Capítulo 39
1478palavras
2023-05-07 00:02
Enquanto crescia, eu tive tudo o que era necessário para uma criança se desenvolver de forma saudável, como uma grande família que me amou e me apoiou de todas as formas. No entanto, isso não mudou nada. Não mudou as circunstâncias em torno do meu nascimento, tampouco o impacto que esse acontecimento teve na minha vida.
As coisas pelas quais passei quando ainda era criança deveriam ser algo que ninguém deveria ter que passar sendo tão jovem. Ter sido exposto aos horrores da vida tão cedo quebrou algo dentro de mim. Fosse eu neto do Rei Chaos ou não, isso simplesmente não estava certo.
O esperado seria que eu culpasse alguém, meu pai ou até mesmo minha mãe, mas depois de tantos anos fazendo isso sem surtir nenhum efeito, achei que eles mereciam uma trégua... E eu também.
Os últimos anos após a última batalha entre lobisomens e outras facções vizinhas foram bastante tranquilos. Era uma surpresa que o que começou como uma pequena rixa se transformou em uma guerra que durou vários anos. As coisas saíram tanto de controle que meu avô teve que intervir e, como suposto herdeiro de seu trono, foi meu dever liderar nossos exércitos à vitória. Entretanto, essa não foi a minha primeira guerra e certamente não seria a última.
Como o campo de batalha era o meu verdadeiro porto seguro, isso não me incomodava. Era lá que meus demônios se acalmavam, minhas habilidades se faziam mais úteis e, claro, a besta com sede de sangue dentro de mim era aplacada por todo sangue derramado. Para mim, lutar era eufórico e refrescante.
Após ouvir por acaso a reunião do rei, encontrava-me agora olhando pela minha janela conforme percebia com tristeza que além dos meus deveres e das paredes da minha casa no meu reino natal, eu não tinha nada. Nem vida pessoal, nem amorosa. Não tinha nenhuma experiência, exceto a guerra e tudo relacionado a ela.
Não vivi minha vida como se fosse minha e sentia uma necessidade desesperada de mudar isso antes de ser coroado rei. Pensei que ainda tinha tempo, mas depois de ouvir que meu avô antecipou a data da minha coroação, percebi que estava enganado. Para piorar, foi tudo feito sem meu consentimento.
Mas tudo bem. Ninguém nunca me perguntava o que eu queria, apenas faziam o que era o melhor para mim. Como se eles soubessem o que era melhor.
Minha vida era uma sucessão de desastres. Desde a minha concepção até o meu nascimento, e certamente isso não mudou durante a minha vida adulta. Talvez essa fosse a maneira do destino mostrar sua insatisfação de como não era certo uma pessoa ter tanto poder, mas nada podia ser feito quanto a isso agora. Não depois de tê-los aperfeiçoados para se tornarem meus maiores aliados.
Talvez por isso que minha vida tivesse virado de ponta à cabeça, parecendo que um tornado havia passado por ela. E algo me dizia que as coisas ainda iriam piorar.
Eu era apenas um garoto quando meu mundo desmoronou e percebi que os sonhos eram apenas mantidos por fios frágeis e inconstantes que podiam ser desmanchados sem muito esforço. Foi isso o que aconteceu com os meus.
Achei que já tivesse visto de tudo depois da morte temporária da minha mãe, mas, infelizmente, isso foi só o começo. O começo do fim. Até hoje, ainda me arrependia de ter ficado para trás em vez de ter partido com as outras crianças da alcateia do meu pai quando me chamaram para ir com elas. Se tivesse ido, teria sido poupado de saber da verdadeira extensão da inveja, ganância, mentira e maldade que assolavam este mundo.
Eu nunca teria sabido sobre as vidas que foram dilaceradas, incluindo a minha própria antes mesmo de eu ter sido concebido.
Diziam por aí que conhecimento era poder, mas, por experiência, sabia que conhecimento só trazia dor, desgosto e amargura. Para mim, era uma maldição ter sido abençoado com tal poder. O poder do conhecimento... como se eu já não tivesse visto o suficiente.
Embora conhecimento em si fosse ótimo, as consequências e a devastação deixadas para trás eram capazes de nos quebrar ao meio.
*********
Ao amanhecer, arrumei tudo o que consegui levar comigo e saí sem dizer uma palavra a ninguém. Meus guardas pessoais não se incomodaram em me fazer perguntas, já que eu era um homem de poucas palavras e não gostava de ser questionado, sem falar que isso não mudaria nada. Além disso, se os membros da minha família podiam tomar decisões por mim sem me consultarem, acreditava que já era hora de eles provarem do seu próprio veneno. Na verdade, eu até demorei a tomar essa iniciativa. Meu avô em particular havia cruzado uma linha hoje que não levaria muito tempo até se tornar uma regra.
