à noite. Não quero mais ficar na minha casa. Eu não conseguiria ficar lá sem ela.
- E como acha que nós ficaremos sem você e ela ao mesmo tempo?
Eu abracei minha vó carinhosamente. Ela não conteve as lágrimas. E nem eu. Mas era uma decisão. Eu já era adulta, mulher. Eu tinha o direito de tomar minhas próprias decisões. A única pessoa que tinha o direito de me dar opinião era minha mãe. E ela já não estava mais entre nós.
- Vó... Eu não vou embora. Vou passar uns dias lá. Não mais que uma semana. Só isso.
- E se você gostar e não voltar? – ela perguntou.
- Isso não vai acontecer. – garantiu minha tia. – Acha mesmo que ela gostaria de morar com Simon Dawson?
O ódio de toda minha família por meu pai era visível. Ninguém escondia. E eu entendia eles. Afinal, meu pai havia feito minha mãe sofrer muito. Mas ainda assim era o meu pai. E a única parte real de mim que sobrou.
- Otto, pode ir comigo para casa? – pedi.
- Claro.
- Eu vou junto. – disse Lorraine.
Era impossível morar ali novamente. Chegar em casa e ter a certeza de que nunca mais a encontraria era a coisa mais triste que podia acontecer. Meu coração estava destruído, partido em mil pedaços e eu não sei se conseguiria juntá-los novamente algum dia.
Quando cheguei no meu quarto as lembranças de Nicolas começaram a me invadir, junto com as de minha mãe. Eu consegui perder os dois no mesmo dia. E agora eu percebia que era real... Não era um pesadelo. Os dois me deixaram... Sozinha. Abandonaram-me. E eu não tinha certeza se sabia viver sem eles. Sentei na cama e alisei a colcha bem estendida, deixando as lágrimas caírem novamente. Olhei pra Lorraine:
- Você acha que esta dor vai passar um dia?
- Eu não sei... – vi os olhos dela marejarem de lágrimas, que ela logo tratou de secar. – A única coisa que eu sei é que sempre estarei aqui esperando por você. Não concordo com sua decisão de ir para Paraíso, mas a respeito. E se tudo der errado, lembre que sua família de verdade sempre estará aqui, de braços abertos esperando seu retorno.
Eu a abracei:
- Obrigada por me proporcionar os momentos mais loucos e especiais da minha vida. – ri em meio às lágrimas.
- Quer um cigarro?
- Não.
Ela acendeu um cigarro:
- Estou nervosa.
Comecei a arrumar minhas coisas. Eu não levaria tudo. Só o suficiente para passar alguns dias. Também não estava em condições de levar uma mala. Então peguei minha mochila e a enchi só com o essencial.
- Quer levar um pouco de maconha? – ela perguntou.
- Eu vou passar uns dias na casa de um ex-viciado em drogas, Lorraine. Por que eu levaria maconha?
- Pensei que você poderia precisar... Para se acalmar.
- Se me sentir nervosa, compro alguns calmantes. Não se preocupe.
- É que maconha é mais natural.
- Jura? Se minha mãe ouvisse você neste momento, lhe daria uma lição. – eu sorri.
Ela riu:
- Tia Olga dava lições como ninguém. Mas mesmo xingando, ela conseguia ser doce.
Olhei para o meu quarto... Não era uma despedida. Era um até logo. Eu sabia que não ficaria para sempre em Paraíso. Em breve estaria de volta e então decidiria o que fazer da minha vida.
- Você não vai procurar Nicolas antes? – Lorraine perguntou.
- Eu vou. – falei decidida. – Nicolas vai me ouvir. Poderia me levar até a casa dele? Você lembra onde é?
- Lembro. Sou boa de memória. E acho que naquela noite você havia perdido a sua.
- Sim... Eu não lembro de quase nada.
- Vamos resgatar Nicolas Perfeito. – disse Lorraine me puxando.
- Vai indo... Eu vou me despedir de Otto. – pedi.
- Ok, te espero no carro.
Otto estava sentado na cozinha, próximo da mesa, com a cabeça baixa.
- Otto...
Ele virou para mim:
- Ainda estou tentando assimilar que ela nos deixou.
Eu vi tanta dor nos olhos dele que me consternei. Peguei uma cadeira e sentei ao seu lado, abraçando-o:
- Eu não estou indo para sempre, Otto. Eu prometo voltar em breve. Mas eu preciso fazer isso, entende? Eu já estava quase certa da minha decisão... Até que aconteceu tudo isso. Então nada mais me impede... Quero conhecer meus irmãos... E ficar um tempo com meu pai. Eu sinto que preciso fazer isso para então poder seguir com a minha vida.
- Entendo...
- Otto... Obrigada por tudo que você fez por mim. Serei eternamente grata... Por você ter amado tanto a minha mãe...
- Eu sempre amei você também, pequena. – ele deixou as lágrimas escorrerem.
- E eu amei você, Otto. E ainda amo... Do meu jeito torto... – eu ri limpando as lágrimas dele. – Desculpe-me pelos momentos ruins que fiz você passar.
- Não importa o que aconteça. Esta casa sempre estará esperando por você. Sua família sempre estará aqui por você. E eu faço parte dela... Sempre fiz. Vocês são a família que eu escolhi.
- Não pense que vai se livrar de mim tão fácil, Otto. Vou vir sempre incomodar você. Aposto que ela gostaria de nos ver sempre juntos... E alegres.
- Certamente. Eu... Ainda não acredito que isto está acontecendo.
- Eu ainda penso que amanhã, quando eu acordar, tudo estará normal. E terá sido só um pesadelo. Sentirei o cheiro do café do meu quarto... E haverá um bolo de coco esperando por mim. Ela estará sentada próxima da pia, com aquele olhar reprovador e ao mesmo tempo amoroso... E me encherá de perguntas. E dirá que você é um ótimo homem, porque fez o bolo para mim...
- Sempre haverá bolo de coco para você nesta casa... Assim como nunca deixará de existir a lembrança dela.
- Eu sei...
- Quanto à casa, ao dinheiro...
- Otto... Eu não quero falar sobre isso agora. Quando eu retornar, podemos talvez ter esta conversa. Hoje não... Não tenho cabeça para isso.
- Se cuide, menina.
- Vou me cuidar. – eu dei um beijo nele e levantei.
- E lembre-se que aqui é seu lar... E sempre estaremos esperando por você.
Eu saí sem olhar para trás. Não queria estender aquela conversa ou talvez nunca mais tivesse coragem de partir.