Para um estrategista de batalha calejado como eu, realmente ainda não tinha um plano concreto na minha cabeça, então, fui até a única pessoa que sempre me protegeu, mesmo que do seu jeito estranho, meu tio Luke. Nós nunca nos demos muito bem enquanto eu crescia porque éramos ambos muito teimosos e parecidos demais. Demorou décadas, mas encontramos um consenso que nos permitiu sermos apenas tio e sobrinho. Lutamos inúmeras batalhas juntos e ele provou sua lealdade a mim diversas vezes, assim como eu.
Foi assim que se formou o vínculo inquebrável entre nós. Bom, isso e o fato de ambos termos sido amaldiçoados com o poder de ver a verdadeira essência de uma pessoa através dos seus olhos, as janelas da alma. Embora eu tivesse me dado conta de o quão cruel era essa habilidade quando ainda era pequeno, ele só descobriu quando já era tarde demais e as consequências já haviam sido cravadas. No entanto, essa não era minha história para contar.
Ao localizar rapidamente o portal mais próximo, atravessei-o sem olhar para trás. O suspiro de alívio que escapou dos meus lábios quando me vi em uma sala com paredes tão familiares não pôde ser contido. Como sempre, meu tio Luke já sabia que eu estava a caminho e me lançou um olhar antes de caminhar em minha direção de braços abertos.
Por mais que já tivesse alguns séculos de vida, um abraço ainda era um abraço e eu precisava muito de um naquele momento. A sensação de tudo estar fora do meu controle era assustadora, especialmente quando podia ver as cordas sendo manipuladas por outra pessoa.
Neste momento, não pude deixar de me perguntar: valia a pena viver se minha vida não era minha para fazer dela o que quisesse?
Minha fuga já era resposta para esta pergunta. De fato, não valia a pena, até porque isso não era viver e sim existir.
Dei uma olhada no espelho grande atrás de nós e caí na gargalhada ao ver o nosso reflexo nele, dois gigantes nos braços um do outro. Não demorou muito para meu tio Luke também ter um ataque de riso. De repente, a tensão que nos rondava se dissipou, fazendo-me sentir um pouco mais leve.
Quando nos soltamos, joguei-me no sofá mais próximo enquanto meu tio fazia o mesmo. Então, olhamos um para o outro por alguns minutos antes de ele quebrar o silêncio.
"Você finalmente percebeu, né?" Ele provocou.
"Acho que sim."
"O que fez cair a sua ficha? Deixe-me adivinhar, a coroação?"
"Você já sabe sobre a coroação?"
"Garoto, eu sei de tudo", ele respondeu presunçosamente.
"Exibido", sussurrei ao revirar os olhos com um sorriso.
"Então... Por onde você quer começar?"
"Ainda não sei. Não tive tempo para planejar as coisas."
"Bom para você. De todo jeito, agora está tarde. É melhor você descansar um pouco. Amanhã resolvemos os detalhes.
"Está certo. Obrigado, tio Luc!"
"Disponha, garoto. Pode descansar a vontade. Eu vou sair e não tenho hora para voltar."
"Ah, você realmente vai..."
"Não se atreva a terminar essa frase, Xavier Sebastian. Estou avisando", grunhiu ele.
Rindo baixinho, eu o provoquei: "Tá, tá... Não precisa ficar todo irritado só por causa de uma jaqueta de neon."
"Ela está usando uma jaqueta neon?" Ele questionou com uma careta que me fez rir.
"Ei! Não julgue o livro pela capa, tá?" Eu consegui dizer entre uma risada ou outra.
"Ah, vai se ferrar! Vou sair e, você, vê se dorme um pouco. Vai precisar estar bem descansado nos próximos dias."
"Eu sei, tio Luc, eu sei... Tome cuidado lá fora."
"Pode deixar. Não é como se algum otário pudesse me encarar."
"Seu b*stardo arrogante."
"Posso até ser arrogante, mas não sou nenhum bastardo. Sei muito bem onde meu pai está. É você quem está fugindo dele", meu tio zombou antes de sumir pela porta.
Então, mais uma vez, fiquei sozinho com meus pensamentos um tanto perturbadores. Ao andar pela sala, observei os diversos retratos espalhados pelas paredes, deixando-me engolir por todas as memórias que eles evocavam. Eu parecia tão feliz neles.